quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Obra Poética. Sophia de Mello Breyner Andresen. «Mistério das luzes e das sombras sobre os caminhos de areia, rios de palidez em que escorre sobre os campos a lua cheia, ansioso subir de cada voz, que na noite clara se desfaz e morre»

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Poesia I, 1944

Apesar das ruínas e da morte,
onde sempre acabou cada ilusão,
a força dos meus sonhos é tão forte,
que de tudo renasce a exaltação
e nunca as minhas mãos ficam vazias.


Noite
Mais, uma vez encontro a tua face,
ó minha noite que eu julguei perdida.

Mistério das luzes e das sombras
sobre os caminhos de areia,
rios de palidez em que escorre
sobre os campos a lua cheia,
ansioso subir de cada voz,
que na noite clara se desfaz e morre.

Secreto, extasiado murmurar
de mil gestos entre a folhagem,
tristeza das cigarras a cantar.

Ó minha noite, em cada imagem
reconheço e adoro a tua face,
tão exaltadamente desejada,
tão exaltadamente encontrada,
que a vida há-de passar, sem que ela passe,
do fundo dos meus olhos onde está gravada.

Poemas de Sophia Breyner Andresen, in ‘Obra Poética’


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Raiz de Orvalho. Mia Couto. «Qualquer coisa, pergunta-me qualquer coisa, uma tolice, um mistério indecifrável, simplesmente para que eu saiba que queres ainda saber, para que mesmo sem te responder saibas o que te quero dizer»

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Saudade
Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura,
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés.

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar,
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas.

Seja eu de novo tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio,
tua virtude, tua carência,
eu
que longe de ti sou fraco,
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta.

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água,
dá ocupação à minha ternura vadia,
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono.
In 1979


Pergunta-me
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo,
se acendes ainda
o minuto de cinza,
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue.

Pergunta-me
se o vento não traz nada,
se o vento tudo arrasta,
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos.

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas,
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser.

Se eras tu
que reunias pedaços do meu poema,
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente.

Qualquer coisa,
pergunta-me qualquer coisa,
uma tolice,
um mistério indecifrável,
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber,
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer.
In 1981

Poemas de Mia Couto, in ‘Raiz de Orvalho’

JDACT

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A Fortaleza de Monsanto. Beira Interior. «De um Românico tardio, já trecentista, é o mais eloquente testemunho do bairro residencial intra-muralhas, que Duarte de Armas desenhou, e que, no século XVIII, possuía ainda vinte fogos, mas que acabou por ser abandonado»

 
jdact, cortesia de wikipedia e igespar

«Sabe-se muito pouco acerca das origens do castelo de Monsanto. Apesar de, durante muito tempo, se ter considerado a existência de um castro proto-histórico, posteriormente romanizado, a verdade é que, à excepção da vila de São Lourenço, no sopé do monte, nada mais apareceu que relacione esta fortaleza com um passado pré-medieval. De resto, as informações concretas só aparecem no reinado de Afonso Henriques, altura em que Monsanto desfrutou de uma posição privilegiada de fronteira. Face a Leão mas, principalmente, frente aos Almóadas, o nosso primeiro monarca passou-lhe foral em 1174, numa altura em que o retrocesso cristão se fazia já sentir.
Neste mesmo contexto, Monsanto e Idanha foram doados à Ordem dos Templários, encarregues de efectivar a defesa da capital do reino, Coimbra, pelo Sul e pelo Leste. A fortificação por eles erguida não chegou até aos nossos dias. Com certeza seria um castelo plenamente românico, com torre de menagem isolada no centro do recinto interior, como as fortalezas templárias contemporâneas de Tomar, Almourol ou Pombal.
Duarte de Armas, nos inícios do século XVI, desenhou um castelo com cinco torres, sendo uma, a central e mais alta, de menagem. Infelizmente, de todas essas, apenas uma, a Torre Atalaia, ou Torre do Pião, se mantém parcialmente, assim como modificada foi a estrutura que protegia a entrada principal, ao que tudo indica um cubelo redondo. Também a cintura de muralhas foi bastante adulterada, não restando troços significativos da estrutura medieval.



Para estas alterações, muito contribuíram as guerras peninsulares, nos inícios do século XIX. Enquanto que a história da aldeia de Monsanto foi a de uma descida persistente da população, em busca de melhores condições, o castelo permaneceu, durante largos séculos, como uma das mais impressionantes estruturas militares da Beira Interior, cuja relevância militar não passou despercebida a sucessivos exércitos. Em 1813, o major Eusébio Cândido Furtado deixou-nos uma relação dos trabalhos efectuados. Por ela apercebemo-nos da amplitude desta reforma:
  • demolição de cinco torres;
  • construção de três novas baterias para protecção da entrada;
  • construção de um baluarte paralelo à muralha;
  • aproveitamento da igreja do interior do recinto para armazém, etc.
Anos depois, a explosão do paiol, no interior do castelo, e o desabamento de um rochedo granítico, que arrastou parte da muralha, foram determinantes para a destruição da fortaleza templária. Por esta caracterização sumária, facilmente se compreende como o aspecto actual do castelo pouco tem que ver com o período medieval. A fortaleza original, organizada em dois recintos, a alcáçova e a cerca que limitava o primitivo núcleo populacional, possuía outros tantos templos. No interior, a igreja de Santa Maria, edifício que chegou até nós como uma obra barroca demasiado adulterada. No exterior, perto da entrada principal, a pequena capela de São Miguel, modesto templo de nave única, que chegou até hoje como uma quase-ruína, destelhado e com acentuado desgaste de cunhais e de paredes.




De um Românico tardio, já trecentista, é o mais eloquente testemunho do bairro residencial intra-muralhas, que Duarte de Armas desenhou, e que, no século XVIII, possuía ainda vinte fogos, mas que acabou por ser abandonado, por se situar demasiado longe dos locais de abastecimento. À entrada, e sem aparente relação com este templo, um conjunto de sepulturas escavadas na rocha, bastante destruído, poderá, um dia, vir a confirmar uma ocupação humana medieval anterior ao reinado de Afonso Henriques». In PAF, IGESPAR.


A lenda da Santa Cruz
«O castelo está ligado à tradição da principal celebração de Monsanto, a Festa da Santa Cruz. Originalmente uma tradição profana ligada ao ciclo da Primavera, foi cristianizada e associada ao lendário cerco do castelo, segundo algumas versões pelas tropas do pretor Lúcio Emílio Paulo em fins do século II a. C., segundo outras a um ataque dos mouros por volta de 1230, ou até posteriormente durante as lutas com Castela. Em qualquer hipótese, os inimigos sitiantes procuraram vencer pela fome os defensores do castelo. A tradição refere que o cerco se prolongava já por sete longos anos, quando intramuros restavam apenas uma vitela magra e um alqueire de trigo. Uma das mulheres sugeriu então um estratagema desesperado para iludir o inimigo. Alimentaram a vitela com o último trigo, lançando-a com alarde por sobre os muros do castelo, na direção dos sitiantes. Despedaçando-se contra as rochas, do ventre da vitela espalhou-se o trigo, abundantemente. Com essa manobra, o inimigo entendeu que os defensores ainda se encontravam milagrosamente providos de alimento, protegidos pela providência divina, levantando o cerco e se retirando da região.


O episódio é atribuído a um dia 3 de Maio, dia da Santa Cruz, razão pela qual nesta data, anualmente, as mulheres do povoado se vestem com as suas melhores roupas e, ao som de adufes e canções populares, agitando marafonas, bonecas, coloridas com armação em cruz, algumas com potes caiados de branco, decorados e cheios de flores à cabeça, partem da povoação em direcção ao castelo. No interior do castelo, do alto das muralhas, os potes brancos, simbolizando a vitela, são lançados em direção ao exterior, revivendo simbolicamente o episódio da salvação da vila».

O castelo e as muralhas de Monsanto encontram-se classificados como Monumento Nacional por Decreto publicado em 29 de Setembro de 1948.

Cortesia de IGESPAR/Wikipédia/JDACT

Zé Povinho sem Utopia. Ensaio sobre o estereótipo nacional português. João Medina. «[...] o governo de los Padres [...]. É uma coisa admirável este governo. [...]. Los Padres ali têm tudo e “os povos nada”. É a obra prima da razão e da justiça. […] qual los padres eram agora os “Porcos”, os membros do “Partido”, aqueles que decretavam»

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Edenismo e utopismo
«Tornando ao utopismo: se o pensamento criativo e herético de um inexistente Topos a construir ou Civis virtual a edificar um dia, lugar inexistente ou não-lugar (U-topos), como programa político vindouro ou futurante, ainda que de algum modo prefigurado pelo Platão da Politeia, nasce verdadeiramente com o subversivo Morus, o facto é que, entre nós, semelhante concepção arquitectónico-conceptual não teve quem seguisse a lição ou a simples sugestão como género de nova visão do paraíso:
  • a nossa tão abundante literatura de viagens em nada aponta nesse sentido perigosamente inovador, pois o que ali achamos é sobretudo exotismo, deslumbramento perante uma natureza diferente, luxuriante e vivaz, o diverso, o paradisíaco, como o demonstrou o historiador brasileiro Sérgio Buarque Holanda no seu estudo clássico sobre esse mesmo tópico.
NOTA: Sérgio Buarque Holanda insiste no deslumbramento poético dos portugueses ao darem com a luxuriante natureza tropical do mundo novo e lembra ainda que não houve mito do Bom selvagem nos portugueses, nem nos nossos descobridores do Brasil, nada que se assemelhasse à defesa dos índios feita por um Las Casas. E remata: aquela visão relativamente plácida das terras descobertas, que se espelha nas descrições de seus viajantes, já se ressente, por menos que o pareça, de um conservantismo fundamental. [...]. O facto é que desse conservantismo fundamental, e tanto mais genuíno quanto não é em geral deliberado, parecem ressentir-se as actividades dos portugueses mesmo nas esferas em que chegaram a realizar obra pioneira. [...]. Mesmo comparada à dos castelhanos, tão aferrados como eles a tudo quanto, sem dano maior, pudesse ainda salvar-se do passado medieval, sua obra ultramarina é eminentemente tradicionalista.

Este edenismo português dos Descobrimentos de um Novo Mundo achado em terras realmente virginais do Brasil, ou mesmo em África ou ainda nessa Ásia que, de igual modo, nos aparecia de todo estranha e exotíssima, não era, nunca seria de facto utópico. Algo de semelhante ou equivalente se dava com os nossos vizinhos ibéricos no mesmo afã de descobertas e conquistas do Novo Mundo nas mesmas paragens ameríndias, já que a única autêntica utopia que eles ali edificaram foi prática, não conceptual, referimo-nos às reduções jesuíticas do Paraguai, a Republica do Paraguai, experiência de ditadura teocrática cristã que teria o seu conhecido epílogo no século XVIII, quando lusos e espanhóis se coligassem para derrubar aquela Cidade de Deus edificada pelos loiolanos, tema de actualidade por via da célebre fantasia cinematográfica de Roland Joffé, A Missão (1986), demasiado interessada em mostrar a maldade laicizante dos soberanos ibéricos contra a alegadamente idílica e utópica república guarani, esquecendo a fórmula acertadamente ácida que dela dera Voltaire no capítulo XIV do Candide (1759):
  • [...] o governo de los Padres [...]. É uma coisa admirável este governo. [...]. Los Padres ali têm tudo e os povos nada. É a obra prima da razão e da justiça.
Menos de dois séculos depois, uma outra alegoria satírica de um regime totalitária, o sistema soviético russo, merecia a Orwell um verdadeiro remake chamado Animal Farm, no qual los padres eram agora os Porcos, os membros do Partido, aqueles que decretavam que, embora todos fossem iguais, alguns havia ainda mais iguais do que outros…» In João Medina, Zé Povinho sem Utopia, Ensaio sobre o estereótipo nacional português, C. M. de Cascais, ICES, Cascais, 2004, ISBN 972-637-118-X.

Cortesia da CM de Cascais/JDACT

A Paixão. Tetralogia Lusitana. Almeida Faria. «… após termos comido lavaremos as mãos nas águas da ribeira e juntos partiremos pela planície. Será na Primavera. No princípio de tudo. O sol cairá a pique sobre nossas cabeças quando enfim alcançarmos as portas da cidade»

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João Carlos
«São mais que horas, pensou ele, acordando; está já muito calor e hoje é o dia; na vila haverá vozes, altas e lamentosas, dos animais que morrem; imolarei também; ele é, o nosso cordeiro, como as palavras mandam; sem mancha, macho, dum ano; agora vou matá-lo, dentro da madrugada; num golpe brusco, grave, lhe abrirei a garganta, com a faca que gargantas abriu já antes desta, que a sóis outros brilhou iguais ao de hoje, que outrora se cobriu do mesmo sangue; depois caminharei para os canaviais que se vergam ao vento e com a faca tinta do sangue cortarei um tubo na própria cana verde e nele aplicarei os lábios e sentindo o aroma fresco e leve insuflarei a pele do carneiro e ela se encherá e o esfolarei e o tomarei pela cauda e cor… tenros e de uma árvore o hei-de pendurar pelos dedos e ele dará às folhas o último arrepio e lhe descerrarei o ventre desde a base do queixo até ao escroto e amoravelmente meterei as mãos no interior das vísceras e um calor antigo me subirá dos braços para a boca e a boca saberá o cheiro do sangue e as tripas rolarão para a terra em que o sangue começa a empapar e esfolado o borrego a cabeça é uma mancha roxa de mandíbulas longas e feito este trabalho cortarei um pedaço da carne do lado e sobre as brasas prepararei a carne com pães ázimos e silvestres alfaces festejaremos a preparação da Páscoa e após termos comido lavaremos as mãos nas águas da ribeira e juntos partiremos pela planície; será na Primavera; no princípio de tudo; o sol cairá a pique sobre nossas cabeças quando enfim alcançarmos as portas da cidade; são coisas de direito divino, coisas santas, os muros e portas da cidade». In Almeida Faria, A Paixão, 1965, Editorial Caminho, O Caminho da Palavra, Lisboa, 6ª edição, 1986.

Cortesia de Caminho/JDACT

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Poesia e Metromania. Inscrições Setecentistas, 1750-1820. Fernando Matos Oliveira. «A teoria a que Compagnon se refere não é a teoria que hoje se espraia sobre a mesa dos estudos de teor culturalista. A teoria a que se refere é sobretudo relativa à coisa literária ou, quando muito, a uma epistemologia da literatura passível de conversão analítica e descritiva»

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Literatura, teoria e cultura
Examinatio: a teoria como programa
«No campo dos estudos literários, considerando o amplexo temporal que medeia entre o paradigma filológico-literário e o paradigma culturalista, as décadas de sessenta e de setenta do século passado surgem-nos marcadas pela dramatização da teoria, o agente provocador nas negociações críticas mais recentes entre a literatura e a cultura. Colocando a questão em termos narrativos, enquanto objecto de estudo, a literatura começou por ser alvo de um investimento crítico no seio de uma comunidade relativamente consensual quanto à natureza e ao valor do literário. A constituição do moderno conceito de literatura acompanhou a sua inscrição simultânea num trajecto estético relacionado com a reconceptualização iluminista dos saberes, em contiguidade com a autonomização do literário enquanto pulsão contrafactual, e ainda num trajecto sócio-cultural progressivamente identificado com a expansão de classes burguesas, justamente até à consumação do Estado-Nação. No âmbito da construção e publicitação das nacionalidades modernas, a literatura constitui um repositório patrimonial e linguístico que credita simbolicamente a sociedade (Gesellschaft) liberal-burguesa com um capital cultural que a identifica e une enquanto comunidade (Gemeinschaft).

NOTA: Neste contexto, a Crítica da Faculdade do Juízo de Kant constitui uma das tentativas fundadoras para resolver, por via da experiência estética, a separação entre o conhecimento racional e o universo contingente das sensações. Mas a dificuldade de uma reconciliação no território do belo seria enfatizada logo no próprio texto kantiano, pois a especulação em torno do carácter inapreensível do sublime acaba por correr paralelo à constituição histórica de um discurso potencialmente infinito sobre a própria literatura, mais ainda quando as poéticas do génio radicalizam o processo moderno de subjectivação e autonomização do estético.

No contexto desejavelmente orgânico da nação, tanto o teatro, a literatura, como as demais expressões artísticas encontram nesse território simbólico uma legitimação suficiente, adoptada pelos principais institutos de reprodução cultural, como a escola e as universidades. A discussão sobre o não-lugar da literatura na contemporaneidade aciona, pois, um quadro narrativo que solicita simultaneamente a revisão do conceito de comunidade, a revisão do papel hegemónico do literário na criação de universos contingentes e a revisão do próprio conceito de literatura. A depreciação histórica do literário supõe, portanto, uma crise nas condições que anteriormente regulavam a sua existência, incluindo a tradição filológica que havia sustentado a sua ascensão crítica e patrimonial no universo progressivamente diferenciado e instrumentalizado das letras.
A destabilização crítica deste paradigma ocorre, no âmbito estrito dos estudos literários, com a ascensão da teoria, um metadiscurso que viria a pairar como um espectro sobre os departamentos tradicionalmente dedicados ao estudo da literatura. A teoria surge na paisagem académica como um discurso fortemente especulativo e auto-reflexivo, com uma enorme capacidade capaz de fazer migrar o seu trabalho conceptual em múltiplas direcções. Até então, a filologia determinara as fronteiras da História Literária e os limites do exercício escolar ou profissional da crítica, manifestamente comprometida com as impressões do leitor. A teoria infiltra-se nas práticas de leitura e comentário institucionalizadas no meio literário com o efeito demoníaco das matérias perturbadoras. Quando a instituição literária, formatada por quase dois séculos de trabalho predominantemente filológico, vê ameaçada uma agenda construída sobre o terreno nacionalizado e pacificado das Humanidades, a teoria tornou-se o alvo óbvio de resistência, mais precisamente, de resistência à dissolução de certa ideia de literatura e de estudos literários. A própria dimensão especulativa que caracteriza o investimento teórico constituía um obstáculo suplementar à sua integração em sede escolar, um contexto mais receptivo a versões estabilizadas, instrumentais ou propriamente identitárias do corpus literário. O que na altura motivou a reacção da academia, tanto em contexto americano como europeu, foi precisamente o carácter reflexivo e sistemático que fazia o procedimento teórico divergir das abordagens descritivistas e expressivistas tradicionalmente associadas ao contacto escolar com o texto. O apogeu teórico vivido nos anos sessenta e setenta constitui hoje um percurso que é já passível de reconstituição histórica, não sem aquela dose de nostalgia que Antoine Compagnon atribui a quem tenha assistido ao fim do êxtase teórico ou, o que vai dar ao mesmo, à domesticação escolar do contra-discurso proposto originalmente pela teoria:
  • Sous diverses appellations, nouvelle critique, poétique, structuralisme, sémiologie, narratologie, elle brillait de tous ses feux. Quiconque a vécu ces années féeriques ne peut s’en souvenir qu’avec nostalgie. Un courant puissant nous emportait tous. En ce temps-là, l’image de l’étude littéraire, soutenue par la théorie, était séduisante, persuasive, triomphante. Ce n’est plus exactement le cas. La théorie s’est institutionnalisée, elle s’est transformée en méthode, elle est devenue une petite technique pédagogique souvent aussi desséchante que l’explication de texte à laquelle elle s’en prenait alors avec verve. In Compagnon, 1998.
A teoria a que Compagnon se refere não é, contudo, exactamente a teoria que hoje se espraia sobre a mesa dos estudos de teor culturalista. A teoria a que se refere é sobretudo relativa à coisa literária ou, quando muito, a uma epistemologia da literatura passível de conversão analítica e descritiva. A história desta teoria foi já contada uma e outra vez; dispomos actualmente de um número considerável de estudos, de monografias e de antologias. Foi com base nesta tradição teórica que se constituíram quadros descritivos com largo impacto na formação de gerações de leitores, orientados sobretudo para a compreensão da especificidade do literário. A teoria procurava, em primeiro lugar, responder ainda à pergunta Qu’est-ce que la littératureIn Fernando Matos Oliveira, Poesia e Metromania, Inscrições Setecentistas, 1750-1820, Dissertação de Doutoramento em Letras, na área de Línguas e Literaturas Modernas, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 2008.

Cortesia da Universidade de Coimbra/JDACT

Lisboa. Urbanismo e Arquitectura. José Augusto França. «O centro desta zona seria a parte mais povoada da urbe, comportando uma via principal, entre Sant’António da Sé e as Portas dos Sol, e um bairro de maior luxo, entre a Madalena, S. Mamede e S. Nicolau. Pelo meio, o Forum, junto à basílica, ou outro templo, que estaria na base da futura Sé; ao cimo do monte, um castellum defensivo»


Cortesia de wikipedia e jdact

A Cidade Medieval
«Lisboa nasceu do rio, do largo estuário do Tejo que nos princípios do Quaternário se sabe estar unido ao Sado na grande depressão hispano-lusitânia na qual emergia como ilha a serra da Arrábida. Do Paleolítico em diante, já há muito definida a península fronteira, o sítio futuro de Lisboa teve habitantes que deixaram vestígios de instrumentos e objectos de indústria no seu solo arqueológico, e logo pelo monte cimeiro do estuário, a poente, uma das sete colinas que algo confusamente se nomeariam no século XVII. O sítio, protegido do oceano mas a ele ligado por águas tranquilas, com montes e vales férteis sob um clima ameno, naturalmente atraiu populações que sucessivamente invadiram e ocuparam o território extremo da península da Hispania, no dizer dos Fenícios que terão sido os primeiros povoadores mais demorados do local a que deram o possível nome qualificativo de Alis ubbo, com o significado suposto de enseada amena. Permaneceram seis séculos, do XVII ao VI a. C., sem que até nós chegassem vestígios seus, e cederam lugar a Gregos e Cartagineses, e estes, cerca de 195 a. C., aos Romanos seus vencedores, ocupantes se define e organiza.
Instalados durante mais de seis séculos no local já conhecido, os Romanos chamaram-lhe Olisipo e Olisipone, que, por confusão com Odysseia, que Estrabão situa na Andaluzia, dizendo-a fundada por Ulisses-Odysseus por este se supôs fundada, numa lenda adoptada por Damião de Góis e de persistente memória, e Felicitas Julia, como posterior nome oficial, em homenagem a Júlio César. Ali desenvolveram eles uma colonização que passava pela edificação do equipamento cívico necessário à sua civilização. Nada restou disso, a não ser vestígios epigráficos e um ou outro elemento arquitectónico descoberto no subsolo da cidade desde meados do século XVIII, com especial relevo para um vasto teatro dedicado a Nero que foi objecto recente de escavações, na zona de S. Mamede-Caldas. Uma inscrição data-o de 57 d. C.. Na mesma zona existiram termas dos Cassios, construídas por 49 a. C. e reconstruídas em 336 d. C.; e na Rua da Prata, esquina da Rua da Conceição, outras termas dos Augustaes, construídas sob Tibério (c. 20-35 d. C.) e reconstruídas sob Constantino, como as outras. À Madalena existiu uma grande construção, provavelmente um templo consagrado a Cibele, cujos vestígios revelam importância e riqueza. Outro, dedicado a Tétis, terá existido também no local da Igreja de S. Nicolau, e encontraram-se vestígios duma torre ou atalaia romana na esquina da Rua da Conceição com a dos Sapateiros,  enquanto uma tradição discutida supõe implantada ao alto da Rua Vítor Cordon uma casa de recreio dos pretores.
Tais são as notícias mais ou menos concretas que chegaram até nós, e, a partir delas e de outros vestígios, registando os locais referidos, pôde tentar-se esboçar um traçado hipotético da urbanização de Olisipo. Aparece ali um sistema de vias, a primeira das quais, partindo do sítio actual das Portas do Sol-Contador-mor, circundaria o monte do Castelo a meia encosta, bifurcando-se em Santo André, para Norte, pela calçada de Santo André e Olarias, e, para nascente, na direcção de S. Vicente, círculo que seria cortado por uma secante entre a Porta da Alfofa e S. Tomé; outra via, saindo também do Contador-mor, partiria para poente até à Porta do Ferro, a Sant’António da Sé, e seguiria para Norte, pela Madalena, S. Mamede e S. Nicolau, para S. Domingos, bifurcando-se em S. Nicolau para atingir o Borratém e prosseguir pela Mouraria e Benformoso; da Porta do Ferro partiria outra via para nascente, até à Porta da Alfama e daí pela linha das ruas dos Remédios e do Paraíso.
O centro desta zona seria a parte mais povoada da urbe, comportando uma via principal, entre Sant’António da Sé e as Portas dos Sol, e um bairro de maior luxo, entre a Madalena, S. Mamede e S. Nicolau. Pelo meio, o Forum, junto à basílica, ou outro templo, que estaria na base da futura Sé; ao cimo do monte, um castellum defensivo».
In José Augusto França, Lisboa. Urbanismo e Arquitectura, Director da Publicação Álvaro Salema, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, série Artes Visuais, Instituto Camões, 1980.

Cortesia de I. Camões/JDACT

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

A Reconstrução de Lisboa e a Arquitectura Pombalina. José Augusto França. «… finais de Quinhentos e do século seguinte, o Bairro Alto, em termos de arquitectura e de urbanismo racional, e o aqueduto que em França se descrevia como a mais magnífica e a mais sumptuosa empresa (do) género, terminado em 1748. Bairro e aqueduto pouco ou nada sofreram com a “catástrofe de 1755”»


jdact e cortesia da wikipedia

O Terramoto. Seus Efeitos e Medidas Tomadas
«A história de Lisboa, e com ela a do país inteiro, ficou marcada pelo terramoto que, na manhã de 1 de Novembro de 1755, destruiu quase completamente a velha cidade que vivia então os restos da sua opulência. Numerosos tremores de terra ela sofrera já através dos séculos, os de 1531 e 1597 foram especialmente calamitosos, jamais, porém, com a intensidade e a magnitude deste, que foram posteriormente calculadas em adiantado, ou no último, grau das escalas sismológicas de MSK e de Richter, e pela primeira vez na história isso acontecia a uma cidade de um quarto de milhão de habitantes.
Uma vasta literatura internacional, em que figuram os nomes de Voltaire e de Kant, ocupou-se do trágico acontecimento, figurado também em numerosas gravuras de fantasia por todo o lado publicadas. Mais fiéis, por terem sido gravadas sobre esbocetos feitos no local, as de Philippe Le Bas, gravador régio em Paris, permitem-nos avaliar, em construções monumentais, a amplitude e o significado dos danos.
Não que Lisboa fosse uma cidade monumental: ela crescera, desde os tempos medievais, dentro e fora de duas sucessivas muralhas, a dos Mouros e a do rei Fernando, concentrara-se na planura, perto do Tejo, a poente do castelo que a defendera, e espalhara-se pelas colinas, num constante contacto rústico. Na altura do terramoto, um memorialista digno de fé, Ratton, descreve-a num recinto que abrangia o bairro de Alfama, bairro do Castelo, Mouraria, rua nova, Rocio, bairro alto, Mocambo, Andaluz, Anjos e Remulares, contando no resto, que logo depois conheceu princípio de urbanização, Santa Clara e Sant’Ana, o Salitre, Cotovia de baixo e de cima, Boa Morte e Alcântara, apenas algumas casas aqui e acolá à borda de caminhos que atravessavam por terras cultivadas.

Gravura de La Bas

Gerada, nos seus bairros, em torno de igrejas paroquiais e de palácios da nobreza, em aglomerados populacionais que se iam encadeando, a cidade jamais contara com projectos ou reformas de urbanismo e a denúncia da fábrica que falece à cidade de Lisboa feita em 1571 por Francisco de Holanda teve sucessivas verificações nas páginas de viajantes estrangeiros. Todos os (...) que vêm a Lisboa se admiram de não encontrar um edifício que mereça a menor atenção, escreveu-se já em 1755. Uma cidade de África, dizia um cronista francês, uma fermosa estrivaria, acrescentava o Cavaleiro de Oliveira do seu exílio londrino…
Na verdade, as suas ruas estreitas, sujas e incómodas, a incomodidade das suas casas e o vazio dos seus palações definiam estruturas e hábitos que uma arquitectura pobre simbolizava, com algumas excepções, num ou noutro palácio mais cuidado a partir do domínio espanhol seiscentista, cujo arquitecto titular, o italiano Filippo Terzi, fornecera à cidade o modelo duma igreja, S. Vicente-de-Fora, e um palácio real que, sucessivamente embelezado, seria, na primeira metade do século XVIII, sob João V, a expressão dum gosto faustoso que o novo ouro do Brasil e os seus diamantes pagavam. O rei-sol português, empenhado na obra do convento-palácio-igreja de Mafra, não pôde, porém, dar corpo ao seu sonho de uma grande igreja patriarcal e dum grande palácio que Iuvara chegou a vir estudar a Lisboa, e a decoração dos dois edifícios de que dispunha havia de bastar-lhe. Ao mesmo conjunto arquitectónico consagrou o rei José I, subido ao trono em 1750, todo o seu interesse, especialmente manifestado pela edificação dum luxuoso teatro de Ópera, traçado em Itália por um Bibiena, e inaugurado sete meses antes do terramoto que inteiramente o destruiu.


Duas obras vinham, porém, deste passado variado que contrastavam com o seu teor ocasional: um bairro, construído a partir dos princípios do século XVI e sobretudo significativo na vida lisboeta dos finais de Quinhentos e do século seguinte, o Bairro Alto, que beneficiara da vizinhança dos Jesuítas de S. Roque, senão, em termos de arquitectura e de urbanismo racional, do seu espírito severo e rígido, e o aqueduto que em França se descrevia como a mais magnífica e a mais sumptuosa empresa (do) género, e, terminado em 1748, fora devido a impostos lançados durante o reinado de João V. Bairro e aqueduto pouco ou nada sofreram com a catástrofe de 1755». In José Augusto França, A Reconstrução de Lisboa e a Arquitectura Pombalina, Director da Publicação António Quadros, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Oficinas Gráficas da Minerva do Comércio, Instituto Camões, 1986.

Cortesia de I. Camões/JDACT

Do Iluminismo Pombalino à afirmação arquitectónica romântica em Portugal. António Santos Leite. «… tradicionalmente ligado à valorização de uma aristocracia de corte, e a valorização de uma burguesia liberal e a posterior ruptura política com o “iluminismo pombalino”, que, pela reacção conservadora da “viradeira”, não perduraria o seu ímpeto após o afastamento do seu principal promotor»

Plano da Baixa Pombalina, terceiro quartel do século XVIII
Cortesia de wikipedia e jdact

«Embora possa surgir como um contexto circunstancial, à semelhança do que vinha acontecendo um pouco por toda a Europa, também em Portugal começou a fazer-se sentir uma crescente afirmação burguesa de carácter iluminista, afirmação que encontrará, pelo menos em parte, resposta na ambígua política promovida pelo marquês de Pombal (1699-1782) a partir de meados do século XVIII. Esta política, despótica mas programaticamente esclarecida, veio reformar a anterior estabilidade e hierarquização da vida nacional e da sua corte, iniciando, apesar de se fundamentar sobre uma ordem absoluta, uma transição voluntariosa entre a anterior ordem de fundamentação aristocrática e clerical e uma nova sensibilidade social, que implicava a ...afirmação plena do individualismo, a perspectivação teórica da liberdade, o entendimento do progresso como eixo de uma teleologia liberal..., que a começava a transformar estruturalmente, processo que fundamenta a emergência da sociedade burguesa que se assumirá com os novos regimes liberais e capitalistas. As reformas, promovidas paradoxalmente pela iniciativa régia através do seu principal ministro, começaram a levar a efeito uma ruptura inconciliável entre a antiga aristocracia de corte, de clara vocação barroca e com limitadores preconceitos de classe, e uma nova elite burguesa promovida pelos lucros de actividades ligadas à prática comercial e ao transporte marítimo com os territórios ultramarinos; processo que será politicamente acentuado pela dinâmica de mudança implícita à destruição / reconstrução económica e social permitida pelo grande terramoto de 1775.


Gravuras do terramoto de 1755, Eugénio Santos
Cortesia de wikipedia e jdact

De facto, a acção devastadora provocada por este acontecimento veio alterar profundamente o equilíbrio de forças até então existente; o descrédito na valorização do divino e a urgência de uma intervenção rápida e eficaz veio servir de argumento à obtenção de plenos poderes por parte do marquês de Pombal, bem como a destruição física da Capital do Reino e do Império, permitiu a oportunidade efectiva da construção de um novo mundo racionalizado e burguês, que se conformaria numa nova cidade que rejeitava espacialmente a anterior hierarquização religiosa, afirmando programaticamente como centro simbólico uma praça real que, simultaneamente, era agora também assumida como a praça do comércio. Na verdade, a cidade iluminista promovida pela vontade do marquês e pelo risco dos seus engenheiros militares veio transformar o palco central dos acontecimentos da vida portuguesa, refundando-a e regrando-a sobre uma uniformização que estruturava corporativamente as profissões e negava a anterior predomínio urbano dos edifícios religiosos e aristocratas, à excepção, como é evidente, da figura única e absoluta do seu rei. No entanto, neste processo de reestruturação social que implicou uma nova concepção do espaço urbano, dois factos tendem ainda a revelarem-se como incontornáveis; a ambiguidade e anacronismo existente entre a afirmação simultânea de um poder absoluto, tradicionalmente ligado à valorização de uma aristocracia de corte, e a valorização de uma burguesia liberal e a posterior ruptura política com o iluminismo pombalino, que, pela reacção conservadora da viradeira, não perduraria o seu ímpeto após o afastamento do seu principal promotor.
Para além dos efeitos da acção reformadora pombalina, feita ambiguamente de progresso, contradição e retorno, retorno esse que é paradigmaticamente afirmado pela barroca Basílica da Estrela, (iniciada em 1779, portanto apenas dois passados do inicio do reinado de D. Maria I, o complexo conventual da Estrela, dedicado ao culto do Sagrado Coração de Jesus, pode ser interpretado quer pela sua específica implantação urbana, quer pela linguagem arquitectónica utilizada na sua formalização, pode ser interpretada como um retorno anacrónico a um tempo pré-pombalino, apresentando inevitáveis traços de correspondência com o complexo conventual de Mafra) é também fundamental para a compreensão do Portugal pré-romântico a influência dos ecos da Independência dos Estados Unidos da América e, fundamentalmente, o enorme impacto da Revolução Francesa de 1789, que proclamava liberdade, igualdade e fraternidade.


jdact

Se a proclamação da independência americana não provocou o afastamento de uma neutralidade política por parte da acção governativa da conservadora rainha D. Maria I, a progressão de violência e a ruptura social exaltada pelo processo revolucionário francês vieram instaurar junto da coroa portuguesa e da generalidade da aristocracia a ela associada o medo e uma imagem revolucionária sinónima de horror, delírio e anarquia, realidade que seria ainda acentuada pelo receio cada vez mais presente de uma possível acção libertadora por parte do novo exército revolucionário; ...o grande medo, que abala a França a partir de 1790 repercute-se à distância, não no quotidiano popular, que, salvo as excepções colhidas no meio urbano, permanece estranho ao que se passa fora do seu círculo de vizinhança, mas nas elites...

In António Miguel Santos Leite, Do Iluminismo Pombalino à afirmação Arquitectónica Romântica em Portugal, Artitextos, Lisboa, CEFA,Universidade Técnica de Lisboa, 2009, ISBN 978-972-9346-12-5.

Cortesia de UTLisboa/JDACT

domingo, 27 de janeiro de 2013

Devisme, Monserrate e o Romantismo. José Augusto França. «Vem então Beckford, que acrescenta um comentário perfectly true à carta, e este perfeitamente verdade que também indica que a casa não tinha grande interesse. DeVisme manteve-se em Monserrate entre 1790 e 1794. Além da casa, fez melhorias na propriedade, que murou e na qual pôs portões»


jdact e cortesia de wikipedia

(Continuação)

Devisme, Monserrate e o Romantismo
Se sabemos algo de Monserrate e muito do Romantismo, sobre Devisme pouco se sabe.

«Quanto à casa, quanto a Monserrate, podemos dizer que as terras pertenciam ao Hospital Real de Todos os Santos, que elas foram parar, parte delas, às mãos da família Mello e Castro, mais tarde Nova Goa (condes), e foi a ela que o negociante Devisme de Lisboa, trazido aqui sabe-se lá porquê ou por quem, talvez por um outro negociante de Lisboa, também cônsul da Holanda, Daniel Guilmeester, que está ligado a uma outra casa perto daqui, Seteais, e que, beneficiário do contrato do monopólio de diamantes e fazendo parte da pequena elite da economia pombalina, manteria com ele relações próximas e foi certamente ele que mostrou então a Devisme a bela serra de Sintra. A verdade é que ele veio, quis comprar as terras, os Castros não venderam mas arrendaram, deixando construir. Sabe-se que o terramoto de 1755 causou grandes estragos na propriedade, pelo que havia naturalmente por ali casas, casas em ruínas que ele fez reconstruir no sítio onde estavam.
Aqui entra uma outra informação, dada por Lady Carven, que diz que ele está building em a full situation - o que nos dá a certeza da construção, podendo entender-se o full situation como beautiful, logo uma alusão à situação ecológica privilegiada em que o faz, à implantação, à paisagem – um casa vilmente planeada, (vile planned house), uma alusão esta negativa, pejorativa, em relação ao que estava projectado. Vem então Beckford, que acrescenta um comentário perfectly true à carta, e este perfeitamente
verdade que também indica que a casa não tinha grande interesse.
DeVisme manteve-se em Monserrate entre 1790 e 1794. Além da casa, fez melhorias na propriedade, que murou e na qual pôs portões, atendendo a que se encontraria antes toda aberta. Em 1794 sub-aluga a propriedade a Beckford, aluguer que tem direito a referência no relato das viagem de William Beckford em Portugal, e que corresponde à sua segunda estada, em 1793-95, mais brilhante e proveitosa para ele porque finalmente apresentado na Corte, livrado já da má fama que o acompanhava e da oposição do Embaixador da Inglaterra, Walpole. Esse aluguer faz-se depois da sua visita, consagrada num texto famoso, a Alcobaça e a Santa Maria da Vitória na Batalha, concretizando assim, nas suas palavras, an old desire. Quando finalmente Devisme lhe sub-alugou, o que faz ele? Tentou mais uma vez comprar a casa aos Castro, que mais uma vez a recusaram. Beckford resolve então fazer obras e destrói a casa que lá havia para construir uma outra para lhe servir de residência. Isso é de resto confirmado também pela correspondência com Lady Carven, com a referência I Knocked down; de resto há ainda uma outra em que diz I built it, Eu construi-a. É a essa casa de Beckford que Lord Byron se pode referir, e que conheceu na visita que lhe fez, atendendo a que eram amigos.
Beckford faz uma referência misteriosa a um carpinteiro de Falmouth, a sua casa em Inglaterra (não confundir com a enorme Fonthill), a terra de onde ele próprio vinha, o que tira certa nobreza arquitectónica, que não valor profissional, à casa que ele acabou de fazer, construída sobre a de Devisme, e que é a mesma casa que mais tarde o primeiro Cook embelezaria, fazendo o edifício de gosto mogol que ainda hoje apreciamos, e que passou à imagem a Sintra com Monserrate.


Essa casa anterior, da qual temos referências através de Lady Carven e do próprio Beckford, existiu mesmo e temos uma prova da sua existência num desenho e numa planta dela, um documento precioso, que me foi cedido na altura em que estava a trabalhar sobre o século XIX, sobre Sintra portanto, e muito à última hora, porque já tinha os elementos prontos para publicação. Joaquim Couto Tavares, conservador do palácio da Pena nos anos 60 do século XX, trouxe-me então um desenho da sua colecção particular, que mostra a planta do Palácio e que eu fotografei a tempo de publicar na minha obra A Arte em Portugal no século XIX. Tenho esta precisão porque esta fotografia substituiu uma outra que já estava alinhada na produção do livro». In José Augusto França, Wikipédia.

continua
Cortesia de Wikipédia/JDACT

Unicórnio, Etc.. A década de 50 e as “Córnio”. José Augusto França. Miguel Real. «… toda a juventude poética, pictórica, crítica e ensaística da década de 50 que não se revia já no presencismo, no academismo, no neo-realismo e no republicanismo liberal da I República, eis a causa do imenso caldeirão revolucionário»

Desenho de almadanegreiros
jdact e wikipedia

(Continuação)

«Em terceiro lugar, aproxima-as a crença da exclusiva, intrínseca e ontológica autonomia estética do plano da arte, condensada no conhecido pensamento de Eduardo Lourenço - a obra de arte é uma realidade absoluta, fundada sobre o nada ontológico, cristalizando num mundo ficcional, emotivo, abstracto, figurativo, geométrico…, o sentimento de ausência de mundo real, ou, em termos mais simples, a obra de arte tem o seu fundamento em si própria.
Afastadas dos pruridos republicanos e socializantes da Seara Nova e da orientação comunista de Vértice a partir de 1945, saída de Eduardo Lourenço e entrada de Joaquim Namorado, as Córnio também se diferenciam das restantes novas revistas da década de 50, ainda que com estas partilhem o mesmo novo espírito europeu. Em concreto, o que as diferencia? Em primeiro lugar, as cinco Córnio, publicadas entre 1951 e 1956, não personificam a visão conjunta de um grupo de escritores ou pensadores, como é habitual em Portugal, mas a visão pessoal de José Augusto França, que as apresenta, não como revistas, mas como antologias de textos solicitadas a autores seleccionados pelo próprio, são, assim, indubitavelmente, expressão de um projecto individual sem par em toda a década e, porventura, com raros paralelos na história da cultura portuguesa. Que sentido cultural propõe o projecto pessoal de França entre 1951 e 1956, quando é simultaneamente co-editor dos Cadernos de Poesia, participa em Árvore e Cassiopeia, e escreve abundantemente em jornais? Presumimos que o seu projecto se encontra sintetizado na citação que faz de Rimbaud em Pentacórnio (31/12/56): Il faut être absolument moderne, isto é, José Augusto França intentaria resgatar o genuíno espírito do modernismo de Amadeo, de Santa Rita, de Pessoa, de Almada, de Pacheko, um espírito sem forma nem conteúdo explícitos, concretos, que, europeiamente, nos anos 50, permitisse assumir as novas formas e conteúdos estéticos, ou, dito de outro modo, enterrar os anteriores cinquenta anos de cultura em Portugal, conforme síntese da primeira metade do século XX em Portugal, em Tetracórnio, 1955, abrindo-a a novíssimas e instigantes experiências estéticas.
Em terceiro lugar, e como consequência dos anteriores, as Córnio constituem-se como a primeira revista ensaística portuguesa a exprimir, em Portugal, o novo espírito cultural europeu pós-II Guerra Mundial, não o espírito da nova poesia, as novas revistas citadas, ou da nova filosofia, a fenomenologia e o existencialismo constantes dos artigos da bracarense e jesuítica Revista Portuguesa de Filosofia, 1945, da coimbrã Revista Filosófica, 1951, de Joaquim de Carvalho, e da lisboeta 57, de António Quadros, vinculando o existencialismo ao espiritualismo português, mas do ensaísmo em geral, o ensaísmo sem quê nem porquê, senão levar o pensamento a pensar, um ensaísmo aberto, abertíssimo, cujos pontos de partida e final se encontram apenas limitados pela humanidade existencial do homem; do ponto específico da década, um ensaísmo anti-realista, anti-psicologista, anti-académico e anti-dogmático, ou seja e de novo, um ensaísmo à Almada, à Pessoa e à António Pedro.
Em quarto lugar, como síntese concreta das anteriores diferenças, seria forçoso reunir nas Córnio toda a juventude poética, pictórica, crítica e ensaística da década de 50 que não se revia já no presencismo, no academismo, no neo-realismo e no republicanismo liberal da I República, eis a causa do imenso caldeirão revolucionário que constitui a totalidade dos seus cinco números, reunindo a juventude cultural de horizonte estético europeu:
  • António Ramos Rosa, José Blanc de Portugal, Rui Cinatti, um Adolfo Casais Monteiro pós-presencista, Sophia, Jorge de Sena, Eduardo Lourenço, Alexandre O’Neill, Tomás Ribas, Alberto de Lacerda, Fernando Lemos, Fernando Azevedo, o juvenilíssimo Alfredo Margarido, Vespeira, Delfim Santos e José Marinho, David Mourão-Ferreira, o crítico literário nem-presencista-nem-neo-realista José Pedro de Andrade, José Terra, António Quadros, Carlos Eduardo Soveral, Óscar Lopes… e, perfazendo a ponte com o passado, inéditos de Fernando Pessoa, Almada, António Pedro e de um António Sérgio pós-ruptura com a Seara Nova.

Um impressionante leque de pensamento e arte aberto às novas correntes estéticas europeias! Para compor o imenso ramalhete do novo, apenas falta Eugénio de Andrade. É a cultura portuguesa da segunda metade do século a abrir-se à Europa, anunciando um mundo novo, sem os epígonos de Eça e Camilo, de António Nobre e António Patrício, de Malheiro Dias e Júlio Dantas».

In Inicórnio, ETC., Mostra Documental, 2006-2007, apresentação de José Augusto França, Biblioteca Nacional, 2006, A década de 50 e as Córnio, Miguel Real, ISBN 978-972-565-413-2.

continua
Cortesia da BNP/JDACT