quinta-feira, 24 de maio de 2012

Elogio da Loucura. Erasmo. «Vedes que estou imitando os retóricos do nosso tempo, que se julgam uns deuses pelo facto de serem bilingues como as sanguessugas, e que julgam preclaro imiscuir no discurso latino algumas palavras gregas, compor um mosaico que nem sempre vem a propósito»



jdact e cortesia de wikipedia

Fala a Loucura
«Não julgueis que estas minhas palavras sejam falsas, como é vulgar entre os oradores. Pois bem sabeis que quando eles proferem um discurso que lhes custou trinta anos de trabalho, e por vezes trabalho alheio, juram tê-lo escrito por prazer, ou até tê-lo ditado, no curto prazo de três dias. Eu, não; sempre me foi grato dizer imediatamente tudo quanto me vem à boca.
Não espereis, pois, que seguindo o uso desses retóricos, faça a divisão do discurso. Não é conveniente limitar ou dividir o império de uma divindade que reina em toda a parte e que recebe o culto unânime de toda a terra. Descrever-me, representar-me, pintar-me, também não vale a pena, porque estou presente e porque me vedes com os vossos olhos. Sou, como estais vendo, a verdadeira dispensatriz da felicidade que os latinos denominam ‘Stultitia’ e os gregos ‘Moria’.
Não preciso de vos dizer. Revelo-me, como dizem, pela fronte e pelos olhos, e se alguém me quisesse tomar por Minerva ou por Sofia, desenganá-lo-ia sem falar, já que o rosto não mente porque é o espelho da alma. Não dissimulo no rosto o que sintro dentro do peito. Sou sempre idêntica a mim própria, e não possodissimular como aquelas pessoas que para si reivindicam os títulos da máxima sabedoria, que passeiam como macacos vestidos fe púrpura ou como asnos cobertos com pele de leão. Disfarcem-se como quiserem, deixamsempre ver as orelhas traiçoeiras de Midas.€
Vedes que estou imitando os retóricos do nosso tempo, que se julgam uns deuses pelo facto de serem bilingues como as sanguessugas, e que julgam preclaro imiscuir no discurso latino algumas palavras gregas, compor um mosaico que nem sempre vem a propósito. À falta de palavras exóticas, vão buscar quatro ou cinco fórmulas arcaicas aos pergaminhos pútridos, ofuscando com trevas os olhos do leitor, para que assim os entendedores mais orgulhosamente se deleitem e para que os ignorantes tanto mais admirem quanto menos compreendam. Pois é bem certo que todos encontram prazer no que lhes é mais alheio e distante. A vaidade está nisso interessada; riem, aplaudem, movem as orelhas somo o asno que quer desse modo mostrar que compreendeu:
  • ‘É assim mesmo, é tal e qual’.
Mas recorro ao meu tema». In Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura, tradução de Álvaro Ribeiro, colecção Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1987.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT