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Désir ou o Canto do Cisne
«No dia 10 de Setembro o calor apertava e Tomar tem conhecimento de que
El Rei Duarte morrerá de peste, tal como sua mãe há vinte e três anos se finara
em Odivelas, antes da partida do marido e dos filhos para Ceuta. Pedro assiste
a tudo, inicia os preparativos, esquece (ou finge esquecer) desavenças, apoia
os sobrinhos e a viúva cunhada que sempre nutriu por ele uma manifesta
antipatia, mesmo um mal dissimulado ódio, e pede a mestre Guedelha o horóscopo
do sobrinho. Foi favorável e valeu ao bom judeu uma tença anual para juntar ao
seu rendimento de físico real. Afonso, que é menor, é aclamado nas Cortes
reunidas para esse efeito e o pequeno irmão Fernando é jurado também defensor
do Reino. Mas logo em Novembro do mesmo ano, em Torres Novas, inicia-se a
disputa pela regência do Reino durante a menoridade do Rei. Duarte, no seu
testamento, propusera sua mulher, Leonor de Transtâmara, sua testamenteira,
curadora dos filhos órfãos e Regente do Reino. Isto em desprimor dos irmãos,
todos eles, talvez com excepção do jovem Fernando então já enterrado vivo no
Norte de África, homens expelentes e virtuosos, capazes de levar a bom termo a
regência do Reino. A Rainha, apesar da má vontade contra Pedro, cumpre a vontade
do marido várias vezes expressa de casar o filho herdeiro com Isabel, filha do
Infante. Radiante, Pedro aceitou mas em breve, por oposição do irmão bastardo,
Afonso de Barcelos, os problemas surgem e avolumam-se. Afonso era um político
nato e não podia aceitar as ambições políticas de mais ninguém, e muito menos
do inteligente e arguto irmão Pedro, cujo destino se norteava há muito por um
esquema de poder que abarcava parte da Península em relevante oposição às pretensões
castelhanas e aragonesas. Além disso, Afonso, então já velho, queria casar a
sua neta com o herdeiro do trono. Seria a forma de lavar todas as afrontas
engolidas durante uma vida de ódios escondidos e ambições rasgadas pela má
estrela que o perseguira desde o nascimento em Veiros? No jogo que se
apresentava no tabuleiro do mundo, entre Barcelos e Lisboa, decidia-se mais que
o seu desejo de alcançar o poder, nem que fosse através da neta, a jovenzinha
filha do Infante João que casara com sua sobrinha Isabel, filha dos condes de
Barcelos. Jogava-se o problema de Portugal com a Coroa de Aragão, com Navarra e
a Catalunha. Jogavam-se os sonhos do filho segundo do Rei João I, os de Jaime
de Urgel, pai de sua mulher, a hipótese de uma futura união ibérica e a própria
vida do Infante duque de Coimbra, de todos os seus filhos e, porque Deus não dorme,
os dos próprios duques de Bragança, já que será ainda durante a regência de
Pedro que em título é conferido, em nome do jovem Rei Afonso, em Maio de 1442,
ao conde de Barcelos...
As solenes exéquias de Duarte I são consumadas no Mosteiro da Batalha
onde não esteve presente seu irmão João, gravemente doente em Alcochete, pelo
que a mulher lhe escondeu a verdade sobre o passamento do Rei. D. Leonor
confirmara, apesar da oposição do Barcelos, o casamento do filho com a primita.
Pedro conhece, com a sua polícia bem montada, todos os seus opositores. Sabe
que, em Lisboa, liderados pelo próprio arcebispo, cunhado do Barcelos, os seus
opositores manobram contra a possibilidade da sua regência ou, pelo menos, da sua
actuação política durante a menoridade do Rei.
Em Torres, Afonso convence, nas Cortes, Vasco Fernandes Coutinho, que
será o primeiro conde de Marialva, a coordenar as opiniões dos fidalgos
presentes contra o meio-irmão. Convém, a todo o custo, afastá-lo, afastá-lo...
É primordial para o velho abutre de Barcelos neutralizar Pedro. Não é ele o
genro daquele Jaime de Urgel a quem a própria mãe gritava, quase possessa, para
lhe conferir força e firmeza:
Fill, ó rey o no res!
Filho! Ó Rei, ou nada!
Afonso, que abominava as pretensões do irmão, ambicionava o mesmo, mas,
penso, nunca o confessou a não ser a ele próprio porque não o poderia jamais
fazer. Isso seria traição, crime de lesa-majestade e ele não esqueceu nunca que
era apenas um bastardo e sem hipóteses nenhumas no seu horizonte político.
Nada me opõe a Afonso, filho mais velho e espúrio do bom Rei João. Nada
me opõe neste momento a ninguém. Não quero ser o leão da vingança, o servidor
do Estado, o cronista oficial. Não sou o Pina, de quem, aliás, sempre gostei,
mas conheci-o muito bem. É sempre difícil ser imparcial. Eu, aqui, neste barco
que cheira ainda a fezes e vomitado dos emigrantes, dos viajantes fugitivos de
toda a parte e daqueles que, daqui a dias, de Veneza partirão numa qualquer
contarina para a Terra Santa, apenas escrevo o que vi e ouvi, o que me pareceu
ser a verdade. Recordo-me sempre de um belo e velho poema que o mestre Tadeu me
recitava…
Aliás, quem lhe ensinara o velho poema, que terá uns três séculos, mas
é tão actual como o meu rosto já envelhecido, foi frei Jerónimo...
Onde está hoje a tua glória, oh Babilónia? Onde está o terrível Nabucodonosor,
o forte Dario e o famoso Ciro? E onde estão eles? Mortos, todos nos seus túmulos de pedra lavrada, ou
entre o tojo, a lama, o pó e as ervas do esquecimento... E eu onde estarei depois?
Quando vi o túmulo de Pedro, que a piedade do povo e da filha conseguiu trazer
da campa rasa repleta de vermes de Abrantes para Santo Elói e, depois, para a
capela do Mosteiro da Batalha, que seu pai edificou, fiquei hirto em constrangido
silêncio. Também outros túmulos me fizeram estremecer, mas o de Pedro mais,
porque o lamentei profundamente. Acho mesmo que ele foi morto quando já não pretendia
coisa nenhuma, e essa foi a maior partida do destino porque ele o que pretendeu
efectivamente foi o trono de Aragão, o de Navarra, a herança de Jaime de Urgel
e, para isso, casara-se com a filha mais velha do pretendente a Aragão, por
procuração. Duarte com a filha de Fernando de Transtâmara, velho inimigo de
Jaime condenado a prisão perpétua». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica
Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa
2002, ISBN 972-23-1942-6.
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