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Fala a Loucura
«Não julgueis que estas minhas palavras sejam falsas, como é vulgar
entre os oradores. Pois bem sabeis que quando eles proferem um discurso que
lhes custou trinta anos de trabalho, e por vezes trabalho alheio, juram tê-lo escrito
por prazer, ou até tê-lo ditado, no curto prazo de três dias. Eu, não; sempre
me foi grato dizer imediatamente tudo quanto me vem à boca.
Não espereis, pois, que seguindo o uso desses retóricos, faça a divisão
do discurso. Não é conveniente limitar ou dividir o império de uma divindade
que reina em toda a parte e que recebe o culto unânime de toda a terra.
Descrever-me, representar-me, pintar-me, também não vale a pena, porque estou
presente e porque me vedes com os vossos olhos. Sou, como estais vendo, a verdadeira
dispensatriz da felicidade que os latinos denominam ‘Stultitia’ e os gregos ‘Moria’.
Não preciso de vos dizer. Revelo-me, como dizem, pela fronte e pelos
olhos, e se alguém me quisesse tomar por Minerva ou por Sofia, desenganá-lo-ia
sem falar, já que o rosto não mente porque é o espelho da alma. Não dissimulo
no rosto o que sintro dentro do peito. Sou sempre idêntica a mim própria, e não
possodissimular como aquelas pessoas que para si reivindicam os títulos da
máxima sabedoria, que passeiam como macacos vestidos fe púrpura ou como asnos
cobertos com pele de leão. Disfarcem-se como quiserem, deixamsempre ver as
orelhas traiçoeiras de Midas.
Vedes que estou imitando os retóricos do nosso tempo, que se julgam uns
deuses pelo facto de serem bilingues como as sanguessugas, e que julgam
preclaro imiscuir no discurso latino algumas palavras gregas, compor um mosaico
que nem sempre vem a propósito. À falta de palavras exóticas, vão buscar quatro
ou cinco fórmulas arcaicas aos pergaminhos pútridos, ofuscando com trevas os
olhos do leitor, para que assim os entendedores mais orgulhosamente se deleitem
e para que os ignorantes tanto mais admirem quanto menos compreendam. Pois é bem
certo que todos encontram prazer no que lhes é mais alheio e distante. A
vaidade está nisso interessada; riem, aplaudem, movem as orelhas somo o asno
que quer desse modo mostrar que compreendeu:
- ‘É assim mesmo, é tal e qual’.
Mas recorro ao meu tema». In Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura,
tradução de Álvaro Ribeiro, colecção Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores,
Lisboa, 1987.
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