A memória do esquecimento
«Levanto‑me.
Vou comprar qualquer coisa e depois venho olhando de frente, digo, deixando
António a puxar de um cigarro. Caminho até ao bar. Uma caixa de fósforos, se
faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado,
passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão, os ombros e a cabeça
recortados na superfície polida do grande espelho que corre a todo o
comprimento da parede. Procuro nos retalhos de imagens, entre prateleiras de
garrafas, reconstituir o cenário atrás de mim, enquanto pago os fósforos. No
embaciamento daqueles estilhaços de prata velha a custo reconheço António
sentado à mesa e, três filas além, a mancha de um vestido claro, uma vaga
sombra de mulher que se ergueu e se afasta. Volto‑me para regressar. E este
voltar‑me... Como o virar de página do tempo! Trinta anos transcorridos!...
Aquele meu voltar‑me para não encontrar ninguém! Apenas uma mesa vazia. No
pires, junto à chávena, um guardanapo de papel amarrotado, uma ponta de cigarro
esmagada... Perdi para sempre a ocasião de alguma vez me encontrar com ela? De
saber quem era?... Os anos desataram a transformar em húmus e a diluir em éter,
numa vertigem, aqueles que foram protagonistas ou meras testemunhas desses
insólitos acontecimentos. Caíram na voragem novos e velhos: Silva Lisboa,
Albertina, outros... Os que ficaram, ainda quando aqui e ali roçaram por eles
vestígios vivos desse passado, fecharam‑se numa cómoda ausência de curiosidade
ou uma estudada distanciação e apatia. Como que acabaram por esquecer.
Nem
esquecer‑me nem lembrar‑me podia eu. Factos que mal conhecera fragmentariamente
esbateram‑se em nebuloso fundo de outras preocupações que vieram relevar‑se
longos anos, em nitidez e luz, na ribalta da vida. Andanças de errante
saltimbanco do ofício de professor... Terras distantes escondidas nas voltas
das estradas, no tramontar das serras.... Muralhas tisnadas dos séculos e dos
sonhos, vigiando a veiga expectante e úbere do vale imenso... Perfumes e cores
exalando‑se do seio do oceano na ilha perdida como nenúfar que floriu no cume
de um vulcão extinto... Banho de brancura luminosa, olhos magoados da claridade
do céu e da cal de paredes e açoteias mouriscas... Maresia ribeirinha de
gaivotas e traineiras ondulando no porto fenício... Até vir aproar na cidade de
Ulisses a lustrar‑me de rosa... Que me chamou então de novo, decorrido tanto
tempo, a atenção para o mistério?...
Toma!‑
disse‑me Fernanda um dia ajoelhada no chão à boca da antiga mala abaulada,
enquanto me ia entregando livros, embrulhos, velhas fotografias. "Esta
mala! Viajou connosco tantos anos por todo o lado!...E parava, cansada, com as
mãos no regaço, o olhar tresmalhado no passado. De súbito acordava e tornava a
mexer na papelada. Estes são os álbuns dele. Que canseira miúda e aturada! As
mãos dele! Estou a vê‑las, habilidosas, a recortar, a colar... Que paciência!
Coligidos quase dia a dia, recortes de jornais, postais ilustrados, recordações
dos teatros em que actuou, de amigos, artistas, personalidades que conheceu...
O desnovelar da vida!... Tudo passou!» In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa,
1987, Dl nº 83973.
Cortesia de Difel/JDACT
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