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Désir ou o Canto do Cisne
«Já no ano da morte do avô, em Novembro, nascia o infante Fernando, na
vila de Almeirim, irmão muito amado do futuro Rei africano e futuro duque de
Viseu que infante Henrique, aquele tio de rosto façanhudo, carão comprido,
enorme, ossudo, muito inglesão e fechado como uma ostra, que lá para Sagres vai
construindo o mundo, irá fazer seu herdeiro universal. É este jovem de tez
branca mas cabelo escuro que será o pai de D. Leonor, futura esposa do filho de
Afonso, “o Africano”, e do actual rei de Portugal, Manuel. A fertilidade da rainha
D. Leonor de Aragão não deixou nada a desejar pois, com a precisão de uma
promessa, foi parindo filhos e filhas que o humor merencório do marido em nada
obstou. Logo a seguir a linda D. Leonor, de cabelos de cobre e rosto oval
perfeito, que será imperatriz da Alemanha, pois irá, já no tempo do reinado do
irmão Afonso, casar com aquele grande teutónico, tímido, abrutalhado mas que
muito a amou, Frederico, e lhe deixou, quantas vezes!, o governo do Império por
questões militares e políticas e porque muitas outras vezes preferia aos
negócios do Estado e aos prazeres do leito nupcial, o seu laboratório de
alquimista, nas caves do seu castelo, onde dormia as noites e pesquisava com
seus companheiros de Arte, a estrela que irrompe como uma flor, trémula e
dourada, centrada de vermelho e negro, da “Pedra Filosofal”. Foi no mesmo ano
em que nasceu ao infante Pedro o seu filho Jaime, o nome do avô, o velho conde
de Urgel morto em Junho de 1433, e que chegou a bispo e cardeal depois da dramática
morte do pai e, em 1436, nasceu-lhe João, o outro filho, que foi Príncipe de
Antioquia... Dói-me sempre citar a larga e interminável sucessão de nomes onde
cada um de nós se inclui, ou alguém por nós, até ao esquecimento total...
Abravanel, que nasceu em Lisboa em 1437, naquela noite em que o avisei que
devia fugir, como eu era ainda jovem! Referiu-se a isso, à memória…
- ‘Escreve, filho, temos de escrever sempre, sempre, para que a memória se não perca. Seremos sempre o povo da memória e ai daqueles que a perderem porque se perderão também para sempre a si, aos seus e à sua alma’!
Embora tenha passado por uma fase de dúvida, penso sinceramente hoje
que ele tinha razão, esse sábio e velho Abravanel, Príncipe, filósofo,
humanista, pensador e místico que perdeu tudo na vida, mas que, já velho e
doente, em Veneza, no fim do seu périplo trágico, apenas se lamentava por ter perdido,
por três vezes, a verdadeira e única riqueza que possuíra e acumulara:
- a sua biblioteca, os seus verdadeiros companheiros de caminho, os preciosos irmãos que nunca o tinham traído, os seus livros.
Foi no reinado de Duarte I que partiu, com a presença do conde de
Ourém, a embaixada portuguesa para o Concílio de Basileia e, nesse ano de 1437,
várias coisas aconteceram, limitando a paz do espírito do rei, imerso sempre
que podia nos seus escritos, onde se alheava das realidades, da terrível
veracidade dos problemas quotidianos. Ao duque de Coimbra nascera-lhe uma
filha, a casta e perfeita D. Filipa que, no seu retiro de Odivelas, irá, ser
uma espécie de consciência permanente da traição feita ao pai pelos Braganças,
e, opondo-se à opinião do pai da jovem Infanta, os irmãos Henrique e Fernando,
este tão jovem e endividado que até a judeus pedia dinheiro emprestado,
convencem o rei a aparelhar uma armada para conquistar a praça marroquina de Tânger.
A armada partiu em 23 de Agosto desse ano e a 19 do mês de Outubro tudo estava
consumado. A derrota dos Portugueses culminou a empresa e o infeliz Infante
Fernando acabou cativo nas masmorras de Fez como refém e o rei, o irmão, Duarte,
ficou cativo também. Do remorso. A partir dessa altura apenas conseguiu contar com
a metade doente da sua alma atormentada. Ainda antes de partir para Nápoles
compulsei dois livros, um do rei e o outro, uma cópia também, de uma bela obra
escrita por um homem que nasceu por esse ano na mesma cidade de Lisboa,
Guedelha, “ib David ben Jachia”, que foi um grande médico e nos deixou “As Sete
Artes Vivas”. O que sobrou do seu trabalho, que ainda reli em Florença, foi a
sua obra poética. O resto perdeu-se como se perde tudo. Que aparentemente
injusta é esta revolução do tempo! Sepulta-se vivo, por agruras do destino, um
Príncipe em Fez, no fundo daquele labirinto de ruelas sórdidas onde o mau cheiro
e o eterno rumor de milhares de vozes humanas transformam o casario adentro das
muralhas de taipa numa babel ciclópica e, simultaneamente, nasce no lugar de
onde ele saiu um poeta ou um pensador que, acima das contingências humanas,
ultrapassa o tempo pela Arte e a Criação que são sempre de essência divina.
Praticamente dez anos passados sobre aquela carta que o infante Pedro
escrevera ao irmão e em que dizia:
- Por Ayres Gomes da Silva soube conto no dia de Santa Maria fostes, com a graça de Deus, alevantado e obedecido por Rei destes Reinos…
Pois certamente Gomes da Silva ou Álvaro Vaz de Almada, o seu amado
Avranches, homem da sua inteira confiança, o teriam informado, Pedro teve
conhecimento também da próxima morte do irmão mas, desta vez, achava-se perto e
tão perto que acorreu imediatamente quando se consciencializou da grave
enfermidade do Rei, para lhe assistir aos derradeiros momentos, estando
ausentes os outros irmãos. Aí estava mais o político que o irmão, o parente de
sangue, mas, na realidade, Pedro sabia que ou estaria ele à cabeceira do irmão
moribundo ou seriam os outros, de Henrique, de João, desses não correria nenhum
risco, mas existiam Afonso, o meio-irmão que iria nos seus sessenta e dois anos
ou mais, e os respectivos filhos. O homem que fora afastado pelo pai da
administração das Ordens Militares, da defesa de Ceuta, o homem que, casado com
a filha mais velha do conde de Urgel, que tinha direitos sobre o trono de
Aragão e Navarra e que foi obrigado a engolir o Tratado de Paz e Amizade que o
pai lhe impusera com os Infantes de Aragão e os Reis de Navarra, estava ao
leme. Para conquistar o poder à custa do sobrinho? Não. Não creio. Essa foi
sempre a desculpa para servir de cavalo de batalha aos seus inimigos pessoais e
políticos.
O Infante Pedro sabia que, protegendo o sobrinho, protegendo o trono do
sobrinho, protegia-se a si, ao seu ideal político e poderia nas malhas da sua complexa
rede de poder, liquidar as ocultas pretensões de Castela e fortalecer o Reino.
Está ao lado da cunhada, que sempre o detestou, porque ele casara com uma
inimiga dos seus irmãos, dela própria, Isabel de Urgel. A trama que vai
desfazer-se em Alfarrobeira centra-se no jogo político entre Portugal, Aragão,
Navarra, a Catalunha e Castela. No meio o Infante das Sete Partidas e o sonho
da centralização do poder real e o enfraquecimento militar e político de
Castela que a mente feudal dos Braganças não poderá aceitar ou sequer
compreender como o demonstraram mais tarde, no tempo do neto de Pedro». In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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