domingo, 31 de outubro de 2021

No 31. Poesia. Fado. «Amiga amante, amor distante, Lisboa é perto, e não bastante. Amor calado, amor avante…»

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Fado do Campo Grande

«A minha velha casa, por mais que eu sofra e ande
É sempre um golpe de asa, varrendo um Campo Grande
Aqui no meu pais, por mais que a minha ausência doa
É que eu sei que a raiz de mim está em Lisboa

A minha velha casa resiste no meu corpo
E arde como brasa dum corpo nunca morto
À minha velha casa eu regresso à procura
Das origens da ternura, onde o meu ser perdura

Amiga amante, amor distante
Lisboa é perto, e não bastante
Amor calado, amor avante
Que faz do tempo apenas um instante
Amor dorido, amor magoado e que me doí no fado

Amor magoado, amor sentido
Mas jamais cansado
Amor vivido é o amor amado

Um braço é a tristeza, o outro é a saudade
E as minhas mãos abertas são chão da liberdade
A casa a que eu pertenço, viagem para à minha infância
É o espaço em que eu venço e o tempo da distância

E volto à minha casa, porque a esperança resiste
A tudo quanto arrasa um homem que for triste
Lisboa não se cala, e quando fala é minha chama
Meu castelo, minha Alfama, minha pátria, minha cama

Amiga amante, amor distante
Lisboa é perto, e não bastante
Amor calado, amor avante
Que faz do tempo apenas um instante
Amor dorido, amor magoado e que me doí no fado
Amor magoado, amor sentido
Mas jamais cansado
Amor vivido é o amor amado

Ai, Lisboa, como eu quero é por ti que eu desespero»

Poema de António Victorino Almeida

Um Contra o Outro

«Anda
Desliga o cabo
Que liga a vida
A esse jogo
Joga comigo
Um jogo novo
Com duas vidas
Um contra o outro

Já não basta esta luta contra o tempo
Este tempo que perdemos a tentar vencer alguém
Ao fim ao cabo
Que é dado como um ganho
Vai-se a ver desperdiçámos
Sem nada dar a ninguém

Anda
Faz uma pausa
Encosta o carro
Sai da corrida
Larga essa guerra
Que a tua meta
Está deste lado da tua vida

Muda de nível
Sai do estado invisível
Põe um modo compatível
Com a minha condição
Que a tua vida
É real e repetida
Dá-te mais que o impossível
Se me deres a tua mão

Sai de casa e vem comigo para a rua
Vem, que essa vida que tens
Por mais vidas que tu ganhes
É a tua que mais perde se não vens

Sai de casa e vem comigo para a rua
Vem, que essa vida que tens
Por mais vidas que tu ganhes
É a tua que mais perde se não vens

Anda
Mostra o que vales
Tu nesse jogo
Vales tão pouco
Troca de vício
Por outro novo
Que o desafio
É corpo a corpo
Escolhe a arma
A estratégia que não falha
O lado forte da batalha
Põe no máximo poder
Dou-te a vantagem
Tu com tudo
E eu sem nada
Que mesmo assim desarmada
Vou-te ensinar a perder

Sai de casa e vem comigo para a rua
Vem, que essa vida que tens
Por mais vidas que tu ganhes
É a tua que mais perde se não vens

Sai de casa e vem comigo para a rua
Vem, que essa vida que tens
Por mais vidas que tu ganhes
É a tua que mais perde se não vens»

Poema de Pedro Silva Martins

Cortesia de wikipedia/JDACT

JDACT, Fado, Poesia, Pedro Silva Martins, António Victorino Almeida,

Poesia. Fado. No 31. «Vou cantando amargurado vou d'um fado a outro fado que fale d'um fado meu meu destino assim cantado…»

 

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Fado Triste

«Ando na vida à procura
D'uma noite menos escura
E que traga luar do céu
D'uma noite menos fria
Em que não sinta agonia
D'um dia a mais que morreu

D'uma noite menos fria
Em que não sinta agonia
D'um dia a mais que morreu

Vou cantando amargurado
Vou d'um fado a outro fado
Que fale d'um fado meu
Meu destino assim cantado
Jamais pode ser mudado
Porque do fado sou eu

Meu destino assim cantado
Jamais pode ser mudado
Porque do fado sou eu

Ser fadista é triste sorte
Que nos faz pensar na morte
E em tudo o que em nós morreu

E andar na vida à procura
D'uma noite menos escura
Que traga luar do céu

E andar na vida à procura
D'uma noite menos escura
Que traga luar do céu

Ando na vida à procura
D'uma noite menos escura
Que traga luar do céu
D'uma noite menos fria
Em que não sinta agonia
D'um dia a mais que morreu»

Poema de Alfredo Marceneiro, in Fado

Sei de um rio

«Sei de um rio
Em que as únicas estrelas
Nele sempre debruçadas
São as luzes da cidade

Sei de um rio
Sei de um rio
Rio onde a própria mentira
Tem o sabor da verdade
Sei de um rio

Meu amor, dá-me os teus lábios!
Dá-me os lábios desse rio
Que nasceu na minha sede!
Mas o sonho continua

E a minha boca até quando?
Ao separar-se da tua
Vai repetindo e lembrando
Sei de um rio
Sei de um rio

Meu amor, dá-me os teus lábios!
Dá-me os lábios desse rio
Que nasceu na minha sede
Mas o sonho continua
E a minha boca até quando?
Ao separar-se da tua
Vai repetindo e lembrando
Sei de um rio
Sei de um rio

Sei de um rio
Ai!
Até quando?»

Poema de Alain Oulman

Cortesia de wikipedia/JDACT

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No 31. Robert K. Massie. Catarina a Grande. «As famílias principescas do século XVIII, mesmo as de menor importância, mantinham o aparato da classe. As crianças da nobreza tinham amas, governantas, tutores, professores de música, dança…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Infância de Sofia

«(…) Uma possível explicação é que o processo do parto quase custou a vida de Joana. Depois do nascimento de Sofia, a mãe adolescente permaneceu 19 meses confinada ao leito. Uma segunda explicação é que Joana era ainda muito jovem e suas altas ambições na vida estavam longe de realizadas. Mas o motivo mais forte, subjacente, foi que o bebé era menina, e não menino. Ironicamente, embora ela não pudesse saber então, o nascimento dessa filha viria coroar a realização da sua vida. Se o bebé tivesse sido o menino tão ardentemente desejado, e se tivesse vivido até a idade adulta, teria sucedido o pai como príncipe de Anhalt-Zerbst. Nesse caso, a história da Rússia teria sido diferente e jamais teria existido o pequeno nicho que Joana Elizabeth conquistou. Dezoito meses depois do nascimento da filha, Joana deu à luz o filho que foi sua paixão. Seu amor por esse segundo filho, Guilherme Cristiano, tornou-se ainda mais intenso quando ela percebeu que a criança tinha um problema sério. O menino, que parecia sofrer de raquitismo, era a sua obsessão. Ela o acariciava, mimava e não o perdia de vista, dedicando-lhe toda a afeição que negara à filha. Sofia, já bem ciente de que seu nascimento havia sido uma decepção para a mãe, observava o amor com que Joana cercava o irmãozinho. Beijinhos afectuosos, sussurros carinhosos, ternos afagos concedidos ao menino e Sofia observava. Certamente, é comum a mãe de um filho com dificuldades ou uma doença crónica dedicar mais tempo a essa criança, assim como é normal que outras crianças da família se ressintam dessa afeição desproporcional. Mas a rejeição de Joana por Sofia começara antes do nascimento de Guilherme e persistiu, de forma ainda mais agravada. O resultado desse favoritismo materno foi uma ferida permanente. A maioria das crianças rejeitadas ou negligenciadas em favor de um irmão reage mais ou menos como Sofia reagiu: para evitar maiores mágoas, bloqueou seus sentimentos. Nada lhe era dado, e nada era esperado. O pequeno Guilherme, que simplesmente aceitava a afeição da mãe como coisa normal, não tinha culpa nenhuma da injustiça, mas mesmo assim Sofia o odiava. Quarenta anos mais tarde, escrevendo suas Memoirs, seu ressentimento ainda despontava: Disseram-me que não fui recebida com muita alegria. Meu pai achava que eu era um anjo; minha mãe não prestava muita atenção em mim. Um ano e meio depois, ela [Joana] deu à luz um menino a quem idolatrou. Eu era meramente tolerada e frequentemente repreendida com uma violência e raiva que eu não merecia. Eu sentia isso sem que o motivo estivesse perfeitamente claro em minha mente.

Guilherme Cristiano não é mais mencionado nas Memoirs até sua morte, em 1742, com a idade de 12 anos. Então, o breve relato de Sofia é puramente clínico: Ele viveu apenas até os 12 anos e morreu de febre pintada [escarlatina]. Só após sua morte souberam a causa da doença que o obrigava a andar sempre de muletas e para a qual os remédios sempre lhe eram dados em vão, e foram consultados os mais famosos médicos da Alemanha. Aconselharam a levá-lo aos banhos em Baden e Karlsbad, mas a cada vez ele voltava tão manco quanto antes, e sua perna ficava menor à proporção que se tornava mais alto. Depois da sua morte, seu corpo foi dissecado e descobriram que o quadril era deslocado, e deve ter sido assim desde bebé… Na morte dele, minha mãe ficou inconsolável e foi necessária a presença de toda a família para ajudá-la a suportar a dor.

Essa amargura apenas sugere o enorme ressentimento de Sofia com relação à mãe. O mal causado à menina pelas óbvias demonstrações da preferência de Joana marcou profundamente o carácter de Sofia. Sua rejeição em criança ajuda a explicar a busca constante, quando mulher, por aquilo que tinha perdido. Mesmo quando imperatriz Catarina, no auge do poder autocrático, ela desejava não somente ser admirada por sua mente extraordinária e obedecida enquanto imperatriz, mas também encontrar o afecto elementar que seu irmão, e não ela, havia recebido da mãe.

As famílias principescas do século XVIII, mesmo as de menor importância, mantinham o aparato da classe. As crianças da nobreza tinham amas, governantas, tutores, professores de música, dança, equitação e religião para exercitá-las no protocolo, na conduta e nas crenças das cortes europeias. A etiqueta era primordial; as crianças praticavam cumprimentos e reverências centenas de vezes até que a perfeição fosse automática. As aulas de linguagem eram de suma importância. Os jovens príncipes e princesas tinham de saber falar e escrever em francês, a língua da intelligentsia europeia. Nas famílias aristocráticas germânicas, a língua alemã era considerada vulgar. A influência de sua governanta, Elizabeth (Babet) Cardel, foi fundamental nessa época da vida de Sofia. Babet, francesa huguenote que achou a Alemanha protestante mais conveniente do que a França católica, foi encarregada de supervisionar a educação de Sofia. Babet logo entendeu que a frequente beligerância da sua pupila era fruto da solidão e de uma ânsia por estímulos e afeição. Babet lhe deu isso. E também deu a Sofia o que veio a ser seu permanente amor pelo idioma francês, com todas as suas possibilidades de lógica, subtileza, espírito e vivacidade na escrita e na conversação. As aulas começaram com Les Fables de La Fontaine e depois passaram a Corneille, Racine e Molière. Boa parte de seus estudos, Sofia diria mais tarde, havia sido pura memorização. Logo notaram que eu tinha boa memória; a partir daí, eu era atormentada incessantemente para aprender tudo de cor. Ainda possuo a Bíblia alemã em que todos os versículos que eu precisava decorar estão sublinhados com tinta vermelha». In Robert K. Massie, Catarina a Grande, Editora Rocco, 2012, ISBN 978-853-252-799-8.

Cortesia de ERocco/JDACT

JDACT, Robert K. Massie, Literatura, Conhecimento,

No 31. Catarina a Grande. Robert K. Massie. «Às duas e meia de 21 de Abril de 1729, na fria madrugada cinzenta do Báltico, nasceu o bebé de Joana. Ai, a criança era uma menina. Joana e o mais conformado Cristiano Augusto conseguiram dar um nome à criança, Sofia Augusta…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Infância de Sofia

«Príncipe Cristiano Augusto de Anhalt-Zerbst dificilmente se distinguia na chusma de obscuros nobres empobrecidos que conturbavam o panorama e a sociedade da politicamente fragmentada Alemanha do século XVIII. Não possuindo qualidades excepcionais nem vícios alarmantes, o príncipe Cristiano demonstrava as sólidas virtudes da sua linhagem Junker: um grave senso de ordem e disciplina, integridade, parcimónia e piedade, aliados a uma inabalável falta de interesse por fofocas, intrigas, literatura e o mundo externo em geral. Nascido em 1690, fez carreira como soldado profissional no Exército do rei Frederico Guilherme da Prússia. Sua actuação militar em campanhas contra a Suécia, França e Áustria foi meticulosamente organizada, mas as suas proezas no campo de batalha não foram extraordinárias, e nada aconteceu para acelerar ou retardar sua carreira. Quando veio a paz, o rei, que certa vez teria-se referido a seu leal oficial como aquele idiota, Zerbst, deu-lhe o comando de um regimento de infantaria que guarnecia o porto de Stettin, recentemente adquirido da Suécia, na costa báltica da Pomerânia. Ali, em 1727, o príncipe Cristiano, ainda solteiro aos 37 anos, acedeu aos apelos da família e se dispôs a produzir um herdeiro. Vestindo seu melhor uniforme azul e levando a sua reluzente espada cerimonial, desposou a princesa Joana Elizabeth de Holstein-Gottorp, de 15 anos de idade, que ele mal conhecia. A família dele, que havia arranjado a união com a dela, estava exultante. A linhagem de Anhalt-Zerbst parecia assegurada e, além disso, a família de Joana estava um degrau acima na escala de posição social.

Foi um mau casamento. Havia problemas de diferença de idade. A união de uma adolescente com um homem de meia-idade geralmente é fruto de uma confusão de motivos e expectativas. Quando Joana, de uma boa família, mas com pouco dinheiro, chegou à adolescência, e seus pais, sem consultá-la, arranjaram essa união a um homem respeitável com quase o triplo da sua idade, Joana só pôde consentir. Facto ainda menos promissor, o carácter e o temperamento dos dois eram quase totalmente opostos. Cristiano Augusto era simples, honesto, austero, recluso e parcimonioso. Joana Elizabeth era complicada, vivaz, amante do prazer e extravagante. Era considerada bela e, com as sobrancelhas arqueadas, cabelos louros cacheados, charme e uma exuberante vontade de agradar, atraía facilmente as pessoas. Em ocasiões sociais, tinha necessidade de cativar, mas, à medida que envelhecia, tentava um pouco demais. Com o tempo, outras falhas apareceram. Muita conversa alegre revelava sua superficialidade; quando era contrariada, seu charme azedava para a irritabilidade, e o temperamento forte explodia sem aviso. Subjacente a esse comportamento, e Joana sabia disso desde o início, estava o facto de que seu casamento havia sido um terrível, e agora inescapável erro.

A confirmação veio rapidamente, quando ela viu a casa em Stettin, para onde o marido a trouxera. Joana havia passado a juventude em ambientes extremamente elegantes. Tinha 11 irmãos e, como a família formava um ramo menor ligado aos duques de Holstein, seu pai, o bispo luterano de Lubeck, levou Joana para morar com a madrinha, duquesa de Brunswick, que não tinha filhos. Ali, na mais sumptuosa e magnífica corte do Norte da Alemanha, ela se acostumou a uma vida de lindas roupas, pessoas sofisticadas, bailes, óperas, concertos, fogos de artifício, caçadas e frequentes mexericos divertidos. Seu marido, Cristiano Augusto, oficial de carreira vivendo com um magro soldo do Exército, não podia oferecer nada disso. O melhor que pôde arrumar foi uma modesta casa de pedras cinzentas numa rua calçada, constantemente varrida pelo vento e a chuva. A cidade fortificada de Stettin, cercada por muralhas sobre o triste Mar do Norte e dominada pela rígida atmosfera militar, não era um lugar onde a alegria, a graciosidade e quaisquer refinamentos sociais pudessem florescer. As esposas na guarnição tinham uma vida tediosa, e a vida das mulheres na cidade era ainda mais tediosa. E ali exigia-se que a jovem animada, recém-chegada do luxo e dos divertimentos da corte de Brunswick, vivesse com uma renda mínima, ao lado de um marido puritano dedicado à vida militar, habituado a uma economia severa, equipado para comandar, mas não para conversar, e ansioso pelo êxito da mulher no empreendimento para o qual a desposara: dar-lhe um herdeiro. Nesse sentido, Joana fez o melhor possível, era uma esposa obediente, ainda que infeliz. Mas sempre, no fundo, ela ansiava por ser livre: livre do marido enfadonho, livre da relativa penúria, livre do estreito mundo provinciano de Stettin. Sempre teve certeza de que merecia algo melhor. E então, passados 18 meses do casamento, ela teve um bebé. Aos 16 anos, Joana não estava preparada para as realidades da maternidade. Havia lidado com a gravidez enovelando-se em sonhos de que os filhos seriam extensões dela mesma, e a vida deles poderia abrir uma larga avenida para ela percorrer realizando suas próprias ambições. Nesses sonhos, tinha a certeza de que a criança no seu ventre, seu primogénito, seria um filho herdeiro do pai e, principalmente, um menino bonito, extraordinário, cuja brilhante carreira ela viria a orientar e finalmente compartilhar.

Às duas e meia de 21 de Abril de 1729, na fria madrugada cinzenta do Báltico, nasceu o bebé de Joana. Ai, a criança era uma menina. Joana e o mais conformado Cristiano Augusto conseguiram dar um nome à criança, Sofia Augusta Frederica, mas, desde o começo, Joana não conseguiu sentir nem expressar qualquer sentimento maternal. Não amamentou nem acariciou a filha. Não perdia tempo olhando-a no berço, nem a pegava no colo. Em vez disso, entregou abruptamente a menina aos cuidados de criados e amas de leite». In Robert K. Massie, Catarina a Grande, Editora Rocco, 2012, ISBN 978-853-252-799-8.

Cortesia de ERocco/JDACT

JDACT, Robert K. Massie, Literatura, Conhecimento,

sábado, 30 de outubro de 2021

Passagem para a Índia. E.M. Forster. «O narguilé tinha sido preparado com o tabaco muito comprimido, conforme o costume da casa do seu amigo, e a água gorgolejava melancólica. Ele o manejou habilmente»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Largando a bicicleta, que caiu antes que um criado pudesse pegá-la, Aziz saltou para dentro da varanda. O jovem era pura animação: Hamidullah, Hamidullah! Eu me atrasei?, gritou ele. Não se desculpe, disse o anfitrião. Você está sempre atrasado. Responda, por favor, à minha pergunta. Estou atrasado? Mahmoud Ali comeu tudo? Se ele comeu, vou para outro lugar. Senhor Mahmoud Ali, como vai o senhor? Obrigado, doutor Aziz, eu estou morrendo. Morrendo antes do jantar? Ah, pobre Mahmoud Ali! Hamidullah já está morto. Ele faleceu enquanto você vinha subindo de bicicleta. Ah, sim, é isso, disse o outro. Imagine nós dois dirigindo-nos de um outro mundo ao senhor, de um mundo mais feliz. Por acaso no seu mundo mais feliz existem narguilés? Aziz, não brinque. Estamos numa conversa muito triste. O narguilé tinha sido preparado com o tabaco muito comprimido, conforme o costume da casa do seu amigo, e a água gorgolejava melancólica. Ele o manejou habilmente. Cedendo por fim, o tabaco saiu num jacto, penetrou nos seus pulmões e narinas, expulsando a fumaça das fogueiras de esterco de vaca que os havia enchido quando ele passou pedalando pelo bazar. Era delicioso. Aziz ficou ali num transe sensual mas sadio, durante o qual a conversa dos outros dois não lhe pareceu particularmente triste, eles estavam discutindo se era ou não possível ser amigo de um inglês. Mahmoud Ali sustentava que era impossível e Hamidullah discordava, mas com tantas reservas que não havia atrito entre eles. Era realmente delicioso estar deitado na ampla varanda, com a lua subindo diante deles e os criados preparando o jantar lá atrás, e sem nenhuma confusão acontecendo. Bom, veja a minha própria experiência esta manhã. Eu só afirmo que é possível na Inglaterra, respondeu Hamidullah, que muito tempo antes havia estado naquele país, antes da grande migração, e tivera em Cambridge uma recepção cordial. Aqui é impossível. Aziz, o garoto de nariz vermelho insultou-me novamente no tribunal! Eu não o culpo. Disseram-lhe que ele devia insultar-me. Até recentemente ele era um garoto muito bonzinho, mas os outros tomaram conta dele. É, eles não têm chance aqui, é isso que eu acho. Aparecem querendo ser cavalheiros e ouvem dizer que isso não é apropriado. Veja o Lesley, veja o Blakiston, agora é o seu garoto de nariz vermelho, e Fielding será o próximo. Ora, eu me lembro quando o Turton apareceu. Foi numa outra parte da Província. Vocês não vão acreditar, amigos, mas eu andei com o Turton na carruagem dele, o Turton! Ah, sim, houve uma época em que nós éramos muito íntimos. Ele me mostrou a sua colecção de selos.

Hoje ele é capaz de achar que você a roubaria. Turton! Mas o garoto de nariz vermelho será bem pior que o Turton! Acho que não. No fim eles são todos iguais, nem melhores nem piores. Dou a qualquer inglês dois anos, seja ele Turton ou Burton. A diferença é apenas de uma letra. E dou a qualquer inglesa seis meses. Todas elas são exactamente iguais. Você não concorda comigo?» In E.M. Forster, Passagem para a Índia, 1924, 1879, Edição Relógio D’Água, 2017, ISBN 978-989-641-756-7.

Cortesia de ERelógioD’Água/JDACT

JDACT, Literatura, Índia, EM Forster,

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Passagem para a Índia. E.M. Forster. «A extensão interminável se interrompe apenas ao sul, onde um grupo de punhos e dedos se arremete do chão. Esses punhos e dedos são as colinas de Marabar, que contêm as extraordinárias cavernas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A não ser pelas cavernas de Marabar, que ficam a trinta quilómetros de distância, a cidade de Chandrapore nada apresenta de extraordinário. Margeada, mais que banhada, pelo Ganges, ela o acompanha por umas poucas milhas, quase não se distinguindo dos detritos que ele deposita tão fartamente. Não há degraus para banho na beira do rio, porquanto ali o Ganges não é sagrado; na verdade não há beira de rio, e o amplo e mutante panorama da sua corrente é vedado por bazares. As ruas são malcuidadas e os templos não têm beleza, e embora haja umas poucas casas elegantes, elas são encobertas por jardins ou ficam em becos cuja sujeira afasta quem quer que não tenha sido convidado. Chandrapore nunca foi grande ou bela, mas duzentos anos atrás ficava na estrada entre o Norte da Índia, então imperial, e o mar, e as casas elegantes datam desse período. O interesse pela decoração cessou no século XVIII, mas nunca foi democrático. Nos bazares não há pinturas e os entalhes são poucos. A própria madeira parece feita de barro; os habitantes, de barro movente. Tudo o que se mostra aos olhos é tão rasteiro, tão monótono, que quando o Ganges baixa seria legítima a expectativa de que ele tivesse feito desaparecer aquela excrescência devolvendo-a à terra. As casas caem, as pessoas se afogam e são deixadas por ali apodrecendo, mas o contorno geral da cidade persiste, inchando aqui, minguando ali, como uma débil mas indestrutível forma de vida. Para o interior a perspectiva se modifica. Há uma esplanada oval e um hospital comprido e descorado. No terreno elevado ao lado da estação ferroviária erguem-se casas de eurasianos. Depois da ferrovia, que corre paralela ao rio, a terra afunda e em seguida volta a se erguer muito infrenemente. Nessa segunda elevação fica a pequena área residencial dos funcionários ingleses do distrito, e vista dali Chandrapore parece ser um lugar totalmente diferente. É uma cidade de jardins. Não é uma cidade, e sim uma floresta dispersa, rala, com cabanas. Um jardim de recreio tropical banhado por um rio nobre. As palmeiras suculentas, os cinamomos, as mangueiras e as figueiras-de-bengala que estavam ocultos atrás dos bazares são visíveis agora e por sua vez ocultam os bazares. As árvores se erguem em jardins onde antigos tanques as nutrem, irrompem em arrabaldes abafadiços e ao redor de templos desprezíveis. Buscam luz e ar, e, dotadas de mais força que o homem ou suas obras, pairam sobre o sedimento inferior saudando-se umas às outras com acenos de galhos e folhas e criando uma cidade para os pássaros. Sobretudo depois das chuvas elas escondem o que se passa, mas em todas as ocasiões, mesmo quando queimadas ou desfolhadas, embelezam a cidade para os ingleses que moram no alto, e assim os recém-chegados não acreditam que Chandrapore seja tão pobre quanto costuma ser descrita, e é preciso levá-los até lá para que eles se desiludam. Quanto à área residencial dos funcionários, ela não provoca nenhuma emoção. Não encanta nem desagrada. É planeada com espírito prático, tendo no alto um Clube de tijolo vermelho e bem atrás uma mercearia e um cemitério, e as casas se dispõem ao longo de ruas que se cruzam em ângulos rectos. Não há nada de repulsivo, e apenas o panorama é bonito; nada é compartilhado com a cidade, fora o céu que se arqueia sobre ambas.

O céu também tem as suas mudanças, menos pronunciadas que as da vegetação e do rio. Por vezes as nuvens lhe dão relevo, mas normalmente ele é uma cúpula de matizes mesclados, com predomínio do azul. De dia o azul empalidece até ao branco, ali onde ele toca o branco da terra; depois do pôr-do-sol ele tem uma nova circunferência alaranjada, dissolvendo-se em direcção ao alto até chegar a um suavíssimo púrpura. Mas o cerne azul permanece, até mesmo à noite. Então as estrelas são como lâmpadas penduradas na imensa abóbada. A distância entre a terra e elas é um nada, confrontada com a distância além delas; e essa distância mais remota, embora esteja além da cor, finalmente se liberta do azul.

O céu tudo determina, não só climas e estações, mas a hora em que a terra deverá se embelezar. Sozinha ela pouco pode fazer, apenas débeis explosões de flores. Mas quando o céu resolve, os bazares de Chandrapore inundam-se de esplendor ou uma bênção passa de horizonte a horizonte. O céu é capaz disso por ser tão forte e tão enorme. A força lhe vem do sol, nele infundida diariamente; o tamanho, da prostração da terra. Nenhuma montanha ultrapassa a linha curva. Légua após légua a terra se estende plana, incha um pouco, volta a ficar plana. A extensão interminável se interrompe apenas ao sul, onde um grupo de punhos e dedos se arremete do chão. Esses punhos e dedos são as colinas de Marabar, que contêm as extraordinárias cavernas». In E.M. Forster, Passagem para a Índia, 1924, 1879, Edição Relógio D’Água, 2017, ISBN 978-989-641-756-7.

Cortesia de ERelógioD’Água/JDACT

JDACT, Literatura, Índia,

O Castelo. Luis Zueco. «Fuera, las llamas de una colosal hoguera se alzaban hacia el cielo estrellado y Nunila las contemplaba en un extremo en silencio, ensimismada. No te vas a acercar?, le preguntó sin inmutarse»

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Sierra de Leyre. Noviembre del año 1027

«(…) Quién eres tú?, la asustó una voz a su espalda. La niña se volvió y halló frente a ella el rostro de una mujer con la piel más oscura que nunca habían visto sus ojos. Su mirada y su cabello también vestían de penumbra, e incluso sus ropas tenían el color de la noche. Me llamo Eneca. Y qué hace una pequeña como tú sola en el bosque? No estoy sola, replicó la niña, tengo a mi perro y pronto mi madre vendrá a buscarme. Un magnífico mastín, y de dónde vienes? De Xabier, mi padre es el tenente del castillo. Nos atacaron y…, logramos huir. Interesante, y quién atacó Xabier? El demonio de ojos de sangre. La mujer se estremeció al oír aquellas palabras y escrutó de nuevo a la niña, esta vez con más énfasis y desconfianza. Tienes hambre? Estás hecha un saco de huesos. Siéntate ahí y comeremos algo caliente.

Eneca obedeció y la mujer le sirvió una sopa con tropezones de una carne cuya procedencia animal era difícil de adivinar, y también alimentó al perro. Una niña como tú no debe deambular sola, los hombres son unos animales y se dejan llevar por sus peores instintos. Es mejor que permanezcas conmigo. Tengo que encontrar a mis padres! Dime, los has visto en tus sueños? No, a ellos no. Bien, asintió, al tiempo que se llevaba una hierba a la boca que comenzó a masticar. Yo necesito ayuda, quédate aquí, al menos un tiempo. Hay cosas que debes aprender antes de seguir tu camino. Todo sucede por alguna razón, absolutamente todo. El destino nos guía a través de la vida, de esta y de las otras. Qué otras? Vaya, vaya. Veo que tienes mucho que aprender, voy a salir al bosque. Acompáñame, por favor.

Así lo hizo Eneca, pensando que le mostraría algo en particular, pero sólo caminaron hasta un saliente pedregoso y permanecieron allí hasta que se puso el sol. Después, la mujer la llevó hasta el interior del refugio y la acomodó en una cavidad con el suelo de paja. Artal dormiría a su lado. Así pasó Eneca la noche en aquel sobrio lugar. No fue la última. La niña fue acogida con cierta indiferencia por su anfitriona, que la ignoraba durante gran parte del día, pero que a la vez se encargaba de que comiera y no pasara frío. La mujer se llamaba Nunila y aquel abrigo era su morada. En su interior guardaba todo tipo de utensilios, hierbas y brebajes. La oquedad en la montaña era profunda y repleta de lugares de almacenaje. Además, dentro la temperatura era constante y había poca humedad. Nunila le ordenó limpiarla todos los días y Eneca, poco acostumbrada a esas labores, quiso oponerse al principio. Pero por alguna extraña razón, Nunila era de su agrado y sentía la necesidad de obedecerla.

Una mañana, salieron las dos juntas, acompañadas de Artal, al bosque. Adónde vamos?, preguntó Eneca. Hoy te voy a enseñar a recoger setas, así que presta atención, ya que son tan ricas y útiles como peligrosas. La mayoría de ellas tienen veneno. Toda seta buena tiene su gemela nociva. A veces la diferencia entre las dos variedades es tan sutil que muchos hombres las confunden y mueren. Estuvieron caminando durante un buen tramo de la mañana. Eneca! Mira, ves esa? Es una seta calabaza. Tiene como un sombrero. Así es, siempre es de color pardo, con el borde más claro. Crece entre hayas, robles y pinos. Nunila se agachó y mostró a la niña cómo debía cortarla. Deambularon todo el día por el bosque, recolectando setas y, al llegar la noche, guisaron las más sabrosas en el interior de la cueva. Recordarás cómo son las setas calabaza?, preguntó Nunila, sonriente. Sí, con un sombrero marrón, muy carnoso y un pie fuerte. Y nada más? Creo que no. Maldita niña! El sombrero tiene un margen más claro, su color no es uniforme. Si no eres capaz de fijarte en esos detalles, no me sirves para nada. Cómo puedes ser tan estúpida? No estoy más que perdiendo el tiempo contigo!

Eneca se fue llorando fuera de la cueva. Nunila tan pronto se mostraba amable y se preocupaba por ella, como cambiaba de manera súbita de humor, se encolerizaba y la despreciaba e ignoraba. Pasaron las semanas y llegó el frío invierno, durante muchos días no pudieron salir de su refugio. A pesar de la cercanía, Nunila continuó sin hablar mucho com Eneca. De esta manera transcurrían los días para la niña, hasta que por fin llegó la primavera y después el buen tiempo. En una de las primeras noches de calor, Eneca se despertó en la oscuridad y descubrió un resplandor en el exterior del abrigo. Sin dudarlo, se incorporó y salió de la cueva. Fuera, las llamas de una colosal hoguera se alzaban hacia el cielo estrellado y Nunila las contemplaba en un extremo en silencio, ensimismada. No te vas a acercar?, le preguntó sin inmutarse». In Luis Zueco, El Castillo, 2015, Titivillus, In Luis Zueco, O Castelo, 2015, Alma dos Livros, 2020, ISBN 978-989-899-914-0.

Cortesia de AdosLivros/JDACT

JDACT, O Castelo, História, Século XI, Idade Média,

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Poesia. José Luís Peixoto. «… os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios. De encontro ao silêncio, dentro do mundo, estás tão bonita é aquilo que quero dizer»

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A Mulher Mais Bonita do Mundo

«A Mulher Mais Bonita do Mundo

estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.
entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.
entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.
há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.
estás tão bonita hoje.
os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.
os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer».
Poema de José Luís Peixoto, in A Casa, a Escuridão

Palavras para a Minha Mãe

«mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.
pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.
às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.
lê isto: mãe, amo-te.
eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.
Poema de José Luís Peixoto, in A Casa, a Escuridão

Cortesia de OCitador/JDACT

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O Castelo. Luis Zueco. «Y soltó un tremendo grito cuando algo descendió frente a ella. Artal se despertó y se encaró con aquel ser. Era una lechuza blanca, que parecía mirarla impasible…»

jdact

Sierra de Leyre. Noviembre del año 1027

«(…) Conforme se iba recuperando, pensaba en qué habría sido de su padre, que defendía lo alto de la torre; de su abuela, que se quedó para ocultar su huida; y su madre? Por qué ella le había dejado sola? No lo estaba. Artal frotó el hocico contra su espalda, empujándola para que se levantara. Eneca le hizo caso y le siguió entre la penumbra verdosa de la vegetación. Así, llegaron hasta un riachuelo, y Artal metió el morro en la corriente para beber com su alargada lengua. Después miró a Eneca y esta introdujo sus manos. El agua estaba fría, pero se lavó la cara, y comenzó a sentirse algo mejor. Se pasó las manos húmedas por el cuello, la frente y los hombros y volvió a introducir las dos palmas formando un cuenco del que beber. Aquello la devolvió a la vida. Vamos, Artal, tenemos que buscar algo de comer.

Eneca caminó siguiendo el curso del agua, rastreando la orilla, mientras su perro olisqueaba algunas plantas que iban encontrándose a su paso. Hasta que la muchacha se detuvo frente a un imponente árbol de cuyos pies brotaban raíces que se sumergían de nuevo en la tierra y sus ramas estaban tan altas que no podía alcanzarlas. Fue a la base de su tronco y escarbó, primero con las manos y, cuando se percató de que era tarea inútil, buscó un par de piedras. Con una de ellas dio forma a la otra, para después utilizarla en la misma tarea. Con ayuda de sus rudimentarios útiles, encontro unas raíces verdosas, que fue partiendo antes de lavarlas en el río. Masticó la primera de ellas, después la succionó, extrayendo toda la savia, continuó con la segunda a la vez que le daba otra a Artal.

Esa noche la pasaron en otro abrigo que encontraron antes de la puesta de sol, donde el riachuelo vertía sus aguas a un cauce mayor. Recordó cómo le habían enseñado a hacer fuego y buscó las rocas adecuadas, reunió hojas y ramulla secas, y, por último, se afanó en encontrar el lado donde menos pegara el viento para, después de casi una docena de intentos, lograr que una chispa cebara la escueta hoguera, a la que añadió ramas más considerables y alguna piña que prendió de manera efusiva. Se acurrucó contra Artal y cerró los ojos. Era complicado hacerlo cuando, en sueños, no dejaba de ver a sus padres sufriendo. Así que despertó antes del alba y permaneció en vigilia observando las estrellas de la bóveda celeste, todas estaban allí suspendidas y se movían al unísono alrededor de la tierra que pisaban los hombres. Era hermoso verlas brillar y, en el profundo silencio de aquellas montañas, parecía como si pudieras elevarte y tocarlas con la punta de los dedos. No fue eso lo que sucedió, más bien lo contrario, pues creyó ver a un ser volando sobre las copas de los árboles. Quizá fuera uno de esos espíritus que pueblan el bosque, o de esas mujeres que son capaces de transformarse en formas extrañas y viajar de un lugar a otro.

Y soltó un tremendo grito cuando algo descendió frente a ella. Artal se despertó y se encaró con aquel ser. Era una lechuza blanca, que parecía mirarla impasible, mientras su perro ladraba de manera incesante. Tranquilo, le acarició el cuello, no pasa nada, tranquilo. El animal se fue apaciguando. Frente a ellos la lechuza giró sus ojos rasgados. Eneca dio un par de pasos hacia ella, extendió su brazo derecho y lo colocó a escasos palmos del ave, que pestañeó antes de agitar sus enormes alas. Eneca no se movió y la lechuza se posó sobre su muñeca. Dime, dónde están mis padres? La lechuza no se giró. Tú lo sabes, espíritu del bosque, adónde debo ir? La lechuza extendió de nuevo las alas y voló a unos pasos de distancia, mientras el resplandor de los primeros reflejos dorados del nuevo día asomaba por entre las montañas. El ave se elevó y voló hacia la salida del astro. Artal! Nos vamos. La muchacha siguió el aleteo de la lechuza, mientras la claridad del día comenzaba a inundar el bosque, hasta que la perdió de vista. Miró a su alrededor. Se hallaba en un claro, en la ladera hacia un valle. Olfateó un olor que llamó su atención, parecía un fuego. Algo estaba quemándose cerca. Artal también se percató y siguió el rastro. Se detuvo y observó a Eneca, esperando. La niña buscó de nuevo a la lechuza, pero esta había desaparecido, así que caminó hacia su perro, que reanudó su marcha, avanzando por los matorrales. Eneca apenas podía seguirle entre la vegetación y estaba a punto de detenerse, cuando llegó a un lugar resguardado excavado en la roca. Una humareda blanca nacía de una fogata a sus pies. Ella se acercó precavida. No había nadie, pero sobre el fuego había una cazuela de barro». In Luis Zueco, El Castillo, 2015, Titivillus, In Luis Zueco, O Castelo, 2015, Alma dos Livros, 2020, ISBN 978-989-899-914-0.

Cortesia de AdosLivros/JDACT

JDACT, O Castelo, História, Século XI, Idade Média,

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Poesia. Alberto Caeiro. «Se soubesse que amanhã morria e a Primavera era depois de amanhã, morreria contente…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Quando Vier a Primavera

«Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
Poema de Alberto Caeiro, in Poemas Inconjuntos. Heterónimo de Fernando Pessoa

Agora que Sinto Amor

«Agora que sinto amor
Tenho interesse no que cheira.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver».
Poema de Alberto Caeiro, in O Pastor Amoroso.

A Espantosa Realidade das Cousas

«A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
Basta existir para se ser completo.
Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. Naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.
Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.
Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade».
Poema de Alberto Caeiro, in Poemas Inconjuntos. Heterónimo de Fernando Pessoa

Cortesia de OCitador/JDACT

Poesia, A Arte, Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, 

A Cidade Perdida. James Rollins. «A ansiedade impediu-a de voltar a subir ao quarto andar para o recuperar. Ela tinha de saber o que acontecera no museu»

Cortesia de wikipedia e jdact

The British Museum. Londres. 14 de Novembro

«(…)

02h22, GMT Londres, Inglaterra

Safia postava-se diante da barricada, uma vedação em A preta e amarela. Mantinha os braços cruzados, ansiosa, gelada. O fumo impregnava o ar. O que acontecera? Atrás da barricada, um polícia segurava a sua carteira na mão e comparava a fotografia com a mulher à sua frente. Ela sabia que ele tinha dificuldade em fazer corresponder às duas. Na sua mão, o cartão de identificação do museu retratava uma mulher cuidada de trinta anos de idade de tez cor de café com leite, cabelo de ébano apanhado atrás numa eficiente trança e olhos verdes escondidos por trás de uns óculos de leitura escurecidos. Em contraste, diante do jovem guarda apresentava-se uma mulher ensopada e enlameada, com o cabelo desregradamente colado em longas faixas ao rosto. Os olhos dela pareciam perdidos e confusos, centrados para lá das barreiras, para lá do frenesim do pessoal e equipamento de emergência. Equipas noticiosas ponteavam a paisagem, aureoladas pelos focos das suas câmeras. Alguns camiões de reportagem televisiva estavam estacionados em cima dos passeios. Reconheceu igualmente dois veículos militares entre as equipas de emergência além de efectivos empunhando armas.

A possibilidade de um ataque terrorista não podia ser descartada. Ela ouvira tais rumores entre a multidão e de um repórter que tivera de evitar para chegar à barricada. E não poucos lançaram olhares suspeitosos na sua direcção, a árabe solitária na rua. Ela tivera uma experiência em primeira-mão com o terrorismo, mas não da maneira que eles suspeitavam. E talvez ela interpretasse mesmo erradamente as reacções à sua volta. Uma forma de paranóia, designada como hiper-ansiedade, era uma sequela frequente de um ataque de pânico. Safia prosseguiu por entre a multidão, respirando pesadamente, centrando-se no seu propósito ali. Lamentou ter esquecido o guarda-chuva. Ela deixara o apartamento imediatamente após a chamada, demorando-se apenas o suficiente para vestir umas calças de caqui e uma blusa branca floreada. Pusera um casaco Burberry pelo joelho, mas na pressa, o guarda-chuva a condizer fora deixado no seu posto junto à porta. Só quando chegou ao primeiro andar do edifício e se precipitou para a chuva, percebeu o erro. A ansiedade impediu-a de voltar a subir ao quarto andar para o recuperar. Ela tinha de saber o que acontecera no museu. Passara a última década a construir a colecção e os últimos quatro anos a dirigir os seus projectos de investigação fora do museu. Quanto fora arruinado? O que poderia ser salvo?

Lá fora, a chuva crescera de novo para uma bátega persistente, mas pelo menos os céus nocturnos estavam menos coléricos. Quando alcançou o posto de controlo de emergência que coordenava o acesso, estava ensopada até aos ossos. Estremeceu quando o guarda se mostrou satisfeito com a identificação. Pode seguir. O inspector Samuelson está à sua espera. Um outro polícia escoltou-a até a entrada sul do museu. Ela olhou para cima para a sua fachada de colunata. Mostrava a solidez de uma caixa-forte, uma permanência que não podia ser questionada. Até essa noite... Foi conduzida pela entrada e por uma série de escadas abaixo. Passaram por portas assinaladas: Reservado ao Pessoal do Museu. Ela sabia para onde estava a ser levada. Para a base de segurança subterrânea. Um guarda armado postava-se de sentinela à porta. Assentiu à sua aproximação, claramente à espera deles. Abriu a porta. A sua escolta passou-a a um novo elemento: um homem de tez negra envergando traje civil, um indistinto fato azul. Era alguns centímetros mais alto que Safia, o cabelo completamente cinza. O rosto parecia de couro gasto. Ela reparou numa mancha prateada de restolho nas suas faces, por barbear, muito provavelmente arrancado da cama. Ele estendeu uma mão vigorosa. Inspetor Geoffrey Samuelson, disse com a mesma firmeza do seu aperto de mão. Obrigado por ter acorrido tão prontamente. Ela assentiu, demasiado nervosa para falar. Se quiser fazer o favor de me acompanhar, doutora al-Maaz, necessitamos da sua ajuda na investigação da causa da explosão. Minha?, conseguiu pronunciar. Passou por uma sala de descanso, atulhada de pessoal de segurança. Parecia que todo o pessoal, de todos os turnos, tinha sido convocado. Ela reconheceu vários dos homens e mulheres, mas fitavam-na agora como se fosse uma estranha. O murmúrio do seu arrazoar silenciou-se enquanto ela passava. Eles deviam saber que ela fora chamada, mas tal como ela não pareciam conhecer a razão. Contudo, era clara a suspeição por detrás do silêncio. Endireitou mais as costas, a irritação a faiscar por entre a ansiedade». In James Rollins, A Cidade Perdida, Bertrand Editora, 2015, ISBN 978-972-252-930-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT

JDACT, James Rollins, Literatura, A Arte, 

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Memórias Secretas de Dona Carlota Joaquina. José Presas. «Depois de feitos os primeiros cumprimentos, ofereceu-me uns periódicos para que me entretivesse com sua leitura enquanto voltava para despedir-se do núncio…»

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«(…) O bergantim atingira, na sua rota, o ponto em que me era forçoso abandoná-lo para continuar a viagem, e, aproveitando um cúter inglês, única embarcação que havia no porto, segui caminho até ao Rio de Janeiro. Previa o risco iminente que corria de ser considerado prisioneiro de guerra. Por outro lado, porém, não podia por mais tempo permanecer estacionado na vila de Santos, onde podia passar-se um ano sem que arribasse navio nacional ou estrangeiro. Com três dias de navegação fundeamos na baía do Rio, e logo tivemos a visita regulamentar. Informado o seu chefe, da minha procedência, voltou imediatamente a participar ao Governo a minha chegada. Pelas providências que este tomou, vim saber que se dava à minha pessoa grande importância, pois que no mesmo momento fui mandado chamar pela própria falua da visita, e conduzido por um ajudante-de-ordens perante o general comandante da praça, o qual, depois de amplo interrogatório, me despediu com a única ressalva de não sair da cidade sem expressa permissão sua. Com semelhante disposição, confirmaram-se meus receios e previsões, e vi-me reduzido, na minha opinião, à triste sorte de prisioneiro. Assim permaneci coisa de um mês, até que se apresentou, com dois navios de linha e outras embarcações menores, o contra-almirante Smith, que tendo recomendado a seu imediato, o comodoro Moor, que escoltasse a Família Real de Portugal até ao Rio de Janeiro, ficara cruzando diante da barra do porto de Lisboa, a fim de observar e tomar conhecimento das operações do general Junot e compenetrar-se dos objectivos e planos que este formava acerca de Portugal.

Dois dias depois da chegada do contra-almirante Smith, este me mandou, por intermédio do seu ajudante-de-ordens, Carol, solicitar instantaneamente tivesse a bondade de ir a bordo do seu navio, sem nada adiantar-me quanto ao objecto da entrevista que desejava. Mais a necessidade que a curiosidade decidiu-me a comparecer perante sir Sidney Smith, que me recebeu, na antecâmara de seu navio, com uma amabilidade e cortesia pouco comum em pessoas de sua carreira e categoria, ainda mais quando estão dominando, de suas fortalezas marítimas, a todos que encontram no seu caminho, ou nos lugares em que têm arvorado seu pavilhão, atitude que, geralmente, deixa de ser ameaçadora, para converter-se em fulminante. Depois de feitos os primeiros cumprimentos, ofereceu-me uns periódicos para que me entretivesse com sua leitura enquanto voltava para despedir-se do núncio de Sua Santidade, monsenhor Caleppi, que em companhia de dois portugueses tinha ido felicitá-lo por sua feliz chegada. Livre já das visitas de cerimónia, fez-me entrar no camarote, e iniciou a conversa perguntando-me acerca da situação do Rio da Prata, a saber: a respeito da opinião pública, número de tropas, meios e recursos com que podia contar o general Liniers para sua defesa, e se, quando saí de Buenos Aires, ali se temia que voltassem pela terceira vez os ingleses a conquistá-la. Minha resposta a todos esses quesitos foi um tanto exagerada a favor do general Liniers, de quem disse ter à sua disposição uns vinte mil homens, porque, após a última derrota experimentada pelos ingleses, se engrossaria o exército espanhol com tropas mandadas vir de todas as províncias, e que o aumentariam ainda reforços que se esperavam do vice-rei de Lima. Vi, pela fisionomia de Smith, que essa notícia lhe era pouco agradável; não obstante, continuou seu interrogatório apresentando-me um plano de toda a costa do vice-reinado de Buenos Aires, para que lhe indicasse qual o ponto que, na minha opinião, era o mais qualificado e favorável a um desembarque de tropas. Respondi-lhe ser essa matéria bastante estranha a meus conhecimentos, e que, mesmo quando possuísse alguns, sempre seriam muito inferiores, por uma razão natural, ao de um chefe de primeira ordem da Marinha Real Inglesa.

Sorriu com a resposta; e disse-me, então, francamente, que o objectivo de sua vinda era o de tentar, pela terceira vez, a conquista de Buenos Aires, para a qual se estava preparando uma grande divisão nos portos da Inglaterra. Já se passara algum tempo nessa conversação, e julgando ter satisfeito seus desejos, quis despedir-me, mas instou muito comigo para que o acompanhasse no jantar. Os ingleses costumam servir-se da mesa para arrancar dos convivas o que convém a seus interesses. Nessa ocasião, tinha de agir com a maior circunspecção, para ficar sempre senhor de mim mesmo e medir bem as palavras». In José Presas, Memórias Secretas de Dona Carlota Joaquina, Edição do Senado Federal, volume 130, Brasília, 2013, ISBN 978-857-018-271-5.

Cortesia de ESenadoFederal/JDACT

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