Desenho de almadanegreiros
jdact e wikipedia
(Continuação)
«Em terceiro lugar, aproxima-as
a crença da exclusiva, intrínseca e ontológica autonomia estética do plano da
arte, condensada no conhecido pensamento de Eduardo Lourenço - a obra de arte é uma realidade absoluta, fundada
sobre o nada ontológico, cristalizando num mundo ficcional, emotivo, abstracto,
figurativo, geométrico…, o sentimento de ausência de mundo real, ou, em termos
mais simples, a obra de arte tem o seu fundamento em si própria.
Afastadas dos pruridos
republicanos e socializantes da Seara
Nova e da orientação comunista de Vértice a partir de 1945, saída de Eduardo Lourenço e entrada de Joaquim Namorado, as Córnio também se
diferenciam das restantes novas revistas da década de 50, ainda que com estas
partilhem o mesmo novo espírito europeu. Em concreto, o que as diferencia? Em primeiro lugar, as cinco Córnio,
publicadas entre 1951 e 1956, não personificam a visão conjunta de um grupo de
escritores ou pensadores, como é habitual em Portugal, mas a visão pessoal de José Augusto França, que as apresenta, não como revistas, mas
como antologias de textos solicitadas a autores seleccionados pelo próprio, são,
assim, indubitavelmente, expressão de um projecto individual sem par em toda a
década e, porventura, com raros paralelos na história da cultura portuguesa.
Que sentido cultural propõe o projecto pessoal de França entre 1951 e 1956,
quando é simultaneamente co-editor dos Cadernos
de Poesia, participa em Árvore
e Cassiopeia, e escreve abundantemente em jornais?
Presumimos que o seu projecto se encontra sintetizado na citação que faz de Rimbaud
em Pentacórnio (31/12/56):
Il faut être absolument moderne, isto é, José Augusto França intentaria resgatar o genuíno espírito do
modernismo de Amadeo, de Santa Rita, de Pessoa, de Almada, de Pacheko, um espírito sem forma nem
conteúdo explícitos, concretos, que, europeiamente, nos anos 50, permitisse
assumir as novas formas e conteúdos estéticos, ou, dito de outro modo, enterrar
os anteriores cinquenta anos de cultura em Portugal, conforme síntese da
primeira metade do século XX em Portugal, em Tetracórnio, 1955, abrindo-a a novíssimas e instigantes
experiências estéticas.
Em terceiro lugar, e
como consequência dos anteriores, as Córnio
constituem-se como a primeira revista ensaística portuguesa a exprimir, em
Portugal, o novo espírito cultural
europeu pós-II Guerra Mundial, não o espírito da nova poesia, as novas
revistas citadas, ou da nova filosofia, a fenomenologia e o existencialismo
constantes dos artigos da bracarense e jesuítica Revista Portuguesa de Filosofia, 1945, da coimbrã Revista Filosófica, 1951, de Joaquim de Carvalho, e da lisboeta 57, de António Quadros, vinculando o existencialismo ao espiritualismo
português, mas do ensaísmo em geral, o
ensaísmo sem quê nem porquê, senão levar o pensamento a pensar, um ensaísmo aberto, abertíssimo, cujos pontos
de partida e final se encontram apenas limitados pela humanidade existencial do
homem; do ponto específico da década, um ensaísmo anti-realista, anti-psicologista,
anti-académico e anti-dogmático, ou seja e de novo, um ensaísmo à Almada, à Pessoa e à António Pedro.
Em quarto lugar, como síntese
concreta das anteriores diferenças, seria forçoso reunir nas Córnio toda a juventude poética, pictórica, crítica e
ensaística da década de 50 que não se revia já no presencismo, no academismo,
no neo-realismo e no republicanismo liberal da I República, eis a causa do
imenso caldeirão revolucionário que constitui a totalidade dos seus cinco
números, reunindo a juventude cultural de horizonte estético europeu:
- António Ramos Rosa, José
Blanc de Portugal, Rui Cinatti, um Adolfo Casais Monteiro pós-presencista,
Sophia, Jorge de Sena, Eduardo Lourenço, Alexandre O’Neill, Tomás Ribas,
Alberto de Lacerda, Fernando Lemos, Fernando Azevedo, o juvenilíssimo Alfredo
Margarido, Vespeira, Delfim Santos e José Marinho, David Mourão-Ferreira, o
crítico literário nem-presencista-nem-neo-realista José Pedro de Andrade, José
Terra, António Quadros, Carlos Eduardo Soveral, Óscar Lopes… e, perfazendo a
ponte com o passado, inéditos de Fernando Pessoa, Almada, António Pedro e de um
António Sérgio pós-ruptura com a Seara
Nova.
Um impressionante leque
de pensamento e arte aberto às novas correntes estéticas europeias! Para compor
o imenso ramalhete do novo, apenas falta Eugénio
de Andrade. É a cultura portuguesa da segunda metade do século a abrir-se à
Europa, anunciando um mundo novo, sem os epígonos de Eça e Camilo, de António
Nobre e António Patrício, de Malheiro
Dias e Júlio Dantas».
In Inicórnio, ETC., Mostra
Documental, 2006-2007, apresentação de José Augusto França, Biblioteca
Nacional, 2006, A década de 50 e as Córnio,
Miguel Real, ISBN 978-972-565-413-2.
continua