Ilustração de José Ruy
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… uma paixão como nunca houve mais nobre, mais grave, nem mais ardente.
Continuação da Quarta Carta
«Toda a gente se apercebeu da mudança radical do meu humor, das minhas
maneiras e da minha pessoa. A minha mãe falou- me disso, primeiro com aspereza
e depois com uma certa bondade. Já nem sei o que lhe respondi! Acho que lhe
confessei tudo!
As religiosas, mesmo as mais severas, têm pena do estado em que me
encontro e que até lhes inspira uma certa consideração e um certo respeito por
mim. Toda a gente está impressionada com o meu amor. Só tu permaneces nessa
profunda indiferença, sem me escrever senão cartas frias, cheias de banalidades:
metade do papel vem em branco e parece que estás morto por acabar depressa.
Dona Brites andou atrás de mim nestes dias para me fazer sair da minha
cela, e, julgando divertir-me, levou-me a passear para a varanda donde se
avista Mértola. Fui com ela, e logo me assaltou uma lembrança cruel que me fez
chorar todo o resto do dia. Voltou a trazer-me para dentro, e deitei-me na
cama, onde fiz mil reflexões sobre a pouca esperança que tenho de me vir a
curar alguma vez. Aquilo que fazem para me consolar torna mais aguda a minha
dor, e até nos remédios encontro particulares razões para me afligir!
Vi-te muitas vezes passar neste lugar com um ar que me encantava, e eu
estava naquela varanda naquele dia fatal em que comecei a sentir os primeiros
efeitos da minha infeliz paixão. Pareceu-me que me querias agradar, embora nem
me conhecesses.
Convenci-me de que me tinhas notado entre todas as que estavam comigo,
e imaginei que, quando passasses, ficarias contente se eu te visse melhor e se
admirasse a tua destreza e a boa graça quando montavas o teu cavalo.
Apoderava-se de mim um certo temor quando o fazias passar num lugar
difícil; enfim, interessava-me secretamente por todos os teus actos e sentia
bem que não me eras indiferente, tomando como sendo dirigido a mim tudo o que
fazias.
Sabes muito bem o que se seguiu a estes inícios; embora nada tenha de
me poupar, não devo descrever-tos, pois receio tornar-te ainda mais culpado do
que já és e ter de me censurar a mim por tantos esforços inúteis que faço para te
obrigar a ser-me fiel.
E tu não o serás: como posso eu esperar das minhas cartas e das minhas
censuras aquilo que o meu amor e o meu abandono não puderam sobre a tua
ingratidão?
Estou por de mais segura da minha desgraça. O teu injusto procedimento
não me deixa a menor razão para duvidar disso, e tudo tenho a recear, pois a
verdade é que me abandonaste.
Não se dará o caso de que só tenhas encantos para mim e não sejas
agradável aos olhos dos outros? Creio que não me desagradará que os sentimentos
dos outros justifiquem de algum modo os meus, e desejaria que todas as mulheres
da França te achassem amável, mas que nenhuma te amasse, que nenhuma te
agradasse. Este projecto ridículo é impossível! No entanto, tenho provas
suficientes de que não és capaz de grande persistência. Bem poderás esquecer-me
sem qualquer ajuda e sem que a isso sejas constrangido por uma nova paixão.
Devo pretender que tenhas algum pretexto razoável?
É verdade que eu seria mais infeliz, mas tu não serias tão culpado.
Bem vejo que ficarás em Franca, mesmo sem grandes prazeres, com inteira
liberdade.
A fadiga duma longa viagem, qualquer pequeno bem-estar, o receio de não
corresponder aos meus arrebatamentos, tudo isso te retém! Ah! não tenhas medo
de mim! Contentar-me-ei com ver-te de tempos a tempos.
Contentar-me-ei com saber que vivemos na mesma terra».
In Soror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas, texto da primeira
edição francesa de 1669, Europa América, 1974.
continua
Cortesia de P. Europa-América/José Ruy/ JDACT