sexta-feira, 18 de maio de 2012

Diário de um Homem Supérfluo. Ivan Turguéniev. «Diz-se que, diante da eternidade, tudo são bagatelas, sim; mas neste caso a própria eternidade é uma bagatela. Parece-me que estou a cair na especulação: isso é mau sinal, não estarei com medo? É melhor que comece a contar alguma coisa. Lá fora está húmido, ventoso…»



(1818-1883)
Orel, império Russo
Cortesia de wikipedia

Aldeia de Ovétchi Vódí, 20 de Março de 18..
«O médico saiu daqui agora mesmo. Por fim consegui perceber alguma coisa. Por mais astúcias que ele usasse, não conseguiu deixar de manifestar-se por fim. Sim, vou morrer em breve, muito em breve. Os rios vão degelar e eu, provavelmente, vou desaparecer com a última neve... para onde? Sabe Deus! Também para o mar. Ora bem! Se tenho de morrer, que morra na Primavera. Mas não será ridículo iniciar um diário talvez duas semanas antes da morte? Que mal faz? E o que são catorze dias menos do que catorze anos, do que catorze séculos?
Diz-se que, diante da eternidade, tudo são bagatelas, sim; mas neste caso a própria eternidade é uma bagatela. Parece-me que estou a cair na especulação: isso é mau sinal, não estarei com medo?
É melhor que comece a contar alguma coisa. Lá fora está húmido, ventoso, estou proibido de sair. Mas contar o quê? Um homem decente não fala das suas doenças; escrever talvez uma novela, não é ocupação para mim; a discussão de temas elevados não está ao meu alcance; as descrições da existência que me rodeia, nem sequer me interessam; mas nada fazer é enfadonho; para ler, tenho preguiça. Ah! Vou contar a mim próprio toda a minha vida. Magnífica ideia! Diante da morte isso é decente e não ofende ninguém. Começo.
Nasci há trinta anos, filho de proprietários rurais bastante ricos. O meu pai era um jogador apaixonado; a minha mãe era uma senhora de carácter... uma senhora muito virtuosa. Mas não conheci nenhuma mulher a quem a virtude proporcionasse menos satisfação. Oprimida sob o fardo das suas qualidades, atormentava toda a gente, a começar por si própria. Durante os cinquenta anos da sua vida nem uma única vez descansou, nunca cruzou os braços; andava sempre agitada e azafamada como uma formiga, e sem qualquer proveito, o que não se pode dizer das formigas. Um bichinho incansável consumia-a de dia e de noite. Só uma vez a vi completamente calma: no primeiro dia depois da sua morte, na urna. Ao olhar para ela pareceu-me na verdade que o seu rosto exprimia um ligeiro assombro; os lábios entreabertos, as faces descaídas e os olhos docilmente imóveis, pareciam tremular as palavras: ‘Que bom, uma pessoa não se mexer’!
Sim, é bom, é bom livrar-se por fim da consciência aflitiva da vida, do sentimento obsessivo e desconfortável da existência! Mas não é essa a questão. Cresci mal e sem alegria. Os meus pais amavam-me; mas isso não me fazia sentir melhor. O meu pai não tinha qualquer poder na sua própria casa e nenhuma importância como homem, sem dúvida entregue a um vício vergonhoso e devastador; consciente da sua degradação e sem forças para se livrar da sua paixão preferida, procurava ao menos, com o seu ar constantemente terno e modesto, com a sua resignação evasiva, merecer a indulgência da sua esposa exemplar. Na verdade minha mãezinha suportava a sua infelicidade com aquela grande e magnífica paciência em que há tanto de orgulhoso amor-próprio. Nunca censurava o meu pai por coisa alguma, dava-lhe em silêncio o seu último dinheiro e pagava as dívidas dele; ele enaltecia-a na sua presença e na sua ausência, mas não gostava de estar em casa e fazia-me festas furtivamente, como se receasse infectar-me com a sua presença. Mas as suas feições desfiguradas respiravam tanta bondade nesses momentos, o riso febril dos seus lábios era substituído por um sorriso tão tocante, os seus olhos castanhos cercados de tanta rugas finas brilhavam com tanto amor, que eu encostava de modo involuntário a minha face à dele, húmida e tépida das lágrimas. Eu limpava essas lágrimas com o meu lenço e elas voltavam a correr, sem esforço, como a água de um copo demasiado cheio. Punha-me também a chorar e ele consolava-me, passava-me a mão pelas costas, beijava-me na cara com os seus lábios trémulos.
Ainda agora, pouco mais de vinte anos depois da sua morte, quando me lembro do meu pobre pai sobem-me à garganta uns soluços silenciosos e o meu coração bate, bate com tanto ardor e tanta mágoa, aflige-se com tão saudosa pena como se ainda lhe restasse muito tempo para pulsar e houvesse muito de que ter compaixão!
A minha mãe, pelo contrário, tratava-me sempre da mesma maneira, com carinho mas também com frieza. Nos livros infantis encontram-se muitas vezes mães assim, moralizadoras e justas. Ela amava-me, mas eu não a amava a ela. É verdade!
Esquivava-me à minha virtuosa mãe e amava apaixonadamente o meu pai vicioso. Mas por hoje chega. O início, já o temos, e quanto ao fim, seja qual for, não temos que nos preocupar com ele. É assunto da minha doença». In Ivan Turguéniev, Diário de um Homem Supérfluo, Arbor Litterae, 2010, ISBN 978-989-8292-44-5.

Cortesia de Arbor Litterae/JDACT