segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Manique do Intendente. Uma Vila Iluminista. Cátia Marques. «O século XVIII é uma época de intensiva internacionalização, dispersão e regionalização dos estilos e soluções arquitectónicas de que o classicismo passa então a surgir como apenas mais uma proposta»

jdact e wikipedia

Arquitectura e Urbanismo: o contexto Português

«(…) Uma rua nova foi traçada de modo que a Igreja é o seu extremo visual e físico. À sua esquerda abre-se uma praça quadrada. Para ela dá o palácio do bispo, de planta em U, com o pátio encerrado por um terraço, articulando-se com a igreja através da torre e também um segundo palácio, destinado a albergar o rei nas suas deslocações a Mafra, com uma fachada monumental e original. É constituída por dois corpos simples que ladeiam uma grande fonte de características barrocas, alimentada por um aqueduto, com cerca de 2 Km, construído para o efeito. A casa da câmara nunca foi construída. A ligação entre o palácio episcopal e a igreja é feita por um terraço exterior, que dá acesso à Sala das Bênçãos, que abre simultaneamente para a Praça e para o interior da igreja. A produção artística em Portugal no século XVIII não foi acompanhada por produção teórica.

Aliás não existia ensino institucionalizado, e os artistas eram encarados como praticantes de um ofício como qualquer outro. Os arquitectos mereciam algum reconhecimento, mas porque estavam geralmente integrados nos quadros militares. A experiência da Academia de Roma, fundada em 1720, por dom João V, não serviu para inverter este cenário uma vez que o ensino estava nas mãos de artistas bastante secundários. Foi encerrada em 1728 (segundo Ayres Carvalho) ou 1760 (segundo J. A. França), por conflitos com a Santa Sé. Em finais do século, o clima artístico é confuso. Tudo está em aberto, tudo é discutível e tudo é discutido. Há uma ruptura dos códigos vigentes e, sem a sua substituição, por falta de uma dinâmica na teorização, está aberto o caminho às mais variadas experiências. O século XVIII é uma época de intensiva internacionalização, dispersão e regionalização dos estilos e soluções arquitectónicas de que o classicismo passa então a surgir como apenas mais uma proposta. A esfera do que era legítimo em arquitectura alarga-se incomensuravelmente: às influências regionais e mundiais do ponto de vista geográfico, ao romano, ao gótico e às arquitecturas primitivas e orientais no que respeita à cronologia.

Dá-se uma fundamental alteração no panorama da produção arquitectónica: os velhos mestres da Aula do Risco (Manuel Maia, Eugénio Santos, Reinaldo Manuel) já não vivem. Tal facto propicia um certo esquecimento das antigas matrizes e abre espaço para a emergência de arquitectos com uma formação fundamentalmente diferente, muitas vezes adquirida no estrangeiro, e aos próprios estrangeiros. É nesse ambiente que o barroco, tardiamente, desaparece e surge como gosto oficial o neoclassicismo. Este estende-se a todo o país e tem grande força sobretudo no Norte e na sua capital, sob nítida influência do neo-palladianismo inglês. Podem citar-se algumas obras significativas do neoclássico da Invicta como a Cadeia da Relação (1765-1796), o Hospital de Santo António (1770), o Palácio da Bolsa (1839) e a Igreja e Confraria da Santíssima Trindade (1848). Outro exemplo também no Norte é a Casa de Câmara da Póvoa do Varzim, cuja arcaria foi traçada por Reinaldo Oudinot.

Este ambiente não é exclusivo de Portugal. Em Itália, país com forte influência por cá, ao apogeu do barroco segue-se um período muito complexo, de influências variadas e correntes mais ou menos assumidas. A cultura arquitectónica torna-se ecléctica no sentido em que existe uma versatilidade de escolhas e de opções, uma procura das tradições, quer elas sejam académicas e clássicas, quer sejam barrocas, originando, ao mesmo tempo, um Barroco tardio de feição clássica, o Rococó ou mesmo os sistemas inovadores que terminarão no Neoclassicismo mais próximo de meados de setecentos. Homens contemporâneos vão ensaiando experiências diversas: Carlo Fontana (1638-1714) ligado ao classicismo académico, Juvara (1678-1736) também assumindo a mesma tendência, mas de uma forma menos ortodoxa ou Vittone, adepto do Rococó, são alguns exemplos.

Voltando a Portugal, em Coimbra também a reforma pombalina da Universidade de Coimbra deixou na cidade a marca do recém-introduzido neo-classicismo, desta feita de feição pombalina. Dois edifícios emblemáticos são o Laboratório Chimico e o Museu de História Natural (1779). Os projectos ficaram a cargo de Guilherme Elden, militar inglês ao serviço do exército português. O Museu apresenta uma fachada em três corpos, com o corpo central encimado por frontão triangular e entrada por arcaria tripla. Embora o neoclássico já se mostrasse de forma tímida e isolada, em alguns pormenores da obra de Carlos Mardel ou na Capela de São Roque, ainda no reinado de João V, apenas na segunda metade do século se torna uma opção. Em Lisboa, um dos principais nomes ligados ao neoclássico é o já referido José Costa Silva (nascido em 1747), autor da ópera de São Carlos (1793), do projecto do Erário Régio e colaborador no plano para o Palácio da Ajuda. Outra referência incontornável é Fabri, que também trabalhou no citado Palácio da Ajuda (1802), e realizou o Hospital da Marinha de Santa Clara e, fora de Lisboa, a Igreja matriz de Tavira. Na esfera da corte, o neoclassicismo assume-se na obra de maior vulto nesse final de século, o Palácio da Ajuda, cuja construção, iniciada em 1797 nunca terminou de facto, ficando o construído muito aquém do projecto original, tendo a edificação atravessado um processo muito complexo, com avanços e recuos sucessivos». In Cátia Gonçalves Marques, Departamento de Arquitectura da FCTUC, Junho de 2004.

Cortesia de FCTUC/JDACT

JDACT, Cátia Marques, Urbanismo, Conhecimentos, Manique do Intendente,

Manique do Intendente. Uma Vila Iluminista. Cátia Marques. «Fez-se o monumental aqueduto das Águas Livres, que correspondia a um planeamento do abastecimento de águas para a capital, prevendo já o seu crescimento para o lado Ocidental. Aqui trabalhou Carlos Mardel, que riscou alguns motivos mais decorativos e a Mãe de Água das Amoreiras»

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Arquitectura e Urbanismo: o contexto Português

«(…) A corte do tempo de dom João V foi muito permeável às influências estrangeiras, particularmente do centro da Europa. O rei interessava-se pelas artes e com ele a grande nobreza. Na segunda metade do século XVIII, os palácios eram feitos à semelhança dos seus famosos congéneres europeus, como Versalhes e Marly, não sem um certo apego à tradição. A pouco e pouco a antiga sobriedade vai cedendo lugar a fachadas ondulantes e a pormenores mais fantasiosos. Contudo, no Sul essas influências são relutantemente postas em prática e nunca atingem a força do Norte. Nos interiores, o luxo é lei, com grandes superfícies cobertas de azulejos, de talha e de pintura. Foi uma época em que se assistiu a um maior ritmo de construção, devido às boas condições económicas do País, dos seus nobres e da rica classe emergente de burgueses. Estes palácios e casas de campo têm agora um sabor barroco, variando regionalmente, como acima descrito. São quase sempre de planta rectangular ou em L, e a presença do pátio é fundamental como espaço de articulação. O andar nobre abre frequentemente para um cuidado jardim. A decoração é mais rica, com frontões triangulares, pirâmides, pináculos e florões, embelezando o topo do edifício. Mais tarde surgem candelabros e fogaréus. A capela é parte fundamental destas edificações. Inicialmente a sua presença não é muito marcada, mas progressivamente torna-se um elemento de animação das fachadas, com um cuidadoso tratamento do desenho, com frontões e campanários fazendo destacar a sua presença.

Em relação ao urbanismo é de salientar a intervenção do bispo dom Tomás Almeida no Porto. Preocupou-se com o crescimento da cidade, para a qual concebeu planos grandiosos. Um desses planos previa a construção de uma espécie de Plaza Mayor. O bispo recuperou em 1709 uma ideia de 1691, transformando-a numa praça monumental, quadrangular, com 120 m (cerca de 545 palmos) de lado, rodeada de arcadas, à qual se acederia por quatro arcos. Cada lote tinha 34 palmos de largura e a galeria coberta, 20 palmos. Deveriam instalar-se aqui as famílias nobres da cidade. Para a capital do país executaram-se alguns projectos: fizeram-se algumas transformações importantes no Paço da Ribeira, incluindo a transformação da capela real em patriarcal, construiu-se o conjunto barroco das Necessidades (Palácio, Igreja e Convento), a partir de 1742 elaborou-se um plano para a reforma ribeirinha da margem do Tejo, riscado por Carlos Mardel. Fez-se o monumental aqueduto das Águas Livres, que correspondia a um planeamento do abastecimento de águas para a capital, prevendo já o seu crescimento para o lado Ocidental. Aqui trabalhou Carlos Mardel, que riscou alguns motivos mais decorativos e a Mãe de Água das Amoreiras. De referir também o projecto gorado para um novo Palácio Real e Basílica Patriarcal, que dom João quis construir na área ocidental da cidade.

Para riscar a obra, apelou a um dos mais famosos arquitectos italianos, Juvara. Este chega a Portugal em 1717/19. Na esfera da corte, mas fora de Lisboa, foi construída, entre 1717 e 1750, a obra mais emblemática do reinado: Mafra. O que começou por ser um pequeno convento tornou-se numa gigantesca obra, em estaleiro durante décadas. O edifício englobava Palácio Real, um grande convento e uma Igreja. Neste projecto trabalharam Ludovice, Custódio Vieira, Manuel Maia e Canevari. No Norte as influências italianas não deixam marca e a época é marcada por um barroco fantasioso cuja figura principal é o arquitecto Nicolau Nasoni, autor da Torre dos Clérigos, no Porto (1732 a 1748) e do Palácio do Freixo (1749). De referir também os portugueses André Soares e Carlos Amarante. Ainda relativamente ao urbanismo e à arquitectura do reinado de João V, um conjunto é de salientar. Trata-se de Santo Antão do Tojal, mandado construir pelo patriarca dom Tomás Almeida. Em Santo Antão do Tojal existia já um palácio mandado construir pelo bispo dom Fernando Vasconcelos Meneses, que havia reedificado a igreja e realizado também os jardins. Tomás Almeida decide prover a que o soberano tenha melhores cómodos no seu caminho para Mafra e manda reconstruir o palácio e a igreja, acrescentando uma praça. intentava alcançar por faculdade régia… o prencipal intento que o dito prelado teve nesta fundação foi o querer fazer neste sítio cazas para Camera, e tudo o mais que he prezisso para a fundaçao de huma villa… Canevari foi o arquitecto escolhido e, quando abandonou o país em 1732, Rodrigo Franco continuou-as (foi ele o autor da Igreja do Senhor da Pedra em Óbidos)». In Cátia Gonçalves Marques, Departamento de Arquitectura da FCTUC, Junho de 2004.

Cortesia de FCTUC/JDACT

JDACT, Cátia Marques, Urbanismo, Conhecimentos, Manique do Intendente, 

Manique do Intendente. Uma Vila Iluminista. Cátia Marques. «Quanto a Portugal, o país afastou-se irreversivelmente das influências espanholas, sobretudo a partir da Restauração, e exibe uma crescente vontade de ser parte integrante da Europa, fugindo do isolamento forçado da época filipina»

La Carolina

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Urbanismo: o Contexto Europeu

«(…) Horta Correia define do seguinte modo o urbanismo barroco:

Não há um único urbanismo barroco, mas várias formas, por vezes convergentes, de desenho urbano na época barroca que tão-só por necessidade de sistematização e síntese, convencionaremos associarem-se em duas grandes famílias de cidades: As que alguma coisa devem ao barroco romano, tal como se concretizou urbanisticamente entre o plano ordenador de Sisto V e a conclusão da Roma berniniana e onde avultam o efeito de surpresa, um novo uso da perspectiva, a transferência para o urbanismo de valores até então especificamente arquitectónicos e uma vivencialidade teatralizada do efémero, da festa e da própria arquitectura. As que alguma coisa devem, por genealogia das formas, às cidades ideais do Renascimento em qualquer das suas vertentes radioconcêntricas ou ortogonais, despidas agora de conteúdo ideológico mas mantidos os seus princípios no planeamento de cidades cortesãs, ou os seus modelos nas cidades fortalezas da Europa ou nas cidades de expansão urbana do Novo Mundo.

É neste último grupo que o autor encaixa o urbanismo barroco de tradição portuguesa.

Os exemplos, vagamente enumerados nos parágrafos anteriores têm, morfologicamente falando, raízes várias, mas podem agrupar-se nas duas categorias fundamentais que propõe Horta Correia. A primeira pode encontrar-se naqueles traçados que privilegiam os eixos e as referências visuais. Traçados diversificados, baseados em figuras geométricas, em cruzamentos de eixos e perspectivas, que tiveram nos jardins um campo de aplicação muito fértil. Experiência precoce deste tipo de urbanismo, que se irá desenvolver sobretudo nos séculos XVII e XVIII, com a França na primeira linha, são as reformas ocorridas em Roma durante o pontificado de Sisto V (1585-1590), com especial relevo para o tridente da Piazza del Popolo. Este urbanismo barroco, de carácter cenográfico e que submete a arquitectura ao traçado urbano, está profundamente ligado aos monarcas absolutos, sendo os seus produtos mais acabados as residências reais (Richelieu e, mais tarde, Versalhes) e as praças abertas para albergar estátuas equestres, homenageando o rei (Praça Vendôme). Contudo, a pouco e pouco, e sob influência das Luzes, outros programas, civis, vão sendo também executados. A segunda consiste na longa tradição, nascida no período renascentista, da cidade ideal, inspirada em modelos vitruvianos. A partir do século XVI, e no campo do urbanismo, muitas experiências foram beber às influências clássicas, reciclando os ensinamentos de Vitruvio. Vários teóricos, sobretudo ligados à arquitectura militar (Giorgio Martini, Cattaneo, Scamozzi…), aplicaram as suas premissas de firmitas, utilitas e venustas numa busca pela cidade ideal, em propostas ligadas a aspectos defensivos. Numa Europa com o tecido urbano consolidado, as oportunidades para pôr em prática estas ideias escasseiam. Palmanuova, datada de 1593, foi um dos poucos exemplos realmente construídos. É centrada numa praça hexagonal e limitada por um sistema abaluartado. Uma componente importante dos vários projectos teóricos desenvolvidos em torno da cidade ideal é a presença de uma multitude de praças, que contribuiriam para o desafogo e para o embelezamento das povoações, ao mesmo tempo que se especializariam em funções da vida pública. Chueca Goitia filia na teoria renascentista da cidade ideal, nomeadamente de Scamozzi, as cidades de Grammichele e Avola (erguidas após o terramoto de 1693 na Sicília).

Arquitectura e Urbanismo: o contexto Português

Quanto a Portugal, o país afastou-se irreversivelmente das influências espanholas, sobretudo a partir da Restauração, e exibe uma crescente vontade de ser parte integrante da Europa, fugindo do isolamento forçado da época filipina. O interesse pelas línguas e literaturas francesa, inglesa e italiana dilata-se a partir do final da centúria de Seiscentos. A acompanhar tal tendência o barroco (tardiamente surgido) vai sendo substituído por obras de inspiração neoclássica de influência francesa ou italiana. Aliás, muita da produção artística, e sobretudo arquitectónica, do período joanino é fruto da produção de artistas estrangeiros, atraídos ao nosso país pela oportunidade de servir um monarca e um regime sedentos de fausto e com uma situação económica bastante confortável. A crise da Restauração havia recuado e Portugal estava disposto a recuperar o tempo perdido. Este interesse por acompanhar as tendências exteriores levou também à encomenda de numerosos elementos gráficos, como gravuras, desenhos, maquetes. Os novos gostos de feição neoclássica foram impulsionados por diversos factores: os alunos enviados a Roma, (que faziam os seus estudos na Academia Portuguesa das Artes, instalada no Palácio Cimarra) e que lá acompanharam a mesma tendência, e as várias instituições que prestavam serviços na área do ensino artístico, como a Casa do Risco (com o seu papel preponderante na reconstrução de Lisboa), o Colégio Real dos Nobres, a Real Fábrica das Sedas, a Imprensa Régia e a Casa Pia». In Cátia Gonçalves Marques, Departamento de Arquitectura da FCTUC, Junho de 2004.

Cortesia de FCTUC/JDACT

JDACT, Cátia Marques, Urbanismo, Conhecimentos, Manique do Intendente, 

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Diário do conde de Sarzedas. Vice-rei do Estado da Índia (1655 -1656). Artur T. Matos. «Onde a situação se tornava mais crítica era na relação a o socorro a Ceilão. Para este socorro não há vintém nem real, nem donde possa vir; acuda Deus com sua Misericórdia…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Não há nenhuma [fortaleza] que dê boas-novas)), anotava em 15 de Novembro; e acrescentava na semana seguinte: Todos representam misérias e faltas, pedindo socorros. Faltava arroz, pólvora, soldados, cavalaria e fortificações. Todavia, como várias vezes também observou, não havia um real para nada. Há dois anos que não chegava canela de Ceilão, em razão da guerra que aí grassava, e porque os capitães a vendiam para pagarem aos soldados. A armada dos periches que deveria sair de Goa em começos de Outubro, para acompanhar a cáfila regressada de Cambaia com roupas, necessitava de 10000 xerafins (3. 000$000 réis). A inexistência de financiamento levou o governador a tentar convencer os guzerates, importadores destes tecidos, a adiantar a quantia . Mas só lhe conseguiu virar 6 .000 xerafins. Apesar dos esforços, não consegue ver assinada a paz com o Idalxá. Duvida mesmo que tal venha acontecer, tais as manobras dilatórias do embaixador. Tudo são mentiras e falsidades, comentava! E, comparando o comportamento deste mouro com o dos que privara em Tânger, concluía: Não tem fé nem constância em nada […] mas como isto é longe parece que também enxerga na mudança do modo e natureza.

Onde a situação se tornava mais crítica era na relação a o socorro a Ceilão. Para este socorro não há vintém nem real, nem donde possa vir; acuda Deus com sua Misericórdia, que só ela o pode fazer, anotava o vice-rei em meados de Novembro. Talvez por isso escreveria a todas as ordens religiosas encomendando o bom sucesso de Ceilão e que se expusesse o Santíssimo diariamente. Sobre o mesmo motivo e depois de ouvir o Conselho de Estado convocou as forças representativas do Estado para uma reunião na sala real: Câmara, tribunais, provinciais das ordens religiosas, procuradores das cidades do Norte e do Sul. A todos deu conta da difícil situação militar de Ceilão e das dificuldades em acudir-lhe . Depois chamou ao palácio várias pessoas a quem solicita empréstimo de dinheiro para o socorro . Mas todos se escusam com misérias e trabalhos. Situação semelhante ocorreria em relação ao arroz, cuja carência era gritante, devido à situação de guerra com o Canará, fonte tradicional de abastecimento deste cereal.

Pede pareceres ao Senado, Inquisição (maldita), Relação e provinciais das ordens religiosas sobre a legalidade do lançamento de um tributo para fazer face à difícil situação do Estado . Havia que adquirir meios, já que era difícil, senão impossível, conseguir qualquer empréstimo. À falta de recursos financeiros, certamente motivada pelas diminuição do comércio regional, das rendas do Estado e pelo acréscimo das despesas militares, juntava-se alguma desorganização dos assuntos da Fazenda Real. Desmazelo nos oficiais dos Contos e queixas contra os seus procedimentos, negligência na arrecadação das dívidas reais, arrematação das rendas por preços inferiores ao habitual, tais eram os males diagnosticados pelo vice-rei em relação à Fazenda que achava mui desencaminhada.

Também a morosidade da justiça mereceria a sua crítica. Em 3 de Setembro, após o termo das férias, deslocou-se à Relação afim de despachar petições de presos e de agravos. E, perante o volume de processos nas mãos dos desembargadores, recomendou-lhe celeridade e despacho às solicitações. Mas no mês seguinte voltaria a denunciar o descuido que ali reinava, perante a delonga de seis anos num julgamento». In Artur Teodoro Matos, Diário do conde de Sarzedas, Vice-rei do Estado da Índia (1655 -1656), Lisboa, colecção Outras Margens, CNCDPortugueses, 2001, ISBN 972-787-052-X.

Cortesia de CNCDP/JDACT

 JDACT, MLCT, JLT, Índia, Cultura e Conhecimento, 

Moça com Brinco de Pérola. Tracy Chevalier. «Você terá de ir ao Mercado de Carne e às barracas de peixe também. É outra das suas tarefas. Dito o quê, ela me deixou com a roupa para lavar. Contando comigo, havia dez pessoas na casa…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Mas, outra vez, foram os quadros que me espantaram. Havia mais quadros naquele quarto que emqualquer outro lugar. Contei, em silêncio, dezanove. A maioria, retratos, parecia ser de membros das duas famílias. Tinha também um quadro da Virgem Maria e outro dos reis magos adorando o Menino Jesus. Olhei os dois, meio sem jeito. Agora, vamos subir. Tanneke tomou a frente na escada íngreme e colocou um dedo sobre os lábios fechados, pedindo silêncio. Subi fazendo o mínimo barulho possível e quando cheguei no alto olhei em volta e vi uma porta fechada. Atrás dela, um silêncio que eu sabia ser dele. Fiquei com os olhos pregados na porta, sem ousar me mexer, caso se abrisse e ele saísse. Tanneke
inclinou-se e sussurrou: Você vai limpar lá dentro, a jovem patroa explica depois. E esses quartos, apontou para as portas nos fundos da casa,são da minha patroa. Só eu entro lá para arrumar.

Descemos em silêncio outra vez. Quando estávamos na lavandaria, Tanneke disse: Você vai lavar toda a roupa da casa, e apontou um monte de roupas muito mal lavadas. Eu ia trabalhar bastante para colocar o serviço em dia. A cozinha tem uma cisterna, mas é melhor você pegar água no canal, que é bem limpa nesta parte da cidade. Tanneke, você fazia tudo isso sozinha? Cozinhar, limpar e lavar para a casa toda?, perguntei, baixinho. Escolhi as palavras certas. Tudo, além de algumas compras Tanneke estava orgulhosa da própria competência. Claro que a jovem patroa faz a maior parte das compras, a não ser carne e peixe quando está carregando um filho. O que acontece com frequência, acrescentou ela, num sussurro. Você terá de ir ao Mercado de Carne e às barracas de peixe também. É outra das suas tarefas. Dito o quê, ela me deixou com a roupa para lavar.Contando comigo, havia dez pessoas na casa, uma delas um bebê que deveria sujar mais roupas que todos os demais. Eu teria de lavar roupa todos os dias, minhas mãos ficariam rachadas e ásperas com o sabão e a água; meu rosto, vermelho por causa do vapor das roupas na fervura, minhas costas doídas de carregar roupa molhada, e meus braços queimados pelo ferro. Mas eu era jovem e nova na casa, esperava-se que fizesse o trabalho mais árduo.esperava-se que fizesse o trabalho mais árduo.esperava-se que fizesse o trabalho mais árduo.e meus braços queimados pelo ferro. Mas eu era jovem e nova na casa, esperava-se que fizesse o trabalho mais árduo.esperava-se que fizesse o trabalho mais árduo.esperava-se que fizesse o trabalho mais árduo.e meus braços queimados pelo ferro. Mas eu era jovem e nova na casa, esperava-se que fizesse o trabalho mais árduo.esperava-se que fizesse o trabalho mais árduo.esperava-se que fizesse o trabalho mais árduo.

As roupas precisavam ficar de molho um dia antes de serem lavadas. Na mesma despensa que levava ao porão, encontrei dois baldes de estanho e uma chaleira de cobre. Peguei os baldes e percorri o longo corredor até à porta da frente. As meninas estavam sentadas no banco. Lisbeth soprava as bolhas de sabão enquanto Maertge dava pão amolecido no leite para o bebé Johannes. Cornélia e Aley discorriam atrás das bolhas. Quando apareci, elas ficaram paradas me olhando, à espera. Você é a nova criada, declarou a menina ruiva. Sim, Cornélia. Cornélia pegou um seixo e jogou do outro lado da rua, no canal. Estava com o braço todo arranhado, deveria ter perseguido o gato da casa. Onde vai dormir?, perguntou Maertge, enxugando os dedos redondinhos no avental. No porão. Nós gostamos do porão, disse Cornélia. Vamos brincar lá agora! Ela entrou, mas não foi longe.Como ninguém a acompanhou, voltou e ficou emburrada.

Aley dis, chamei, estendendo a mão para a caçula. Pode-me mostrar como pegar a água do canal? Ela segurou minha mão e me olhou. Seus olhos eram como duas moedas cinzentas e brilhantes. Atravessamos a rua, com Cornélia e Lisbeth atrás. Aley dis me levou até uma escada que descia para o canal. Descemos e apertei a mão dela, como fiz anos antes com Frans e Agnes sempre que ficávamos perto de água. Não pise na água, avisei Aley dis, que, obediente, deu um passo atrás. Mas Cornélia estava bem nas minhas costas quando carreguei os baldes na escada. Cornélia, ajuda-me a carregar a água? Senão, fique com suas irmãs. Ela me olhou e fez o pior: se tivesse ficado brava ou gritado, eu saberia como controlá-la. Mas caçoou». In Tracy Chevalier, Moça com Brinco de Pérola, 1999, Bertrand Brasil, 2002, ISBN 978-852-860-957-8.

 

Cortesia de BertrandB/JDACT

 

Johannes Vermeer, Século XVII, JDACT, Pintura, Literatura,

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Memorial do Convento. José Saramago. «Bartolomeu Lourenço foi à quinta de S. Sebastião da Pedreira, três anos inteiros haviam passado desde que partira, estava a abegoaria em abandono, dispersos pelo chão os materiais que não valera a pena arrumar…»

jdact

«(…) Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu. Regressou o padre Bartolomeu Lourenço da Holanda, se sim ou não trouxe o segredo alquímico do éter, mais tarde o saberemos, ou não tem esse segredo que ver com alquimias de tempos passados, porventura uma simples palavra bastará para encher as esferas da máquina voadora, pelo menos Deus não fez mais que falar e tudo com esse pouco se criou, assim ensinaram ao padre no seminário de Belém da Baía, assim lho confirmaram, por outras argumentações e estudos mais avançados, na Faculdade de Cânones de Coimbra, antes de fazer subir ao ar os seus balões primeiros, e, agora que chegou de terras holandesas, vai tornar a Coimbra, um homem pode ser grande voador, mas é-lhe muito conveniente que saia bacharel, licenciado e doutor, e então, ainda que não voe, o consideram.

Bartolomeu Lourenço foi à quinta de S. Sebastião da Pedreira, três anos inteiros haviam passado desde que partira, estava a abegoaria em abandono, dispersos pelo chão os materiais que não valera a pena arrumar, ninguém adivinharia o que ali se andara perpetrando. Dentro do casarão esvoaçavam pardais, tinham entrado por um buraco do telhado, duas telhas partidas, ínfimas aves aquelas que nunca voariam mais alto que o mais alto freixo da quinta, o pardal é uma ave da terra e do terriço, do estrume e da seara, e quando morto se percebe que não poderia voar alto, tão frágil de asas, tão mesquinho de ossos, ao passo que esta minha passarola voará até onde cheguem olhos, veja-se o fortíssimo arcaboiço da concha que me há-de levar, com o tempo enferrujaram os ferros, mau sinal, não parece que Baltasar aqui tenha vindo como lhe recomendei tanto, mas é verdade que veio, por estes sinais de pés descalços, não trouxe Blimunda, ou Blimunda morreu, e dormiu na enxerga, está puxada a manta para trás como se agora mesmo se tivesse acabado de levantar, nesta mesma enxerga me deito, com esta manta me cubro eu padre Bartolomeu Lourenço que voltei da Holanda aonde fui averiguar se já na Europa sabem voar com asas, se nos estudos desta ciência vão mais adiantados do que eu estou no meu país de marinheiros, e em Zwolle, Ede e Nijkerk estudei com alguns sábios velhos e alquimistas, desses que sabem fazer nascer sóis dentro de retortas, mas depois morrem de morte estranha, vão ressequindo até não terem mais substância do que um feixe de palha estaladiça, e então como palha ardem, que isso é o que todos pedem à hora da morte, não mais que cinzas deixo, é por si próprios que se inflamam, e a mim me estava esperando aqui esta máquina voadora que ainda não voa, estas são as esferas que terei de encher com o éter celeste, cuidam as pessoas que sabem do que falam, olham para o céu e dizem, Éter celeste, eu sim sei o que ele é, afinal tão simples como ter Deus dito, Faça-se a luz, e a luz fez-se, é maneira de falar, que entretanto se fez noite, acendo esta candeia que Blimunda deixou, apago este pequenino sol que de mim depende atear ou extinguir à candeia me reporto, não a Blimunda, nenhum ser humano pode ter quanto deseja nesta sua única vida terrestre, talvez sonhando, boas noites.

Passadas algumas semanas, com todas as disposições, licenças e matriculações necessárias, partiu o padre Bartolomeu Lourenço para Coimbra, cidade tão ilustre, de tão velhos sábios, que, se nela houvesse alquimistas, em coisa alguma ficaria a dever a Zwolle, e vai o Voador por agora cavalgando uma remansosa mula alquilada, como convém a sacerdote sem extremadas artes de ginete e apenas provido de bens medianos, chegando ao seu destino voltará a montada com outro cavaleiro, talvez um doutor acabado, ainda que a esta dignidade melhor coubesse a liteira de longo curso, é como ir balouçando sobre as ondas do mar, se não fosse o macho da dianteira tão incontinente de ventos. Até à vila de Mafra, aonde primeiro vai, não tem a viagem história, salvo a das pessoas que por estes lugares moram, claro está que não podemos deter-nos no caminho e perguntar, Quem és, o que fazes, onde te dói, e se o padre Bartolomeu Lourenço algumas vezes parou, foi parar e andar, não mais que o tempo de uma bênção que lhe pediam, à quantos destes irá suceder entortar-se-lhes a história que tinham para entrarem nesta que vamos contando, o simples encontro do padre é um sinal, porque, indo ele a Coimbra, não seria este o caminho se não tivesse de ir à vila de Mafra por lá estarem Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas. Não é verdade que o dia de amanhã só a Deus pertença, que tenham os homens de esperar cada dia para saber o que ele lhes traz, que só a morte seja certa, mas não o dia dela, são ditos de quem não é capaz de entender os sinais que nos vêm do futuro, como este de aparecer um padre no caminho de Lisboa, abençoar porque a bênção lhe pediram, e seguir na direcção de Mafra, quer isto dizer que o abençoado há-de ir a Mafra também, trabalhará nas obras do convento real e ali morrerá por cair de parede, ou da peste que o tomou, ou da facada que lhe deram, ou esmagado pela estátua de S. Bruno». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT

Leituras, JDACT, José Saramago, O Saber, A Arte, Nobel da Literatura, 

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

José Saramago. Memorial do Convento. «Dona Maria Ana ficou em Lisboa a rezar e depois foi continuar a reza para Belém. Dizem que vai agastada por não querer João V confiar-lhe o governo do reino…»

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«(…) D. Maria Ana terá agora outros e mais urgentes motivos para rezar. El-rei anda muito achacado, sofre de flatos súbitos, debilidade que já sabemos antiga, mas agora agravada, duram-lhe os desmaios mais do que um vulgar fanico, aí está uma excelente lição de humildade ver tão grande rei sem dar acordo de si, de que lhe serve ser senhor de Índia, África e Brasil, não somos nada neste mundo, e quanto temos cá fica Por costume e cautela acodem-lhe logo com a extrema unção, não pode sua majestade morrer inconfessa como qualquer comum soldado em campo de batalha, lá aonde os capelães não chegam nem querem chegar, mas às vezes ocorrem dificuldades, como estar em Setúbal a ver de janela os touros, e sobrevir-lhe sem aviso o desmaio profundo, acode o médico que lhe toma o pulso e procura o sangradouro, vem o confessor com os óleos, mas ninguém sabe que pecados terá cometido o rei João V desde a última vez que se confessou, e já foi ontem, quantos maus pensamentos e acções más se podem ter e cometer em vinte e quatro horas, além da impropriedade da situação de estarem a morrer touros na praça enquanto el-rei, de olho revirado para cima não se sabe se morre ou não, e se morrer não será de ferida, como as que vão rasgando os bichos em baixo, ainda assim de vez em quando se vingando do inimigo, como agora mesmo aconteceu a Henrique Almeida que foi pelos ares com o cavalo e já o levam com duas costelas quebradas. Enfim, el-rei abriu os olhos, escapou, não foi desta, mas fica com as pernas frouxas, as mãos trémulas, o rosto pálido, nem parece aquele galante homem que derruba freiras com um gesto, e quem diz freiras diz as que o não são, ainda o ano passado teve uma francesa um filho da sua lavra, se agora o vissem as amantes reclusas e libertas não reconheceriam neste murcho e apagado homenzinho o real e infatigável cobridor. Vai João V para Azeitão, a ver se com mezinhas e bons ares se cura desta melancolia, que assim chamam os médicos à sua doença, provavelmente o que sua majestade tem é os humores avariados, de que costumam resultar embaraços da tripa, flatulências, entupimentos da bílis, tudo achaques segundos da atrabile, que essa, sim, é a doença de el-rei, vá lá que não sofre das partes pudendas, apesar dos excessos amatórios e alguns riscos de gálico, caso em que lhe aplicariam sumo de consólida, remédio soberano para chagas da boca e das gengivas, dos testículos e adjacências superiores.

Dona Maria Ana ficou em Lisboa a rezar e depois foi continuar a reza para Belém. Dizem que vai agastada por não querer João V confiar-lhe o governo do reino, realmente não está bem desconfiar assim um marido de sua mulher, são resistências de ocasião, lá mais para diante será regente a rainha enquanto el-rei se acaba de curar naqueles felizes campos de Azeitão, tendo a assisti-lo os franciscanos da Arrábida, e o marulhar das ondas é o mesmo, a mesma a cor do mar, a maresia o mesmo sortilégio, e o mato cheira como dantes, assim fica o infante Francisco sozinho em Lisboa, fazendo corte, e já começa a urdir a trama e a teia, deitando contas à morte do irmão e à sua própria vida, Se desta melancolia, que tão gravemente atormenta sua majestade, não houver remédio, e quiser Deus que tão cedo lhe acabe a vida terrenal para mais cedo principiar a eterna, eu poderia, como irmão que vem a seguir, portanto de família chegada, cunhado de vossa majestade e mui dedicado servidor de vossa beleza e virtude, eu poderia, ouso dizer, subir ao trono e, de caminho, ao vosso leito, casando nós em boa e canónica forma, que por méritos de homem posso garantir que não sou menos que meu irmão, ora essa, Ora essa, que conversa tão imprópria de cunhados, el-rei ainda está vivo e, pelo poder das minhas preces, se Deus mas ouve, não morrerá, para maior glória do reino, tanto mais que para a conta dos seis filhos que está escrito terei dele, ainda faltam três, Porém, vossa majestade sonha comigo quase todas as noites, que eu bem no sei, É verdade que sonho, são fraquezas de mulher guardadas no meu coração e que nem ao confessor confesso, mas, pelos vistos, vêm ao rosto os sonhos, se assim mos adivinham, Então, morrendo meu irmão, casamos, Se esse for o interesse do reino, e se daí não vier ofensa a Deus nem dano à minha honra, casaremos, Prouvera que ele morra, que eu quero ser rei e dormir com vossa majestade, já estou farto de ser infante, Farta estou eu de ser rainha e não posso ser outra coisa, assim como assim, vou rezando para que se salve o meu marido, não vá ser pior outro que venha, Acha então vossa majestade que eu seria pior marido que meu irmão, Maus, são todos os homens, a diferença só está na maneira de o serem, e com esta sábia e céptica sentença se concluiu a conversação em palácio, primeira das muitas com que dom Francisco fatigará a rainha, em Belém onde ela agora está, em Belas para onde irá com demora, em Lisboa quando enfim for regente, em câmaras e em quintas discorrendo, a ponto de já não serem os sonhos de dona Maria Ana o que antes eram, tão deliciosos em geral, tão arrebatadores do espírito, tão pungidores do corpo, agora o infante só lhe aparece para dizer que quer ser rei, bom proveito lhe fizesse, para isto nem vale a pena sonhar, digo-o eu que sou rainha. Adoeceu tão gravemente el-rei, morreu o sonho de dona Maria Ana, depois el-rei sarará, mas os sonhos da rainha não ressuscitarão». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT

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José Saramago. Memorial do Convento. «… mas aonde ela não se atreve a ir sabemos nós, é ao convento de Odivelas, todos adivinham porquê, é uma triste e enganada rainha que só de rezar não se desengana, todos os dias e todas as horas deles…»

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«(…) Vêm para aí os frades forn… as mulheres, como é costume deles, e então franciscanos, se um dia apanho algum com partes de atrevido, leva uma surra que fica com os ossos todos partidos, e o pedreiro desfazia a marteladas a pedra onde Inês Antónia estivera sentada. O sol já se pôs, Mafra, em baixo, é escura como um poço. Baltasar começa a descer, olha os marcos de pedra que delimitam os terrenos daquele lado, pedra branquíssima sobre que ainda mal caíram os primeiros frios, pedra que pouco sabe de grandes calores, pedra ainda espantada da luz do dia. Estas pedras são o primeiro alicerce do convento, alguém por ordem de el-rei mandou que as talhassem, pedras portuguesas afeiçoadas por portuguesas mãos, que ainda tempo não é de virem os Garvos milaneses a governar os alvenéis e canteiros que aqui se juntarão. Quando Baltasar entra em casa, ouve o murmúrio que vem da cozinha, é a voz da mãe, a voz de Blimunda, ora uma, ora outra, mal se conhecem e têm tanto para dizer, é a grande, interminável conversa das mulheres, parece coisa nenhuma, isto pensam os homens, nem eles imaginam que esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com as outras. Já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta, Deite-me a sua bênção, minha mãe, Deus te abençoe, meu filho, não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos. Há muitos modos de juntar um homem e uma mulher, mas, não sendo isto inventário nem vademeco de casamentar, fiquem registados apenas dois deles, e o primeiro é estarem ele e ela perto um do outro, nem te sei nem te conheço, num auto-de-fé, da banda de fora, claro está, a ver passar os penitentes, e de repente volta-se a mulher para o homem e pergunta, Que nome é o seu, não foi inspiração divina, não perguntou por sua vontade própria, foi ordem mental que lhe veio da própria mãe, a que ia na procissão, a que tinha visões e revelações, e se, como diz o Santo Ofício (maldito), as fingia, não fingiu estas, não, que bem viu e se lhe revelou ser este soldado maneta o homem que haveria de ser de sua filha, é desta maneira os juntou. Outro modo é estarem ele e ela longe um do outro, nem te sei nem te conheço, cada qual em sua corte, ele Lisboa, ela Viena, ele dezanove anos, ela vinte e cinco, e casaram-nos por procuração uns tantos embaixadores, viram-se primeiro os noivos em retratos favorecidos, ele boa figura e pele escurita, ela roliça e brancaustríaca, e tanto lhes fazia gostarem-se como não, nasceram para casar assim e não doutra maneira, mas ele vai desforrar-se bem, não ela, coitada, que é honesta mulher, incapaz de levantar os olhos para outro homem, o que acontece nos sonhos não conta. Na guerra de João perdeu a mão Baltasar, na guerra da Inquisição (maldita) perdeu Blimunda a mãe, nem João ganhou, que feitas as pazes ficámos como dantes, nem ganhou a Inquisição (maldita), que por cada feiticeira morta nascem dez, sem contar os machos, que também não são poucos. Cada qual tem sua contabilidade, sua razão e seu diário, escrituraram-se os mortos num lado da página, apuram-se os vivos do outro lado, também há modos diferentes de pagar e cobrar o imposto, com o dinheiro do sangue e o sangue do dinheiro, mas há quem prefira a oração, é o caso da rainha, devota parideira que veio ao mundo só para isso, ao todo dará seis filhos, mas de preces contam-se por milhões, agora vai à casa do noviciado da Companhia de Jesus, agora à igreja paroquial de S. Paulo, agora faz a novena de S. Francisco Xavier, agora visita a imagem de Nossa Senhora das Necessidades, agora vai ao convento de S. Bento dos Loios, e vai à igreja paroquial da Encarnação, e vai ao convento da Conceição de Marvila, e vai ao convento de S. Bento da Saúde, e vai visitar a imagem de Nossa Senhora da Luz, e vai à igreja do Corpo Santo, e vai à igreja de Nossa Senhora da Graça, e à igreja de S. Roque, e à igreja da Santíssima Trindade, e ao real convento da Madre de Deus, e visita a imagem de Nossa Senhora da Lembrança, e vai à igreja de S. Pedro de Alcântara, e à igreja de Nossa Senhora do Loreto, e ao convento do Bom Sucesso, quando está para sair do paço às suas devoções rufa o tambor e repenica o pífaro, não ela, claro está, que ideia, uma rainha a tamborilar e a repenicar, põem-se em ala os alabardeiros, e estando as ruas sujas, como sempre estão, por mais avisos e decretos que as mandem limpar, vão à frente da rainha os mariolas com umas tábuas largas às costas, sai ela do coche e eles colocam as tábuas. no chão, é um corropio, a rainha a andar sobre as tábuas, os mariolas a levá-las de trás para diante, ela sempre no limpo, eles sempre no lixo, parece a rainha nossa senhora Nosso Senhor Jesus Cristo quando caminhou sobre as águas, e desta milagrosa maneira vai ao convento das Trinas, e ao convento das Bernardas, e ao do Santíssimo Coração, e ao de Santo Alberto, e à igreja de Nossa Senhora das Mercês, que as faça, e à igreja de Santa Catarina, e ao convento dos Paulistas, e ao da Boa Hora dos agostinhos descalços, e ao de Nossa Senhora do Monte do Carmo, e à igreja de Nossa Senhora dos Mártires, que somos todos, e ao convento de Santa Joana Princesa, e ao convento do Salvador, e ao convento das Mónicas, que foram as tais, e ao real convento do Desagravo, e ao convento das Comendadeiras, mas aonde ela não se atreve a ir sabemos nós, é ao convento de Odivelas, todos adivinham porquê, é uma triste e enganada rainha que só de rezar não se desengana, todos os dias e todas as horas deles, ora com motivo, ora sem certeza de o ter, pelo marido leviano, pelos parentes tão longe, pela terra que não é sua, e filhos só por metade, ou ainda menos, como jura o infante Pedro no céu, pelo império português, pela peste que ameaça, pela guerra que acabou, por outra se começar, pelas infantas cunhadas, pelos cunhados infantes, por dom Francisco também, e a Jesus Maria José, pelas angústias da carne, pelo prazer entrevisto, se adivinhado entre pernas, pela custosa salvação, pelo inferno que a cobiça, pelo horror de ser rainha, pelo dó de ser mulher pelas duas mágoas juntas, por esta vida que vai, por essa morte que vem». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT

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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

A Bagagem do Viajante. José Saramago. «A notícia correu o país inteiro, provocando o frémito das grandes ocasiões patrióticas: uma couve portuguesa plantada na Austrália atingiu 2,40 metros de altura (por extenso e para não haver dúvidas: dois metros e quarenta centímetros)…»

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Saudades da Caverna

«(…) Não sei que autor de anteontem dizia que o melhor instrumento de medição das altas e baixas pressões económicas era os pequenos anúncios dos jornais. Achava o dito autor, e julgo que o conseguia demonstrar, que aquilo que se vende, de particular a particular, em bens de luxo ou objectos úteis, define de um modo bastante rigoroso uma situação económica geral. Claro que por este meu jeito tacteante de avançar na matéria se está já notando que me falta saber e capacidade para discutir a tese, nem creio que tal discussão adiantasse muito neste tempo de grandes concentrações económicas e de impérios comerciais. Acho preferível passar adiante, não me caiam em cima os coriscos da informática. Fique apenas desta introdução quanto basta para se compreender melhor o sobressalto de espírito que me trouxe o tema desta crónica. Certos usos e costumes (certas vendas, certas compras) não surgem por acaso, e para o assunto que hoje me ocupa nem sequer o apelativo de moda designa seja o que for, uma vez que a moda não é mais do que a difusão promovente de um uso primeiramente limitado. E chego desta maneira ao meu tema. Que razões profundas, que mecanismos, que vozes ancestrais, se estão definindo, movendo, articulando, nesta sociedade, para que se tivesse tornado tão usual uma terminologia que evoca tempos revolutos, sobretudo, e é isto que me parece mais importante, quando aplicada a lugares de ajuntamento, de repasto, isto é, onde o gregarismo é padrão. Que saudades da caverna latejam na memória inconsciente dos grupos, para que tenha surgido este aluvião de boites e restaurantes com nomes velhos? Que psicólogo ou psicanalista me explicará a razão de tantos cacos, carunchos, toscos, caixotes, choupanas, ferraduras, cubatas, cangas, chocalhos, naus, veleiros? E dos archotes, calhambeques, lareiras, carripanas, breques, baiúcas, chafarizes, tocas, braseiros e túneis?

Esta atracção do primitivo, que até na decoração dessas casas ganha aspectos de ideia fixa, quase agressiva, se por um lado pode significar a continuidade, em plano diferente, de certa atracção de contrários que nos caracterizou como sociedade particular (o infante dom Miguel e os arrieiros, o marquês de Marialva e o fado, os capotes brancos do Bairro Alto, os fidalgos pegadores de touros), há-de certamente obedecer a razões menos visíveis e mais gerais, as mesmas, talvez, que fizeram surgir bandas desenhadas cujos heróis são homens e' mulheres da pré-história, da idade da pedra, ainda incapazes de inventar a roda mas já enleados nos problemas e nos conflitos de hoje. Andaremos nós à procura de uma nova inocência, de um recomeço? A escolha daqueles nomes será movida por um obscuro e aparentemente contraditório rancor contra as sociedades de consumo? Ou será antes um reflexo de má consciência que leva a dar às coisas, não o nome que lhes cabe mas o nome que as nega, como se essa operação de mágica linguística extraísse o veneno da serpente? Se eu tiver um palácio e lhe chamar a minha barraca, afasto com isso o raio que é atraído pelos lugares altos? Em grande conta eu me teria se fosse capaz de dar resposta a tais perguntas. Mas não será melhor deixá-las intactas? Se o leitor as considerar ociosas, facilmente as esquecerá, depois de protestar contra a perda do meu tempo e do seu tempo. Mas se murmurar: E boa! Nunca tinha pensado nisso, então ganhei bem o meu dia. O que, posso garantir, não é todos os dias que acontece.

Elogio da couve portuguesa

A notícia correu o país inteiro, provocando o frémito das grandes ocasiões patrióticas: uma couve portuguesa plantada na Austrália atingiu 2,40 metros de altura (por extenso e para não haver dúvidas: dois metros e quarenta centímetros), e continua a crescer. Sob céus e climas estranhos, rodeada de cangurus, ameaçada certamente pelas tribos primitivas do interior, ao alcance do terrível boomerang, a couve portuguesa dá uma lição de constância e de fidelidade às origens, ao mesmo tempo que mostra ao mundo as nossas raras qualidades de adaptação, o nosso universalismo, a nossa vocação de grandes viajantes. E continua a crescer». In José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1973, Editorial Futura, Editora Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.

Cortesia de EFutura/ECaminho/JDACT

Crónica, Ensaio, JDACT, José Saramago, O Saber,

A Bagagem do Viajante. José Saramago. «O vestido é todo em azuis, amarelos, vermelhos, e mostra os braços brancos e espalmados como coxas. Fixo o olhar no braço direito, que vejo melhor»

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Um Braço no Prato

(…) Logo no primeiro golpe de rede se vê quem está sentado às mesas: funcionários, comerciantes, espíritos subalternos, todos com aquele ar de parentesco nos modos, nas palavras, nos fatos, e sobretudo nas ideias, que define o pequeno burguês. Por isso mesmo, todos têm os olhos apagados, o rosto voraz e ao mesmo tempo humilde, a presença obtusa. O restaurante é ruidoso e grande. As poucas crianças distribuem-se por todas as idades, desde o colo babado e chorão até ao cataclismo infantil; as rugas, essas, começam por ser sinal de expressão e acabam na pele de papel amarrotado, bom para deitar fora. Os adolescentes são raros, ou apenas acompanham silenciosamente os adultos. Não há dúvida de que Portugal envelhece. Ao meu lado direito está um casal de meia-idade. Escolheram com a boca franzida os pratos, o marido encomendou o vinho, e ficaram à espera calados. Ele usa um alfinete de gravata que é como um ramalhete de pedras, provavelmente verdadeiras; ela não traz muito que a distinga, a não ser, talvez, o sorvo assobiado com que engolirá a sopa. Estes dois não falarão um com o outro durante todo o almoço.

À esquerda tenho duas gerações: um casal de velhos, a filha e o genro. A filha serve todos da travessa, atirando a comida como quem diz: Comam!, e guardando para si os piores bocados como quem diz: Reparem! Os velhos são gulosos, mastigam com os lábios moles e besuntados, e deitam olhares rápidos à travessa, a ver se ainda resta alguma coisa e se terão tempo de participar na segunda roda. Todos bebem cerveja. Que direi daquele homem de rosto duro, no meio da família gritadora e numerosa, que não verei falar nunca, e cujos olhos às vezes se afogam em ódio? Que poderei contar da longa mesa que se apresenta no enfiamento da minha, toda coberta de restos de côdeas e de nódoas de vinho alastrado e perdido? Que direi do que dirão aqueles que me olham a furto, se é olhar o rápido lampejo que orientam para mim, se não é apenas um movimento tão involuntário e inconsciente como o pestanejar?

Mas agora ponho os olhos num casal que entrou e que resume toda a mais gente que mastiga, deglute e transpira. São ambos altos, corpulentos, clientes certos como se depreende da familiaridade com que tratam e são tratados pelo pessoal. Vão sentar-se num canto, ele um pouco escondido pela dama que está à minha direita e que, neste momento, já comida a sopa, extrai cuidadosamente da boca, com os dedos, as espinhas do peixe-espada; mas a mulher, que faz ângulo recto com ele, fica-me ao alcance facilmente. Olhemos bem, que vale a pena. Mesmo sentada, continua a ser alta. Da corpulência ficou o seio avantajado que invade a mesa pela fronteira de um decote redondo e aberto. Tem os cabelos pintados de uma cor que ralha com os olhos e a pele, uma espécie de mogno com riscos de pau-rosa. Os lábios são finos e pintados por fora, a fingir uma boca carnuda. E durante a refeição vão ficar esborratados, com a tinta a subir capilarmente pelas rugas minúsculas que lhe sulcam a parte superior da boca. Tem as mãos cobertas de anéis aparatosos e usa brincos compridos que oscilam como barbilhos de leitão.

O vestido é todo em azuis, amarelos, vermelhos, e mostra os braços brancos e espalmados como coxas. Fixo o olhar no braço direito, que vejo melhor. É realmente uma magnífica peça de carne, de grande tamanho, que a dona exibe aos circunstantes com estremecimentos e sacudidelas que não são apenas ocasionais. Acredita provavelmente que é o seu grande trunfo afrodisíaco e atira com ele aos homens que estão em redor, atira-o para o meu prato com um grande ar de fêmea pública. Cautelosamente, empurro-o para a borda, entre os restos e o molho já frio, e chamo o empregado para pedir-lhe o café e que me leve dali tudo. E se nesse momento tivesse entrado no restaurante uma adolescente de mini-saia, esbelta e luzidia, mostrando a pele polida e jovem, as burguesas juntariam as cabeças oleosas, odiosas, e acusá-la-iam de obscenidade. Mas obsceno era aquele braço enorme que o criado levava no meu prato, e que ia ser despejado na lata do lixo». In José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1973, Editorial Futura, Editora Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.

Cortesia de EFutura/ECaminho/JDACT

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terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O Legado dos Templários. Steve Berry. «Um desperdício, mas o processo de aprendizagem era assim mesmo. Os mais inteligentes sobreviviam e todos os outros eram eliminados. Fitou um dos homens que permanecera no leilão…»

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Abbaye des Fontaines. Pirinéus Franceses.

Roskilde

«(…) Raymond de Roquefort deixou-se ficar do lado de fora da catedral, para lá do círculo de curiosos, e observou o desenrolar de todo aquele drama. Ele e os seus dois comparsas haviam procurado refúgio nas sombras das enormes árvores que cresciam na praça da catedral. Conseguira sair por uma porta lateral no exacto instante em que a polícia entrara de rompante pela porta da frente. Ninguém o vira. Por enquanto, a policia centraria as suas atenções em Stephanie Nelle e em Cotton Malone. Levaria ainda algum tempo até que as testemunhas começassem a descrever outros participantes armados. Estava familiarizado com aquele tipo de situações e sabia que manter a cabeça fria era essencial. Por isso, disse a si mesmo para acalmar. Tinha de mostrar aos seus homens que controlava a situação. A fachada da catedral de tijolo brilhava intermitentemente com luzes vermelhas e brancas. Dali a minutos, apareceram mais polícias e ele espantou-se como é que uma cidade da dimensão de Roskilde possuía tantos agentes da lei. A multidão de curiosos aumentava a cada instante, vindos da praça principal. A situação estava a ficar caótica, o que era perfeito. Sempre se movimentara com maior à-vontade no meio do caos, desde que fosse ele a controlá-lo. Fitou os dois homens que tinham estado com ele no interior da catedral.

Estás ferido?, perguntou ao que fora alvejado. O homem afastou o casaco e mostrou-lhe que o colete à prova de bala fora a sua salvação. Estou apenas dorido. Os outros dois acólitos surgiram logo de seguida por entre a multidão, os que enviara para o leilão. Haviam comunicado por rádio que Stephanie Nelle não conseguira arrematar o livro e ele ordenara-lhes que a encaminhassem para ali. Pensou que talvez ela pudesse ser intimidada, mas os seus esforços tinham sido infrutíferos. E o pior de tudo fora que chamara demasiadas atenções para as suas actividades, graças a Cotton Malone. Os seus homens tinham-no avistado no leilão e recebido ordens para o entreterem enquanto ele falava com Stephanie. Pelos vistos, até isso falhara. Os dois homens aproximaram-se e um deles informou: Perdemos Malone. Eu encontrei-o.

É um homem corajoso e cheio de recursos. Não era nada que não soubesse. Investigara Malone depois de saber que Stephanie Nelle ia viajar para a Dinamarca e visitá-lo. Uma vez que Malone podia fazer parte do que quer que ela estivesse a planear, fizera questão de saber o máximo que pudesse acerca dele. O seu nome de baptismo era Harold Earl Malone, tinha quarenta e seis anos e nascera no Estado americano da Geórgia. A sua mãe era natural da Geórgia e o pai um militar de carreira, licenciado pela academia naval de Annapolis, promovido a capitão-de-fragata antes de o seu submarino se ter afundado quando Malone tinha dez anos. O filho seguira as pisadas do pai, frequentara a academia naval e terminara o curso entre os três primeiros da sua turma. Fora admitido no esquadrão de instrução de voo, e destacara-se o suficiente para escolher o treino de piloto de caças. Depois, estranhamente, a meio da sua formação, pedira transferência e fora aceite na Universidade de Direito de Georgetown, terminando o curso enquanto trabalhava para o Pentágono.

Fora então transferido para o Judge Advocate General's Corps, onde trabalhara durante nove anos como advogado. Há treze anos fora destacado para o Departamento de Justiça e para o recém-formado Magellan Billet de Stephanie Nelle, pedindo a reforma no ano anterior. A nível pessoal, Malone era divorciado e o seu filho de catorze anos vivia com a ex-mulher na Geórgia. Logo após a reforma, deixara a América e mudara-se para Copenhaga. Era um amante de livros e católico, embora não praticante. Falava fluentemente várias línguas, não se lhe conheciam vícios ou fobias e era uma pessoa motivada e dedicada. Possuía também uma excelente memória visual. Tendo em conta estas características, era o tipo de homem que De Roquefort preferia ter a trabalhar para si do que contra si. E os últimos minutos haviam confirmado o seu currículo. A desvantagem numérica de três para um não parecia ter amedrontado Malone, em especial quando pensou que Stephanie Nelle podia estar em perigo. Umas horas antes, o seu acólito mais novo também demonstrara coragem e lealdade, embora tivesse agido de modo precipitado ao roubar a mala de Stephanie. Deveria ter esperado até depois da visita a Cotton Malone, quando esta se dirigisse para o hotel, sozinha e vulnerável. Talvez o rapaz estivesse a tentar agradar, sabendo da importância da missão, ou talvez fosse apenas impaciência. Todavia, quando encurralado na Torre Redonda, havia sabiamente escolhido a morte à prisão. Um desperdício, mas o processo de aprendizagem era assim mesmo. Os mais inteligentes sobreviviam e todos os outros eram eliminados. Fitou um dos homens que permanecera no leilão e perguntou-lhe: Conseguiste saber quem arrematou o livro? O homem assentiu. Tive de dar mil coroas ao empregado pela informação. De Roquefort não estava interessado no preço da fraqueza. O nome? Henrik Thorvaldsen. O telemóvel no seu bolso vibrou. O seu segundo comandante sabia que ele estava ocupado, por isso devia ser importante. Atendeu a chamada. Já não falta muito, disse a voz ao telefone. Quanto tempo? Nas próximas horas. Um bónus inesperado. Tenho uma tarefa para ti, afirmou De Roquefort para a pessoa ao telefone. Há um homem, Henrik Thorvaldsen, um dinamarquês endinheirado que vive a norte de Copenhaga. Sei algumas coisas sobre ele, mas preciso da informação completa daqui a uma hora. Telefona-me quando tiveres tudo. Desligou o telefone e encarou os seus subordinados. Temos de regressar, mas ainda há duas tarefas que precisamos de completar antes de amanhecer». In Steve Berry, O Legado dos Templários, 2006, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN 978-972-203-808-9.

Cortesia PdomQuixote/JDACT

JDACT, Literatura, Steve Berry, Templários,

Matilda Wright. Aposta Indecente. «Catherine desesperou-se. Atirou-se para cima da cama e ficou aos prantos que desde a véspera, que lhe oprimia o peito. Dentro de algumas horas ficaria sabendo qual o convento que Villeclaire tinha escolhido»

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«(…) Tinha-se sentido alegre uma única vez, é verdade! Na semana anterior, naquele princípio de manhã em que um grupo de homens e bateu na sua porta para entregar o cadáver do marido. Não tinha vergonha de reconhecê-lo. Sentiu, de facto, uma alegria profunda quando olhou para aquele corpo morto, aquele rosto balofo e amarelo onde o sangue tinha deixado de correr. Nem sequer tinha feito um esforço para parecer penalizada. Na confusão de conversas, e enquanto depositavam o morto no quarto, percebeu que se tratava de uma aposta e não se admirou. Sabia que Duvernois era um jogador. Passou a semana de recolhimento a que o luto a obrigava a pensar no que faria da sua vida. Finalmente estava livre. Calculou que haveria dívidas para pagar e, por isso, decidiu que venderia tudo o que herdasse, pagaria o que houvesse a pagar e, depois..., depois deixaria Paris, viraria as costas àquela cidade onde foi tão desgraçada e começaria tudo de novo, noutra cidade qualquer. Rumaria a sul, decidiu. Procuraria uma dessas pequenas cidades à beira do Mediterrâneo onde a aristocracia passava o Verão. Alugaria uma casa, arranjaria uma criada e trabalharia como estilista ou bordadeira. Quem a conhecera antes de se ter tornado aquele farrapo de gente elogiava e a sua perfeição nos bordados e o bom gosto das roupas que costurava. Para os pobres, muito antes de ela própria ter-se tornado pobre.

Tinha sido uma semana não de luto, mas de alegria. Passada no recolhimento do seu quarto, o único lugar limpo daquele casarão decrépito e cheio de pó, onde as teias de aranha cresciam sem que ninguém se incomodasse em limpá-las. Indiferente aos desaforos do criado e ao pão duro e à sopa azeda que a cozinheira lhe mandava servir no almoço e no jantar. Noutra situação qualquer teria recusado aquele caldo nojento e mal cheiroso mas durante essa semana comeu tudo o que pôde. Sabia que ia precisar de forças para enfrentar os dias de viagem, as mudanças de diligência, as esperas em estalagens à beira de estradas. Ainda na véspera, quando o primeiro credor lhe bateu na porta, tinha continuado a se sentir feliz. Acabara o luto. Bastava agora esperar um ou dois dias para que todos viessem cobrar as dívidas, vender o que fosse preciso para pagar o que fosse urgente e arranjar dinheiro para a viagem. Eram grandes quantias: três mil francos a um, cinco mil a outro, cem francos ao homem do açougue, embora não entendesse porque nunca tinha comido carne naquela casa, cinco francos ao padeiro, mais doze mil francos de uma aposta num jogo de cartas. Não era grave. Era muito dinheiro mas venderia os móveis e as pratas. Viajaria com o que sobrasse e colocaria as casas à venda. Talvez, saldadas todas as contas, ficasse com dinheiro para ter uma vida confortável e sem sequer precisar trabalhar. A hora da liberdade tinha chegado!

Continuou a sentir-se feliz e livre até ao momento em que Louis Villeclaire tinha entrado na sua casa e tinha lhe mostrado o documento assinado pelo marido. Dois bilhões de francos! Mesmo que vendesse tudo não chegaria sequer para lhe pagar metade..., para piorar a situação, Duvernois tinha deixado o seu futuro nas mãos do seu credor. Como se também ela fosse uma coisa, uma arca ou uma cadeira. Aquele homem altivo e frio, que ainda assim não conseguia deixar de achar bonito desde a primeira vez em que olhou para ele, aquele homem que a fizera estremecer por dentro, numa sensação agradável e até aí desconhecida, como se tivesse sido avassalada por um tsunami, e que se mostrara implacável, tinha acabado com o sonho que acalentara durante toda uma semana. Não iria para o sul, não recomeçaria a vida numa cidade à beira-mar onde ninguém saberia quem ela era. O futuro, agora, tal como ele dissera, era um convento para mulheres pobres, onde viveria o resto dos seus dias entre outras mulheres que não conhecia, onde continuaria a comer pão duro e a usar roupa velha, a que nunca chamaria sua.

Catherine desesperou-se. Atirou-se para cima da cama e ficou aos prantos que desde a véspera, que lhe oprimia o peito. Dentro de algumas horas ficaria sabendo qual o convento que Villeclaire tinha escolhido. Muito provavelmente nessa mesma noite já ali dormiria, naquela que seria a sua nova casa até que Deus se apiedasse dela e a levasse. Se ao menos tivesse descoberto uma réstia de bondade naquele homem..., valeria a pena tentar? Podia suplicar-lhe que a deixasse livre para recomeçar a sua vida. Não poderia ter criada e teria de alugar uma casa minúscula, um quarto, talvez... Mas trabalharia noite e dia, seria a melhor estilista da cidade. Não contaria nunca a ninguém o seu passado. Villeclaire poderia ficar descansado, nunca ninguém saberia que a tinha deixado na maior pobreza... Tentaria! E sentiu-se animada por esta ideia. Sim, ia propor-lhe que a deixasse livre quando, nesse dia, ele voltasse para levá-la para o convento...

Louis de Villeclaire chegou no início da tarde acompanhado por um outro homem. Um senhor de meia-idade, elegante, vestido de preto, com uma cara redonda e bondosa. Monsieur Laval, o meu procurador, apresentou o marquês. A jovem viúva animou-se. Aquele homem bondoso era, com certeza, uma ajuda do céu. Mas a sua esperança depressa se desvaneceu. Monsieur Laval pediu licença para sair da sala dizendo que ia acertar as indenizações com os criados. Catherine sentiu um arrepio quando a porta se fechou deixando-a sozinha com Villeclaire. Sem a presença de Laval soube imediatamente que nenhum pedido seu seria atendido. Mas não estava disposta a mostrar àquele homem o medo que sentia naquele momento. Por isso, olhou-o de frente, desafiando-o a ditar a sentença que a condenaria para sempre. Parto amanhã para o Vale do Loire e vou levá-la comigo, disse Louis. Catherine levantou uma sobrancelha, admirada. Pensei que tinha falado num convento em Paris..., retrucou. Não se trata de um convento. Mudei de ideia a seu respeito. É jovem e bonita, seria um desperdício escondê-la do mundo. Tenciono torná-la minha amante..., por enquanto. Depois pensarei o que fazer... In Matilda Wright, Aposta Indecente, 2011, Editor Livros d’Hoje, Publicações dom Quixote, 2011, ISBN 978-972-204-776-0.

Cortesia de Ld’Hoje/JDACT

JDACT, Literatura, Matilda Wright, 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

A Trégua. Mario Benedetti. «Simplesmente, sacudiu o braço até se soltar, moveu as asas do nariz e disse: Quando é que você vai crescer?, antes de sair batendo a porta»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Esta tarde, quando cheguei do Centro, Jaime e Esteban estavam gritando na cozinha. Consegui ouvir que Esteban dizia ao irmão algo sobre aqueles seus amigos podres. Quando escutaram meus passos, eles se calaram e procuraram falar com naturalidade. Mas Jaime tinha os lábios apertados, e os olhos de Esteban brilhavam. O que houve?, perguntei. Jaime deu de ombros e o outro disse: Nada que lhe interesse. Que vontade de lhe acertar um soco na boca. É isso o meu filho, esse rosto duro, que nada nem ninguém abrandará jamais. Nada que me interesse. Fui até ao frigorífico, peguei a garrafa de leite e a manteiga. Estava sentindo-me indigno, envergonhado. Não era possível que ele me dissesse: Nada que lhe interesse e eu ficasse tão tranquilo, sem lhe fazer nada, sem lhe dizer nada. Servi-me um copo grande. Não era possível que ele me gritasse com o mesmo tom que eu devia empregar com ele e que, no entanto, não empregava. Nada que me interesse. Cada gole de leite me doía nas têmporas. De repente, virei-me e o agarrei pelo braço. Mais respeito com seu pai, entendeu? Mais respeito. Era uma idiotice dizer isso àquela altura, quando o momento já passara. O braço estava tenso, duro, como se repentinamente se tivesse transformado em aço. Ou em chumbo. Minha nuca doeu quando levantei a cabeça para fitá-lo nos olhos. Era o mínimo que eu podia fazer. Não, ele não estava assustado. Simplesmente, sacudiu o braço até se soltar, moveu as asas do nariz e disse: Quando é que você vai crescer?, antes de sair batendo a porta.

Minha cara não devia estar muito tranquila quando me virei para encarar Jaime. Ele continuava encostado à parede. Sorriu com espontaneidade e limitou-se a comentar: Que mau génio, velho, que mau génio! É incrível, mas, nesse preciso instante, senti que minha raiva congelava. É que também seu irmão..., falei, sem convicção. Deixe-o, respondeu Jaime, a esta altura nenhum de nós tem remédio. Mario Vignale foi ver-me no escritório. Quer que eu vá a sua casa na semana que vem. Diz que encontrou fotos antigas de todos nós. Não as trouxe, o cretino. Sem dúvida, constituem o preço da minha aceitação. Aceitei, claro. Quem não é atraído pelo próprio passado? Esta manhã, o novo, Santini, tentou se confessar comigo. Não sei o que tem a minha cara para convidar sempre à confidência. As pessoas me olham, me sorriem, algumas até chegam a fazer a careta que precede o soluço; depois se dedicam a abrir o coração. E, francamente, há corações que não me atraem. São incríveis a cómoda impudicícia, o tom de mistério com que alguns tipos segredam acerca de si mesmos. Porque eu, sabe, senhor?, eu sou órfão, foi logo dizendo Santini, para me obrigar à piedade. Prazer, e eu sou viúvo, respondi com um gesto ritual, destinado a destruir aquela cara-de-pau. Mas minha viuvez o comove muito menos do que sua própria orfandade.

Tenho uma irmãzinha, sabe? Enquanto falava, de pé junto à minha escrivaninha, ele tamborilava os dedos, frágeis e delgados, sobre a capa do meu Livro Diário. Você não pode deixar quieta essa mão?, gritei, mas ele sorriu docemente antes de obedecer. No pulso, usa uma corrente de ouro, com uma medalhinha. Minha irmãzinha tem 17 anos, sabe? O sabe?, é uma espécie de tique. Não me diga. E ela vai bem? Era minha defesa desesperada, antes de que se rompessem os diques do seu último arremedo de escrúpulo e eu me visse definitivamente inundado pela sua vida íntima. O senhor não me leva a sério, disse ele, apertando os lábios, e afastou-se muito ofendido para a sua mesa. Não trabalha muito depressa. Demorou duas horas para me fazer o resumo de Fevereiro». In Mario Bennedetti, A Trégua, Cavalo de Ferro, 2015, ISBN 978-989-623-048-7.

Cortesia de ECdeFerro/JDACT

JDACT, Mario Benedetti, Literatura,  

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Julia Navarro. O Sangue dos Inocentes. «Caminharam perto de uma hora entre penhascos formados por blocos calcários que terminavam na enorme rocha onde, desafiador ao olho humano, se encontrava o castelo de Montségur»

jdact

Languedoq meados do sécalo XIII

«(…) Escapuliu-se do acampamento com passos rápidos e dirigiu-se ao bosque, certo que a qualquer momento apareceria o enviado de dona Maria. Estais atrasado, recriminou-o o homem que saiu ao seu encontro como se se tratasse de um espectro. Era um cabreiro que conhecia bem os caminhos da montanha. Não pude vir antes. Ou adormecestes, replicou o homem, de mau humor. Não, não adormeci, só que não posso sair do acampamento quando me apetece. Pois outros o fazem. Isso é uma surpresa! Surpreende-vos que entre os soldados recrutados à força existam alguns que têm familiares ali em cima? Julián calou-se. De modo que Fernando tinha razão. Havia quem entrasse e saísse de Montségur como de sua própria casa. Onde é que a senhora me espera? Segui-me até ao lugar. Caminharam perto de uma hora entre penhascos formados por blocos calcários que terminavam na enorme rocha onde, desafiador ao olho humano, se encontrava o castelo de Montségur. O cabreiro deteve-se junto de umas árvores que se encarrapitavam por um dos penhascos. Mal recuperara o fôlego quando se encontrou perante dona Maria. Julián, filho, quanto me alegra ver-te! Minha senhora... Vem, senta-te a meu lado, não temos muito tempo e temos de o aproveitar. Quero que me contes como estão as coisas ali em baixo. Os nossos espiões dizem que Hugues des Arcis conta com dez mil homens. Espero que o conde de Toulouse não se amedronte perante essa força e cumpra os seus compromissos para com esta terra. Não se trata apenas de fé, mas sim de poder. Que dizeis, senhora? Se Hugues des Arcis conquistar Montségur, acabou-se a liberdade na nossa terra.

O rei quer estas terras porque, sem elas, o seu reino não vale nada. Pensas que lhe interessam os cátaros? Não, filho, não te iludas, aqui não se luta por Deus, mas sim pelo poder. Querem o nosso país para a Coroa. Mas o papa quer erradicar a heresia! O papa sim, mas ao rei de França tanto lhe faz. Senhora, dizeis cada coisa...! Bem, não te cansarei com as minhas ideias, prefiro ouvir-te, ou melhor, que respondas às minhas perguntas. Durante uma hora, dona Maria interrogou Julián. Não houve pormenor acerca das forças de Hugues des Arcis sobre as quais não lhe colocasse perguntas. E tu, Julián? Continuas a ser um crente? Que sei eu! Estou confuso, senhora, já nem sei quem é Deus. Mas como é possível que digas isso? Enganei-me contigo? Sempre te considerei inteligente, por isso quis que estudasses e te tornasses dominicano... Contudo, a única coisa que quereis é que atraiçoe os meus irmãos! O que quero é que sirvas o Deus verdadeiro, e não o demónio que tens por Deus.

Julián persignou-se, espantado. Dona Maria atormentava-o com as suas ideias heréticas e fazia-o duvidar. Ainda recordava o dia em que o chamara para lhe dizer que encontrara o Deus verdadeiro, e que a partir desse momento ele também o deveria servir. Explicou-lhe que o mundo fora criado por uma divindade inferior, um demónio que encarcerara os verdadeiros anjos, e que estes anjos eram as almas humanas que apenas se libertariam com a morte. O corpo, disse-lhe, era uma prisão, o pior dos calabouços. Deus nada tinha a ver com a terra oblivionis. Era Ele o artífice do espírito, não da realidade material. Coexistiam duas criações, a má e a boa, a terrena e a espiritual. Os perfeitos, acrescentou, ajudam-nos a encontrar o caminho para fugir da prisão e para que a nossa alma se encontre no céu com essa parte do nosso espírito que voltará a tornar-nos inteiros. Vi dom Fernando. Meu filho? Vosso filho». In Julia Navarro, O Sangue dos Inocentes, 2007, Bertrand Editora, 2017, ISBN 978-972-253-182-5.

Cortesia de BertandE/JDACT

JDACT, Julia Navarro, Literatura, Cátaros,