sexta-feira, 12 de julho de 2024

Fernando Campos. Psiché. «Uma caixa de fósforos, se faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado, passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão…»

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A memória do esquecimento

«Levanto‑me. Vou comprar qualquer coisa e depois venho olhando de frente, digo, deixando António a puxar de um cigarro. Caminho até ao bar. Uma caixa de fósforos, se faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado, passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão, os ombros e a cabeça recortados na superfície polida do grande espelho que corre a todo o comprimento da parede. Procuro nos retalhos de imagens, entre prateleiras de garrafas, reconstituir o cenário atrás de mim, enquanto pago os fósforos. No embaciamento daqueles estilhaços de prata velha a custo reconheço António sentado à mesa e, três filas além, a mancha de um vestido claro, uma vaga sombra de mulher que se ergueu e se afasta. Volto‑me para regressar. E este voltar‑me... Como o virar de página do tempo! Trinta anos transcorridos!... Aquele meu voltar‑me para não encontrar ninguém! Apenas uma mesa vazia. No pires, junto à chávena, um guardanapo de papel amarrotado, uma ponta de cigarro esmagada... Perdi para sempre a ocasião de alguma vez me encontrar com ela? De saber quem era?... Os anos desataram a transformar em húmus e a diluir em éter, numa vertigem, aqueles que foram protagonistas ou meras testemunhas desses insólitos acontecimentos. Caíram na voragem novos e velhos: Silva Lisboa, Albertina, outros... Os que ficaram, ainda quando aqui e ali roçaram por eles vestígios vivos desse passado, fecharam‑se numa cómoda ausência de curiosidade ou uma estudada distanciação e apatia. Como que acabaram por esquecer.

Nem esquecer‑me nem lembrar‑me podia eu. Factos que mal conhecera fragmentariamente esbateram‑se em nebuloso fundo de outras preocupações que vieram relevar‑se longos anos, em nitidez e luz, na ribalta da vida. Andanças de errante saltimbanco do ofício de professor... Terras distantes escondidas nas voltas das estradas, no tramontar das serras.... Muralhas tisnadas dos séculos e dos sonhos, vigiando a veiga expectante e úbere do vale imenso... Perfumes e cores exalando‑se do seio do oceano na ilha perdida como nenúfar que floriu no cume de um vulcão extinto... Banho de brancura luminosa, olhos magoados da claridade do céu e da cal de paredes e açoteias mouriscas... Maresia ribeirinha de gaivotas e traineiras ondulando no porto fenício... Até vir aproar na cidade de Ulisses a lustrar‑me de rosa... Que me chamou então de novo, decorrido tanto tempo, a atenção para o mistério?...

Toma!‑ disse‑me Fernanda um dia ajoelhada no chão à boca da antiga mala abaulada, enquanto me ia entregando livros, embrulhos, velhas fotografias. "Esta mala! Viajou connosco tantos anos por todo o lado!...E parava, cansada, com as mãos no regaço, o olhar tresmalhado no passado. De súbito acordava e tornava a mexer na papelada. Estes são os álbuns dele. Que canseira miúda e aturada! As mãos dele! Estou a vê‑las, habilidosas, a recortar, a colar... Que paciência! Coligidos quase dia a dia, recortes de jornais, postais ilustrados, recordações dos teatros em que actuou, de amigos, artistas, personalidades que conheceu... O desnovelar da vida!... Tudo passou!» In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

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Fernando Campos. Psiché. «Uma caixa de fósforos, se faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado, passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão…»

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A memória do esquecimento

«Pairava no ar um certo receio de se virem a descobrir realidades penosas que fossem contra as conveniências. Ela, sim. Sentia‑se desinibida à beira dele, a conversar com ele. O visconde de Cairu? surpreendi‑a uma vez a perguntar‑lhe. É verdade, respondia ele. E o pai?... Como é que o vovô soube?..., tornava ela. E ele lá contava, com a voz um pouco sumida, à puridade, a estranha história... Flanela azul às riscas... sentado na borda da cama..., o faiscar do anel no dedo mindinho... Basta um pormenor para lhe avivar a imagem! Ela estendia‑lhe as mãos de costas para cima. Ah! É um rapaz! Vou ter um bisnetinho! Mas a vinte e seis de Dezembro nascia uma menina que ele já não pôde conhecer. Foi por isso que não desci esse Natal ao Porto. Tampouco pela Páscoa me fiz à estrada. Tinha, entretanto, tirado a carta e comprara um carro, motorizando‑me, fazendo preito ao progresso. Só lá para os fins dos exames, em Julho, princípios desse outro Agosto, de cinquenta e seis, cheguei do nordeste, nos olhos ainda a longa negra fita de alcatrão ou paralelipípedos a enrolar‑se no galgar dos quilómetros, nos rins o cansaço das intermináveis horas sentado ao volante do Volkswagen, que vinha todo vomitado das voltinhas do Marão. Foi António o primeiro que falou. Não porque sentisse necessidade de abordar o assunto. Aliás, posteriormente, quando eu já me encontrava senhor dos acontecimentos, compreendi aquele como que preconceituoso pudor da família em rodear o caso de um espesso mutismo. O que o fez falar foram as circunstâncias... Aí estava ela! Não, não olhasse ainda, para não dar nas vistas!... A mesa da terceira fila, atrás de mim...

Animava‑se o café àquela hora, onze e meia da manhã, acabada a missa. Homens fumando, chávena vazia à frente ou por instantes aflorada aos lábios, jornal aberto, folheado, saboreado. Fatos cuidados, na ausência de nódoa ou enxovalho, no vinco recente da calça. Barba escanhoada, camisa lavada. Catarro matinal, tabacal. Aos pés de um deles, cabelo ralo todo lambido de brilhantina, para trás, cara chupada, o macaco coçado, os tornozelos escanzelados a saírem das peúgas lassas e do calçado cambado, faz o engraxador chiar e estalar a tira de pano lustroso ao polir do sapato. Dá‑se um casal ao luxo da fofa loira torrada com manteiga, em palitos, lambuzando os dedos. Os dela são papudos e brilham de jóias. Por detrás do tinir das xícaras, pires e talheres, das vozes dos empregados de mesa a comunicarem ao bufete os pedidos dos clientes (Sai um galão! Três pingos e um copo de leite com canela!...), por entre a névoa que paira no ar, misto de fumo e de vapor que embacia as vidraças, vêm de fora as vibrações do tanger dos sinos. Coisa concreta, que quase se corta à faca, a respiração e o perfume domingueiro. Que semelhança!, continuava António. Enquanto o escutava, eu ia esperando a oportunidade de me voltar para trás. Aparecia por ali muitas vezes, no Amial, dizia a voz dele. Morava talvez perto ou então andava a espiá‑lo, a persegui‑lo. Isto pelo menos era o que insinuava sua mulher, a Catalina, desconfiada... Cruzava com a desconhecida na rua, nos lugares mais diversos e imprevisíveis da cidade, na Cordoaria, na Avenida dos Aliados, na Lapa. Olá, sobrinho!, palavras dela no ar quando passava... As feições um pouco menos amaciadas mas muito parecidas com as de Fernanda e com um retrato antigo que ele vira da avó Ana... Teria aí uns vinte e dois anos. Parece que aquilo fora caso acontecido aquando da morte de Raquel... Estranha coincidência! O nascimento e a morte! Para Silva Lisboa tornara‑se motivo de funda meditação. Albertina, porém, não podia admitir a junção dos dois factos, das duas dores a lancear‑lhe a alma. Em cima da perda da filha, aquilo!... Olá, sobrinho! Que queria tudo isso dizer?...» In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

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Fernando Campos. Psiché. «Ela estendia‑lhe as mãos de costas para cima. Ah! É um rapaz! Vou ter um bisnetinho! Mas a vinte e seis de Dezembro nascia uma menina que ele já não pôde conhecer»

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A memória do esquecimento

«O telefone tocara no meio da barafunda do início do ano lectivo e das preocupações. Não se deve expor a uma tal viagem agora, foi a proibição do Mário Carneiro. Nem pensar! Ela concordava, virava‑se para mim: tu... Também não podes ir. Não há ninguém para te substituir no colégio. Foi assim que não estive presente no funeral de Silva Lisboa. Escrevo Silva Lisboa e não meu avô porque, como narrador que conta os factos muitos anos volvidos, desejo aproveitar esse distanciamento para ganhar a perspectiva e imparcialidade possíveis e desfazer a natural emoção. Silva Lisboa e Albertina, Raquel e Alberto Tavares, Fernanda e Alberto Campos..., e Mário..., e Ana de Jesus..., e Maria José..., e João..., e Josué..., e a desconhecida... Pessoas, personagens de romance. Lembro a última imagem que dele me ficou. Chegara o fim de Agosto e partíamos, eu e Maria Olga, com as duas filhas, acabadas as férias grandes, para o nosso castelo roqueiro, por causa da abertura do colégio. Fomos ao quarto dele despedirmo‑nos. Olhou‑nos com um sorriso a disfarçar o ar triste, sentado na borda da cama, seu pijama de flanela azul às riscas. Mostre‑me as suas mãos!, recordo‑lhe a voz dirigindo‑se à Maria Olga. Pegou‑lhas vivamente quando ela as estendeu de costas para cima. Gostava de falar com ela, que tinha muita paciência para o escutar, lhe fazia atenciosa companhia quando lá passávamos uns dias. Deixava‑a arrancar‑lhe pormenores da sua vida que a mais ninguém confidenciara. Talvez porque mais ninguém lhe fazia ou ousava fazer perguntas ou se sentia à vontade para lhas fazer.

Pairava no ar um certo receio de se virem a descobrir realidades penosas que fossem contra as conveniências. Ela, sim. Sentia‑se desinibida à beira dele, a conversar com ele. O visconde de Cairu? surpreendi‑a uma vez a perguntar‑lhe. É verdade, respondia ele. E o pai?... Como é que o vovô soube?..., tornava ela. E ele lá contava, com a voz um pouco sumida, à puridade, a estranha história... Flanela azul às riscas... sentado na borda da cama..., o faiscar do anel no dedo mindinho... Basta um pormenor para lhe avivar a imagem! Ela estendia‑lhe as mãos de costas para cima. Ah! É um rapaz! Vou ter um bisnetinho! Mas a vinte e seis de Dezembro nascia uma menina que ele já não pôde conhecer». In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

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Fernando Campos. Psiché. «Escrevo Silva Lisboa e não meu avô porque, como narrador que conta os factos muitos anos volvidos, desejo aproveitar esse distanciamento para ganhar a perspectiva e imparcialidade…»

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A memória do esquecimento

«Lembrava‑se apenas de que se esquecera... ou esquecera‑se de se lembrar. Que queria? Fraca memória a sua!, suspirava. Os anos!... Fernanda tinha muitas vezes comigo este desabafo e eu tomava‑lhe a preocupação, procurava colar‑lhe os restos das lembranças, reconstituía‑as em mantas de retalhos, a tentar conservar o calor das veias, a cor das faces, o brilho de um olhar, o tom de uma voz, o latejar dos corações atingidos pelo gelo do tempo que chegou ao seu limite... Procurar trabalhar a matéria perpetuável, no limiar do eterno... e transpô‑lo! Tomar o esquecimento e recolocá‑lo na memória! Repor a memória no pedestal do esquecimento, na cidade indiferente e distraída..., nas cidades, vilas, aldeias e lugares distraídos e indiferentes por onde Silva Lisboa espalhou a rodos a fantasia e o riso!... Antes que o verme pontual e infalível roa com suas mandíbulas tenazes os últimos músculos putrefactíveis, ainda vivos, que o sal do artista fez contrair num sorriso, vibrar e estalar numa gargalhada. Fixar as recordações para ao menos essas se não transformarem em cinza!... Descuidados que somos até da única certeza indesmentível! Dir‑se‑á não querermos acreditar que nascemos mortais. Surpreende‑nos sempre desprevenidos a notícia da morte. A carta, o telegrama que nos bate à porta quando se está longe. O telefone que toca como tantas vezes rotineiras... Está? Fernando?, Sim. É para te dizer que o avô...

O gesto lento, interiorizado, de pousar no descanso o telefone. Então aquele foi mesmo o último suspiro?... E aquele corpo vai arrefecer?... Do espantoso lance teatral inesperadamente surgido no cemitério junto ao corpo exânime do actor, ao fechar do caixão, quando o padre pronunciava as últimas encomendações, lançava as derradeiras aspersões de água‑benta, traçava no ar a cruz do requiem e um coveiro avançava com a pá de cal viva, far‑me‑iam relato mais tarde os parentes que assistiram. Estranha realidade: nenhuma das versões é coincidente! Eu encontrava‑me no norte, para lá das montanhas, desmaiava Setembro. Grande a azáfama do abrir das aulas. A mulher, pesadona, a três meses do fim do tempo. Eu não possuía ainda carta nem carro nesse tempo e a única possibilidade de me deslocar para ir assistir ao enterro era aquele comboiinho de brincar que levava meio dia a chegar, depois de fumegar e resfolegar as voltinhas gaiatamente apitadas, trepando a montes de vento e lobos, espreitando telhados isolados, adormecidos em vales perdidos, bordejando pegos e córregos de vertigem. Apareciam os pais a trazerem os filhos para o internato, os professores vinham pelos horários e as cadernetas. Tudo eu fazia ali, naquele colégio que era de brincar como o comboio. A única coisa bonita que tinha era estar alcandorado nas velhas muralhas medievais bordadas de lírios a olhar o rio largo e lento sob a ponte de Trajano. De resto achava‑me praticamente só num barco a naufragar. Trinta alunos que mal davam para as despesas, um sócio que fugira mal cheirara o descalabro, deixando‑me com as suas dívidas. Director, prefeito, administrador, professor de tudo e mais alguma coisa, português, francês, inglês, desenho, treinador de jogos, para evitar ter de pagar a outros aquilo que eu não recebia. Vinte e seis anos de idade..., a construção do meu futuro!».. In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

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terça-feira, 2 de julho de 2024

Amin Maalouf. As Cruzadas vistas pelos Árabes. «… algumas mulheres preparam comida. A chegada dos fugitivos com os turcos no seu encalço espalha o terror. Alguns, que tentaram atingir os bosques vizinhos, são rapidamente alcançados»

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A Invasão. 1096-1100

«(…) É verdade que os franj perderam cerca de seis mil homens, mas os que restam são seis vezes mais numerosos, e esta é a única oportunidade para se livrarem deles. Para tanto, ele preferiu destacar dois espiões, gregos, para o acampamento de Citivot, afim de anunciar que os homens de Renaud estão em excelente condição, que conseguiram apoderar-se da própria Nicéia, e que estão firmemente decididos a não permitir que seus correligionários lhes disputem as riquezas. Enquanto isso, o exército turco preparará uma gigantesca emboscada. De facto, os rumores cuidadosamente propagados suscitam no acampamento de Citivot a confusão prevista. Formam-se grupos, injuria-se Renaud e seus homens. Logo tomam a decisão de pôr-se a caminho para participar do saque de Nicéia.

Mas eis que, subitamente, não se sabe muito bem como, um homem que conseguiu escapar da expedição de Xerigordon chega, revelando a verdade quanto à sorte de seus companheiros. Os espiões de Kilij Arslan pensam ter fracassado em sua missão, já que os mais sábios entre os franj pregam a calma. Mas, passado o primeiro momento de consternação, a exaltação volta.

A multidão se agita e brada, quer partir imediatamente e não mais para participar de meros saques, e sim vingar os mártires. Aqueles que hesitam são tratados de covardes. Finalmente, os mais enfurecidos obtêm ganho de causa, e a partida é fixada para o dia seguinte.

Tendo seu artifício descoberto, ainda que o objectivo houvesse sido previamente atingido, os espiões do sultão triunfam e mandam dizer ao seu senhor que se prepare para o combate. Na madrugada de 21 de Outubro de 1096, os ocidentais deixam seu acampamento. Kilij Arslan não está longe. Ele passou a noite nas colinas próximas a Citivot. Seus homens estão nos seus lugares, bem escondidos. Ele mesmo, de onde está, pode avistar ao longe a coluna dos franj levantar uma nuvem de poeira.

Algumas centenas de cavaleiros, a maioria sem armadura, andam na frente, seguidos por uma multidão de infantes em desordem. Estão andando há menos de uma hora quando o sultão ouve o clamor que se aproxima. O sol que se ergue atrás dele golpeia-os em pleno rosto. Prendendo a respiração, ele faz sinal aos seus emires comandados para que se mantenham alertas.

O instante fatídico é chegado. Um gesto apenas perceptível, algumas ordens sussurradas aqui e ali, e eis os arqueiros retesando lentamente seus arcos. De repente, mil flechas jorram num único e longo assobio. A maioria dos cavaleiros desaba nos primeiros minutos. Depois, os infantes são dizimados por sua vez. Quando se travou o combate corpo-a-corpo, os franj já estavam derrotados.

Aqueles que se encontravam na rectaguarda voltaram correndo para o acampamento, onde os que repousavam eram despertados. Um velho sacerdote celebra um ofício religioso, algumas mulheres preparam comida. A chegada dos fugitivos com os turcos no seu encalço espalha o terror. Alguns, que tentaram atingir os bosques vizinhos, são rapidamente alcançados». In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.

Cortesia de Edições70/JDACT

Amin Maalouf, JDACT, Literatura, Cruzadas, Árabes,

Amin Maalouf. As Cruzadas vistas pelos Árabes. «Podem ser vistos, nesses primeiros dias de Outubro, olhando desesperadamente para o céu, mendigando algumas gotas de chuva. Em vão. Após uma semana um cavaleiro chamado Renaud…»

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Invasão. 1096-1100

«Kilij Arslan é apanhado de surpresa. Quando lhe chegam as primeiras noticias, os atacantes já estão sob os muros de sua capital; e o Sol ainda não atingia o horizonte quando os cidadãos veem subir a fumaça dos incêndios. Imediatamente, o sultão manda uma patrulha de cavaleiros, que se choca com os franj. Esmagados pelo número, os turcos são massacrados. Apenas raros sobreviventes voltam, ensanguentados, para Niceia. Vendo seu prestígio ameaçado, Kilij Arslan resolve começar a batalha imediatamente, mas os emires de seus exércitos o desaconselham. A noite já vai cair e os franj retiram-se às pressas para seu acampamento.

A vingança terá que esperar. Contudo não por muito tempo. Aparentemente animados com seu sucesso, os ocidentais repetem a façanha duas semanas mais tarde. Dessa vez, o filho de Suleiman, avisado a tempo, segue passo a passo sua progressão. Uma tropa franca, compreendendo alguns cavaleiros, mas sobretudo milhares de saqueadores esfarrapados, pega a estrada de Niceia, depois, contornando a aglomeração, dirige-se para o leste e toma de surpresa a fortaleza de Xerigordon. O jovem sultão se decide.

À frente de seus homens, cavalga rapidamente em direcção à pequena praça-forte onde, para comemorar sua vitória, os franj embebedam-se, incapazes de imaginar que seu destino já esteja selado. Pois Xerigordon apresenta uma armadilha que os soldados de Kilij Arslan conhecem bem, mas que esses estrangeiros inexperientes não foram capazes de descobrir: o abastecimento de água que se situava fora, bastante longe das muralhas. Então os turcos não precisam de muito tempo para interditar seu acesso. Basta-lhes tomar posição ao redor da fortaleza e não se mover mais. A sede luta por eles.

Para os sitiados, começa um suplício atroz: eles chegam a beber o sangue de suas montarias e sua própria urina. Podem ser vistos, nesses primeiros dias de Outubro, olhando desesperadamente para o céu, mendigando algumas gotas de chuva. Em vão. Após uma semana um cavaleiro chamado Renaud, chefe da expedição, aceita a capitulação com a condição de que lhe seja poupada a vida. Kilij Arslan, que exigiu que os franj denunciem publicamente a sua religião, não fica pouco surpreso quando Renaud se diz pronto não só a converter-se ao islamismo, mas também a combater ao lado dos turcos contra seus próprios companheiros. Vários de seus amigos, que se prestaram às mesmas exigências, são enviados como prisioneiros para as cidades da Síria ou da Ásia Central. Os outros são mortos pela espada. O jovem sultão está orgulhoso de sua proeza, mantém-se ponderado. Após ter concedido a seus homens um prazo para a tradicional partilha dos bens restados da guerra, ele os coloca em alerta a partir do dia seguinte». In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.

Cortesia de Edições70/JDACT

Amin Maalouf, JDACT, Literatura, Árabes,

Amin Maalouf. As Cruzadas vistas pelos Árabes. «Não tendo provavelmente mais nada que obter de sua vizinhança, eles tomaram, dizem, o rumo de Niceia, atravessando alguns vilarejos, todos cristãos, e apossaram-se das safras que acabavam de ser colocadas em celeiros»

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A Invasão. 1096-1100

«(…) Mesmo se o exército bizantino, dilacerado há anos por crises internas, fosse capaz de lançar-se sozinho numa Guerra de Reconquista, ninguém ignora que Alexis sempre pode apelar para auxiliares estrangeiros. Os bizantinos nunca hesitaram em recorrer aos serviços dos cavaleiros vindos do Ocidente. Mercenários com armaduras pesadas ou peregrinos a caminho da Palestina, são numerosos os franj que visitam o Oriente. Em 1096 eles não eram estranhos aos muçulmanos. Cerca de vinte anos antes, Kilij Arslan ainda não era nascido, mas os velhos emires lhe contaram, um desses aventureiros de cabelos louros, um tal de Roussel de Bailleul, que conseguira estabelecer um Estado autónomo na Asia Menor, marchou inclusive sobre Constantinopla. Apavorados, os bizantinos não tiveram outra escolha senão apelar para o pai de Kilij Arslan, que chegou a duvidar do que ouvia quando um enviado especial do basileu veio suplicando-lhe que voasse para socorrê-lo. Os cavaleiros turcos tinham-se então, de facto, dirigido para Constantinopla e conseguido vencer Roussel. Por isso, Suleiman fora generosamente recompensado em ouro, cavalos e terras.

Desde então, os bizantinos desconfiam dos franj, mas os exércitos imperiais, constantemente carentes de soldados experientes, veem-se obrigados a contratar mercenários. Não unicamente franj, aliás; os guerreiros turcos são numerosos sob as bandeiras do império cristão. E precisamente graças a compatriotas engajados no exército bizantino que Kilij Arslan fica sabendo, em Julho de 1096, que milhares de franj se aproximam de Constantinopla. O quadro pintado pelos informantes deixa-o perplexo. Esses ocidentais parecem-se muito pouco com os mercenários que se costuma ver. É verdade que há, entre eles, algumas centenas de cavaleiros e um número importante de infantes armados, mas também há milhares de mulheres, crianças, velhos em andrajos: parece um povo desalojado de suas terras por um invasor. Conta-se também que trazem todos, costuradas nas costas, faixas de tecido em forma de cruz. O jovem sultão, encontrando dificuldades em avaliar o perigo, pede aos seus agentes que dobrem a vigilância e que o deixem constantemente a par dos factos e condutas desses novos invasores. Como medida de precaução, ele manda verificar as fortificações de sua capital. As muralhas de Niceia, que tem mais de um farsakh (seis mil metros) de extensão, são coroadas por 240 torres. A sueste da cidade, as águas calmas do lago Ascanios constituem uma excelente protecção natural.

No entanto, nos primeiros dias de Agosto, a ameaça torna-se mais evidente. Os franj atravessam o Bósforo, escoltados por navios bizantinos e, mesmo sob um sol opressivo, avançam ao longo da costa. Apesar de terem sido vistos saqueando a caminho mais de uma igreja grega, pode-se ouvi-los bradar que vem exterminar os muçulmanos. Seu chefe seria um eremita chamado Pierre. Os informantes avaliam que sejam algumas dezenas de milhares, mas ninguém sabe dizer onde seus passos os levam. Parece que o imperador Alexis resolveu instalá-los em Citivot, um acampamento que ele acomodou anteriormente para outros mercenários, a menos de um dia de caminhada de Niceia. O palácio do sultão fica em estado de alerta. Enquanto os cavaleiros turcos preparam-se para alar seus cavalos a qualquer momento, assiste-se a um vaivém continuo de espiões e batedores que relatam os mínimos movimentos dos franj. Conta-se que cada manhã eles deixam o acampamento em hordas de vários milhares para explorar a vizinhança, onde saqueiam algumas fazendas e incendeiam outras, antes de voltar para Citivot, onde seus pares disputam os frutos da razia. Não há nada disso que possa realmente atemorizar os soldados do sultão. Nada também que possa preocupar seu senhor. Durante um mês, a rotina se repete. Mas eis que um dia, por volta de meados de Setembro, os franj modificam bruscamente seus hábitos. Não tendo provavelmente mais nada que obter de sua vizinhança, eles tomaram, dizem, o rumo de Niceia, atravessando alguns vilarejos, todos cristãos, e apossaram-se das safras que acabavam de ser colocadas em celeiros, nesse período de colheita, massacrando sem piedade os camponeses que tentavam resistir. Crianças de colo teriam sido queimadas vivas». In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.

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Amin Maalouf, JDACT, Literatura, Árabes,

As Cruzadas vistas pelos Árabes. Amin Maalouf. «Naquele ano, começaram a chegar informações sucessivas sobre a aparição de tropas de franj vindas do mar de Mármara em grande multidão. As pessoas amedrontaram-se»

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Agosto de 1099. Bagdade

«(…) Em Bagdade, a decepção dos refugiados será tão grande quanto as suas esperanças. Antes de encarregar seis altos dignitários da corte para que efectuassem uma investigação sobre esses acontecimentos desagradáveis, o califa Mustazhit-billah expressa a sua simpatia pela causa. E preciso dizer que não se ouvira mais falar nesse comité de sabios? O saque a Jerusalém, ponto de partida de uma hostilidade milenar entre o Islão e o Ocidente, não provoca, na hora, nenhuma reacção. Foi preciso esperar cerca de meio século antes que o Oriente árabe se mobilize perante o invasor, e que a chamada ao jihad lancada pelo cádi de Damasco à tenda do califa seja celebrada como o primeiro acto solene de resistência. No inicio da invasão, poucos árabes medem imediatamente, como al-Harawi, a amplitude da ameaça vinda do Oeste. Alguns adaptam-se até rápido demais à nova situação. A maioria só procura sobreviver, amargurada e resignada. Alguns colocam-se como observadores mais ou menos lúcidos, tentando compreender esses acontecimentos tão imprevistos quanto novos. O mais cativante deles é o cronista de Damasco, Ibn al-Qalanissi, jovem letrado de uma família de notáveis. Testemunho ocular, ele tem 23 anos, em 1096, quando os franj chegam ao Oriente e se aplica em consignar por escrito os acontecimentos que chegam ao seu conhecimento. A sua crónica narra fielmente, sem envolvimento excessivo, a progressão dos invasores, tal como é vista na sua cidade. Para ele, tudo começou nesses dias de angústia em que chegam a Damasco os primeiros rumores...

 

A Invasão. 1096-1100

Olhem para os franj! Vejam com que fúria lutam por sua religião, enquanto nós, os muçulmanos, não demonstramos ardor algum em travar a Guerra Santa. In Saladino

Naquele ano, começaram a chegar informações sucessivas sobre a aparição de tropas de franj vindas do mar de Mármara em grande multidão. As pessoas amedrontaram-se. Essas noticias foram confirmadas pelo rei Kilij Arslan, cujo território era o mais próximo desses franj. O rei Kilij Arslan de quem fala aqui Ibn al-Qalanissi ainda não tem 17 anos quando os invasores chegam. Como primeiro dirigente muçulmano a ser informado da sua chegada, esse jovem sultão turco de olhos levemente puxados será o primeiro a infligir-lhes uma derrota e posteriormente o primeiro a ser vencido pelos seus temíveis cavaleiros. Desde Julho de 1096, Kilij Arslan sabe que uma imensa multidão de franj está a caminho de Constantinopla. Imediatamente, ele teme o pior. É claro que ele não tem ideia alguma dos objectivos reais perseguidos por essa gente, mas a vinda deles ao Oriente bastava para que se atemorizasse. O sultanato que ele governa abrange uma grande parte da Ásia Menor, um território que os turcos acabam apenas de arrancar aos gregos. Na verdade, o pai de Kilij Arslan, Suleiman, foi o primeiro a apossar-se dessa terra que se chamaria, muitos séculos mais tarde, Turquia. Em Niceia, capital desse jovem Estado muçulmano, as igrejas bizantinas continuam mais numerosas do que as mesquitas. Se a guarnição da cidade é formada por cavaleiros turcos, a maioria da população é grega, e Kilij Arslan não tem ilusões quanto aos verdadeiros sentimentos de seus súbditos, para os quais ele será sempre um chefe de bando bárbaro. O único soberano que eles reconhecem, aquele cujo nome é murmurado em todas as suas orações, e o basileu Aléxis Comneno, imperador dos romanos. Na realidade, Aléxis seria antes o imperador dos gregos, os quais se proclamam herdeiros do Imperio romano. Essa qualidade lhes é, aliás, reconhecida pelos árabes, que, no século XI como no século XX, designam os gregos pelo termo rum, romanos. O domínio conquistado pelo pai de Kilij Arslan em detrimento do Imperio grego é chamado, inclusive, de sultanato dos rum.

Na época, Aléxis e uma das figuras mais prestigiosas do Oriente. Esse quinquagenário de baixa estatura, olhos cintilantes de malícia, de barba bem cuidada, modos elegantes, sempre paramentado de ouro e ricas roupagens azuis, exerce um verdadeiro fascínio sobre Kilij Arslan. É ele quem reina sobre Constantinopla, a fabulosa Bizâncio, situada a menos de três dias de caminhada de Niceia. Uma proximidade que provoca no jovem sultão sentimentos mistos. Como todos os guerreiros nómadas, ele sonha com conquista e pilhagem. Não lhe desagrada sentir as riquezas legendárias de Bizâncio ao alcance da mão, mas ao mesmo tempo sente-se ameaçado: sabe que Aléxis nunca perdeu as esperanças de recuperar Niceia, não somente porque a cidade sempre foi grega, mas principalmente porque a presença de guerreiros turcos, a tão curta distância de Constantinopla, constitui um perigo permanente para a segurança do Imperio». In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.

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