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As primeiras denúncias
Testemunho de mestre Simão contra Damião de Goes
«Em a cidade de Évora, aos cinco dias do mês de Setembro do ano de mil
quinhentos quarenta e cinco anos, nas Casas do Despacho da Santa Inquisição
(maldita), estando aí o senhor licenciado Pedro Álvares de Paredes, inquisidor
apostólico neste arcebispado de Évora e sua comarca, o qual disse que ele era
informado que o padre mestre Simão, da Congregação e Ordem de Jesus, estante
ora nesta cidade de Évora, sabia algumas coisas de algumas pessoas tocantes a nossa
santa fé católica.
E para saber a verdade disso mandou chamar o dito mestre Simão, o qual
pareceu ante ele senhor Inquisidor. Do qual mestre Simão o dito senhor
Inquisidor recebeu juramento em forma devida de direito, pelo qual prometeu
dizer verdade. Mediante o qual foi perguntado se sabe, viu, ou ouviu dizer
alguma pessoa ou pessoas, assim presentes como absentes, tenham feito, dito ou
cometido algumas coisas contra a nossa santa fé católica, lei evangélica, e
contra o que tem, crê e ensina a Santa Madre Igreja; que dissesse a verdade e
inteiramente descarregasse sua consciência.
Disse o dito mestre Simão que, estando ele em Itália, haverá agora oito
anos, pouco mais ou menos, e tornou a dizer que haverá nove anos, pouco mais ou
menos, estando na cidade de Pádua, conheceu aí a Damião de Goes, português, que
ao presente reside nesta cidade de Évora, o qual agora veio de Flandres. E
ouviu ele, testemunha, dizer que o dito Damião de Goes era lá, casado em
Flandres. E que, praticando ele declarante com o dito Damião de Goes sobre
coisas da nossa santa fé católica, lhe ouviu ele declarante dizer muitas coisas
que ele testemunha para si tinha que eram heréticas. E por haver muito tempo que
passou, como acima declarado tem, e também por não pensar mais nisso, lhe não
lembram todas. Somente é lembrado que, perguntando-lhe ele declarante que se,
ele Damião de Goes, viesse a este reino de Portugal, que faria; e se iria à
missa, e se faria as outras mais coisas, como os outros cristãos fazem. E que o
dito Damião de Goes lhe respondeu que faria como os outros e que, em seu
coração, lhe ficaria e teria o que havia de ter. E que as práticas que ambos
passaram eram sobre os erros e heresias do Lutero. E que isto é o que sabe.
E sendo perguntado que quanto tempo praticou e comunicou com o dito
Damião de Goes sobre os erros de Lutero, e que declare especialmente sobre que
errores de Lutero comunicou com o dito Damião de Goes, disse ele testemunha que
praticou o dito Damião de Goes, nas sobreditas heresias de Lutero, por espaço
de dois meses, pouco mais ou menos, e que em o que praticavam ambos era, ao que
ao presente lhe lembra, a seu parecer, de “potestate Papae et de Confessione”.
E que, nestas coisas todas, via ele testemunha que o dito Damião de Goes
louvava a doutrina de Lutero; e que ao que ele testemunha via e entendia do
sobredito Damião de Goes, era que ele tinha a dita seita e heresia de Lutero. E
via que se deleitava muito e comprazia nela.
E disse mais ele testemunha que o dito Damião de Goes pode fazer muito
dano acerca das coisas da nossa fé católica, porque é homem avisado e sabe,
além do latim, alguma coisa de Teologia; e sabe a fala francesa e italiana, e
lhe parece também que saberá a flamenga e a alemã, porque andou muito tempo
entre eles.
E também disse ele testemunha que o dito Damião de Goes lhe dissera que
ele era grande amigo de um herege que se chamava Simon Grineus, o qual habitava
em Basileia; o qual Simon Grineus era tido dos luteranos em muita conta e
grande reputação, do qual o dito Damião de Goes dizia que recebia carta ou
cartas. E que ele Damião de Goes também lhe escrevia e respondia.
E disse mais ele declarante que sabia que o dito Damião de Goes tinha
muita autoridade entre os luteranos e que o dito Damião de Goes dissera a ele
testemunha que um cardeal, cujo nome ao presente lhe não lembra, lhe escrevera
a ele Damião de Goes, como a pessoa que com os luteranos poderia acabar alguma
coisa, escrevendo-lhe para que nisso entendesse.
E também ele testemunha ouviu dizer ao dito Damião de Goes que ele
falara com Lutero, e a outras pessoas ouviu também dizer que o dito Damião de
Goes fora discípulo de Erasmo, e que pousara com ele, dentro em sua casa, e
comia e bebia com ele.
E disse mais ele declarante que, quando disputava com o dito Damião de
Goes sobre as coisas da fé, ele declarante defendia as coisas da nossa santa fé,
e o Damião de Goes sustentava os errores de Lutero e se deleitava muito nisso,
como acima já tem dito, e que ao presente não era lembrado doutra coisa; que
lembrando-se o dirá». In Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na Inquisição,
Assírio & Alvim, 2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.
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