quinta-feira, 17 de maio de 2012

O Processo de Damião de Goes na Inquisição. Raul Rêgo. «… ouviu dizer ao dito Damião de Goes que ele falara com Lutero, e a outras pessoas ouviu também dizer que o dito Damião de Goes fora discípulo de Erasmo, e que pousara com ele, dentro em sua casa, e comia e bebia com ele»


jdac

As primeiras denúncias
Testemunho de mestre Simão contra Damião de Goes
«Em a cidade de Évora, aos cinco dias do mês de Setembro do ano de mil quinhentos quarenta e cinco anos, nas Casas do Despacho da Santa Inquisição (maldita), estando aí o senhor licenciado Pedro Álvares de Paredes, inquisidor apostólico neste arcebispado de Évora e sua comarca, o qual disse que ele era informado que o padre mestre Simão, da Congregação e Ordem de Jesus, estante ora nesta cidade de Évora, sabia algumas coisas de algumas pessoas tocantes a nossa santa fé católica.
E para saber a verdade disso mandou chamar o dito mestre Simão, o qual pareceu ante ele senhor Inquisidor. Do qual mestre Simão o dito senhor Inquisidor recebeu juramento em forma devida de direito, pelo qual prometeu dizer verdade. Mediante o qual foi perguntado se sabe, viu, ou ouviu dizer alguma pessoa ou pessoas, assim presentes como absentes, tenham feito, dito ou cometido algumas coisas contra a nossa santa fé católica, lei evangélica, e contra o que tem, crê e ensina a Santa Madre Igreja; que dissesse a verdade e inteiramente descarregasse sua consciência.
Disse o dito mestre Simão que, estando ele em Itália, haverá agora oito anos, pouco mais ou menos, e tornou a dizer que haverá nove anos, pouco mais ou menos, estando na cidade de Pádua, conheceu aí a Damião de Goes, português, que ao presente reside nesta cidade de Évora, o qual agora veio de Flandres. E ouviu ele, testemunha, dizer que o dito Damião de Goes era lá, casado em Flandres. E que, praticando ele declarante com o dito Damião de Goes sobre coisas da nossa santa fé católica, lhe ouviu ele declarante dizer muitas coisas que ele testemunha para si tinha que eram heréticas. E por haver muito tempo que passou, como acima declarado tem, e também por não pensar mais nisso, lhe não lembram todas. Somente é lembrado que, perguntando-lhe ele declarante que se, ele Damião de Goes, viesse a este reino de Portugal, que faria; e se iria à missa, e se faria as outras mais coisas, como os outros cristãos fazem. E que o dito Damião de Goes lhe respondeu que faria como os outros e que, em seu coração, lhe ficaria e teria o que havia de ter. E que as práticas que ambos passaram eram sobre os erros e heresias do Lutero. E que isto é o que sabe.
E sendo perguntado que quanto tempo praticou e comunicou com o dito Damião de Goes sobre os erros de Lutero, e que declare especialmente sobre que errores de Lutero comunicou com o dito Damião de Goes, disse ele testemunha que praticou o dito Damião de Goes, nas sobreditas heresias de Lutero, por espaço de dois meses, pouco mais ou menos, e que em o que praticavam ambos era, ao que ao presente lhe lembra, a seu parecer, de “potestate Papae et de Confessione”. E que, nestas coisas todas, via ele testemunha que o dito Damião de Goes louvava a doutrina de Lutero; e que ao que ele testemunha via e entendia do sobredito Damião de Goes, era que ele tinha a dita seita e heresia de Lutero. E via que se deleitava muito e comprazia nela.
E disse mais ele testemunha que o dito Damião de Goes pode fazer muito dano acerca das coisas da nossa fé católica, porque é homem avisado e sabe, além do latim, alguma coisa de Teologia; e sabe a fala francesa e italiana, e lhe parece também que saberá a flamenga e a alemã, porque andou muito tempo entre eles.
E também disse ele testemunha que o dito Damião de Goes lhe dissera que ele era grande amigo de um herege que se chamava Simon Grineus, o qual habitava em Basileia; o qual Simon Grineus era tido dos luteranos em muita conta e grande reputação, do qual o dito Damião de Goes dizia que recebia carta ou cartas. E que ele Damião de Goes também lhe escrevia e respondia.
E disse mais ele declarante que sabia que o dito Damião de Goes tinha muita autoridade entre os luteranos e que o dito Damião de Goes dissera a ele testemunha que um cardeal, cujo nome ao presente lhe não lembra, lhe escrevera a ele Damião de Goes, como a pessoa que com os luteranos poderia acabar alguma coisa, escrevendo-lhe para que nisso entendesse.
E também ele testemunha ouviu dizer ao dito Damião de Goes que ele falara com Lutero, e a outras pessoas ouviu também dizer que o dito Damião de Goes fora discípulo de Erasmo, e que pousara com ele, dentro em sua casa, e comia e bebia com ele.
E disse mais ele declarante que, quando disputava com o dito Damião de Goes sobre as coisas da fé, ele declarante defendia as coisas da nossa santa fé, e o Damião de Goes sustentava os errores de Lutero e se deleitava muito nisso, como acima já tem dito, e que ao presente não era lembrado doutra coisa; que lembrando-se o dirá». In Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na Inquisição, Assírio & Alvim, 2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.


Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT