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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco. «Sacudiu-me um diálogo, preciso e desenvolvido, entre um rapaz de óculos e uma jovem que infelizmente não os tinha. E o pêndulo de Foucault, dizia o moço, Foi primeiro experimentado numa cave em 1851…»

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Keter

«Mas não era este desvio da Lei, que de resto a própria Lei previa, não era esta violação da medida áurea que tornava menos admirável o prodígio. Eu sabia que a Terra estava rodando, e eu com ela, e Saint-Martin-des-Champs e Paris inteira comigo, e juntos rodávamos sob o Pêndulo que na realidade não mudava jamais a direcção do próprio plano, porque lá em cima, de onde pendia, e ao longo do infinito prolongamento ideal do fio, para o alto em direcção às mais remotas galáxias estava, imóvel por toda a eternidade, o Ponto Fixo.

A Terra girava, mas o lugar onde o fio estava ancorado era o único ponto fixo do universo. Por isso, não era propriamente à Terra que o meu olhar se dirigia, mas ao alto, lá onde se celebrava o mistério da imobilidade absoluta. O Pêndulo dizia-me que, embora tudo se movesse, o globo, o sistema solar, as nebulosas, os buracos negros e todos os filhos da grande emanação cósmica, desde os éons primitivos à matéria mais viscosa, um único ponto permanecia, eixo, cavilha, engate ideal, deixando que o universo se movesse em torno dele. E eu participava agora daquela experiência suprema, eu que embora me movesse com tudo e com o todo, eu podia ver o Quid, o Não-Movente, a Rocha, a Garantia, a caligem luminosíssima que não é corpo, não tem figura forma peso quantidade ou qualidade, e não vê, não sente, não é apreendido pela sensibilidade, não é um lugar, nem um tempo ou um espaço, não é alma, inteligência, imaginação, opinião, número, ordem, medida, substância, eternidade, não é treva nem luz, não é erro nem verdade.

Sacudiu-me um diálogo, preciso e desenvolvido, entre um rapaz de óculos e uma jovem que infelizmente não os tinha. E o pêndulo de Foucault, dizia o moço, Foi primeiro experimentado numa cave em 1851, depois no Observatoire, e em seguida sob a cúpula do Panthéon, com um fio de sessenta e sete metros e uma esfera de vinte e oito quilos. Finalmente, desde 1855 está aqui, em formato reduzido, e pende daquele furo, na travessa da abóbada.

E para que serve, só para ficar balançando? Serve para demonstrar a rotação da Terra. Se considerarmos que o ponto de suspensão permanece fixo... Mas por que permanece fixo? Porque um ponto... como direi... no seu ponto central, quer dizer todo ponto que esteja no meio dos pontos que você vê, bem, aquele ponto, o ponto geométrico, você não vê, não tem dimensão, e portanto não tendo dimensão não pode mover-se nem à esquerda nem à direita, nem para baixo nem para cima. Consequentemente, não gira. Entendeu? Se um ponto não tem dimensão, não pode sequer girar em torno de si mesmo. Nem mesmo este si mesmo existe... Nem com a Terra girando? A Terra gira, mas o ponto não. Se lhe agrada, é assim, se não, dane-se. Está bem? Problema dele.

Miserável. Tinha sobre a cabeça o único lugar estável do cosmo, o único ponto resgatado da danação do ponta rei, e pensava que fosse problema Dele, e não dela. Mas logo em seguida o casal se afastou, ele, tendo estudado nesses manuais que lhe obnubilaram as possibilidades de maravilhar-se, ela inerte, inacessível ao arrepio do infinito, ambos sem terem registado na memória a experiência terrificante daquele seu encontro, primeiro e último, com o Uno, o En-sof, o indizível. Como não cair de joelhos diante do altar daquela certeza?

Quanto a mim, fitava-o com reverência e espanto. Naquele momento, estava convencido de que Jacopo Belbo tinha razão. Quando me falava do Pêndulo, eu atribuía sua emoção a um devaneio estético, àquele câncer que estava tomando forma, informe, em sua alma, transformando, passo a passo, sem que ele se desse conta, o seu jogo em realidade. Mas se tinha razão quanto ao Pêndulo, talvez fosse verdade todo o resto, o Plano, a Conspiração Universal, e era justo que tivesse vindo ali na vigília do solstício de verão. Jacopo Belbo não era louco, simplesmente havia descoberto por jogo, através do Jogo, a suma verdade». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Difel, 2004, Editora Gradiva, ISBN 978-989-616-717-2.

 Cortesia de Difel/ Editora Gradiva/JDACT

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quarta-feira, 21 de agosto de 2024

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco. «Sabia também que na vertical do ponto de suspensão, na base, um dispositivo magnético, transmitindo sua atracção a um cilindro oculto no cerne da esfera, garantia a permanência do movimento…»

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Keter

«Foi então que vi o Pêndulo. A esfera, móvel na extremidade de um longo fio fixado à abóbada do coro, descrevia suas amplas oscilações em isócrona majestade.

Eu sabia, mas quem quer que o tivesse advertido no encanto daquele plácido respirar, que o período era regulado pela correlação entre a raiz quadrada do comprimento do fio e a do número PI, o qual, embora irracional para as mentes sublunares, relaciona, por alguma razão divina, a circunferência ao diâmetro de todos os círculos possíveis, de modo que o oscilar de uma esfera de um pólo a outro decorre de uma arcana conspiração entre a mais intemporal das medidas, a unidade do ponto de suspensão, a dualidade de uma dimensão abstrata, a natureza terciária do PI, o tetrágono secreto da raiz e a perfeição do círculo.

Sabia também que na vertical do ponto de suspensão, na base, um dispositivo magnético, transmitindo sua atracção a um cilindro oculto no cerne da esfera, garantia a permanência do movimento, artifício disposto para contrabalançar as resistências da matéria, mas que não se opunha às leis do Pêndulo, antes lhes permitia manifestarem-se, porque no vácuo qualquer ponto material pesado, suspenso da extremidade de um fio inextensível e sem peso, que não sofresse a resistência do ar nem o atrito com seu ponto de apoio, teria oscilado de modo regular por toda a eternidade.

A esfera de cobre emitia pálidos reflexos cambiantes sob a incidência dos últimos raios de sol que penetravam pelos vitrais. Se, como outrora, sua ponta estivesse roçando uma camada de areia húmida espalhada sobre o pavimento do coro, teria desenhado a cada oscilação um leve sulco no solo, e o sulco, mudando infinitesimalmente de direcção a cada instante, ter-se-ia alargado sempre em forma de brecha, de vala, deixando adivinhar uma simetria radiada, como um esqueleto de mandala, a estrutura invisível de um pentáculo, de uma estela, de uma rosa mística. Não melhor talvez a peripécia, registada na extensão do deserto, dos traços que deixaram caravanas infinitas e erráticas. Uma história de lentas e milenárias migrações, talvez da mesma forma como se deslocaram os atlântidas do continente Mu, numa peregrinação obstinada e possessiva, da Tasmânia à Groenlândia, do Capricórnio ao Câncer, da Ilha do Príncipe Eduardo ao Svalbard.

A ponta repetia, narrava novamente num tempo bastante compacto, o que eles haviam feito entre uma e outra glaciação, ou que talvez ainda fizessem, agora mensageiros dos Senhores, quem sabe no percurso entre Samoa e Zemlia, a ponta, na sua posição de equilíbrio, aflorasse Agarttha, o Centro do Mundo. E intuí que um plano único unia Avalon, a hiperbórea, ao deserto austral que abriga o enigma de Ayers Rock.

Naquele momento, às quatro da tarde de 23 de Junho, o Pêndulo amortecia a própria velocidade numa extremidade do plano de oscilação, para recair indolente em direcção ao centro, readquirir velocidade a meio do percurso e desferir seus golpes de sabre confidentes no quadrado oculto das forças que o destino lhe apontava.

Se eu permanecesse muito tempo, resistente ao passar das horas, a fixar aquela cabeça de pássaro, aquele ápice de lança, aquele elmo emborcado, enquanto desenhava no vazio as suas diagonais, aflorando os pontos opostos de sua astigmática circunferência, teria sido vítima de uma ilusão fabulatória, pois o Pêndulo me levaria a crer que o plano de oscilação teria realizado uma rotação completa, tornando ao ponto de partida, em trinta e duas horas, descrevendo uma elipse achatada, elipse que girasse em torno de seu próprio centro com uma velocidade angular uniforme, proporcional ao seno da latitude.

Como teria girado se o ponto fosse fixado ao alto da cúpula do Templo de Salomão? Talvez os Cavaleiros tivessem experimentado também lá. Talvez o cálculo, o significado final, não houvesse modificado. Talvez a igreja abacial de Saint-Martin-des-Champs fosse o verdadeiro Templo. Contudo, a experiência só teria sido perfeita no Pólo, único lugar em que o ponto de suspensão incide sobre o prolongamento do eixo de rotação da Terra, no qual o Pêndulo realizaria seu círculo aparente em vinte e quatro horas» . In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Difel, 2004, Editora Gradiva, ISBN 978-989-616-717-2.

 Cortesia de Difel/ Editora Gradiva/JDACT

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