A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491
Saulo
«(…) Mas eu não estava morto,
embora, por muitos dias e muitas noites após deixar Las Conchas, tivesse
desejado estar. Os soldados em pouco tempo dispersaram a multidão que se
juntara do lado de fora da propriedade de dom Vicente Alonzo Carbazón. Então o
tenente deu um puxão na ponta da corda e me arrastou para fora do portão e
através da estrada. Seus soldados nos seguiram, dando-me bofetadas e chutes o
caminho todo na direcção da zona portuária até encontrarem o navio no qual
compraram passagens. Gostaria de não ter de me preocupar em procurar uma galé
para levá-lo como escravo, comentou o tenente, quando tropecei e caí ao
subirmos a prancha. Não quero esse tipo de escória comigo quando nos juntarmos
aos exércitos do rei e da rainha. Podemos jogá-lo ao mar com o lixo, quando
deixarmos o porto, sugeriu um dos soldados. O tenente grunhiu. Talvez o cadáver
flutue até à praia e revele o que fiz. Não arriscarei enfurecer aquele
magistrado, caso ele descubra que matei o rapaz após ele decidir que sua vida seria
poupada. O capitão do navio, que ouvira a conversa, sugeriu: Se não
encontrarmos uma galé entre aqui e a primeira terra avistada, vamos amarrá-lo
na âncora e baixá-lo com ela. Deu uma piscadela. Podemos dizer que ele ficou
preso na corda e foi arrastado por cima da murada. Ele me agarrou pelo cabelo,
puxou-me pelo convés e me arremessou para o interior de um dos porões, onde caí
violentamente, batendo braços, pernas e a cabeça contra fardos e caixas de
carga, até parar sobre um chão de madeira maciça. Mal havia recuperado o fôlego
quando a abertura foi trancada e a luz se extinguiu. Aquele era um novo terror
para mim. Eu nunca estivera numa escuridão total; o sangue aumentou
repentinamente atrás dos meus olhos enquanto tateava loucamente com os braços
estendidos para encontrar algo em que me apoiar. O navio estremeceu quando os
marinheiros se prepararam para partir. Subitamente o mundo se movimentou debaixo
dos meus pés e o universo inteiro deslizou. Minha mente se agitou, pois eu nunca
estivera num barco. As velas rangeram, e começamos a deixar o porto.
Quando o vento aumentou, as ondas
nos arrebataram e a espinha do navio arqueou contra o mar. Aterrorizado pelo
poder primitivo dos elementos, fui jogado de um lado a outro, gritando na
escuridão, enquanto o navio subia e então caía, era erguido e baixado pela mão
de uma criatura gigantesca. Vomitei, emborcando várias e várias vezes, até a ânsia
vazia contrair meu estômago com dores excruciantes, e caí no chão, exausto, e
permaneci ali, choramingando. Não havia como diferençar luz do dia da escuridão.
Privado da visão, os ruídos que eu ouvia soavam altos na minha cabeça, a
correria de ratos e os gemidos e rangidos do casco de madeira à medida que este
forçava seu caminho pela água. Eu achava que as pranchas rachariam, se fariam
em pedaços, e eu seria lançado nas profundezas, e gritava vergonhosamente pela
minha mãe e pelo meu pai morto.
E, dentro do fermento de minha
mente, eu os vi de novo: minha mãe deixada sozinha, doente e moribunda, e meu
pai, o corpo balançando no fim de uma corda. O tempo piorou, o navio se
arremessava e ondulava, e os enormes caixotes e fardos da carga começaram a se
movimentar. Temia ser esmagado. Rastejei até encontrar um espaço entre as
escoras, no qual me enfiei, ao longo das costelas do navio. Ali me segurei
enquanto, lá fora, as ondas batiam fazendo estrondos, procurando uma maneira de
me esmagar. Permaneci sem me mexer pelo que me pareceu dias, até ficar tão
fraco que mal conseguia erguer a cabeça. Foi o soldado ruivo, aquele que
mostrara piedade para com meu pai puxando-lhe as pernas para diminuir sua
derradeira agonia, quem, enfim, abriu a escotilha. Uma corda desceu tombando, e
ele baixou por ela para me dar uma olhada. Então berrou para alguém que estava
na parte de cima à espera de informações: Ele está vivo! Voltou minutos depois
com uma moringa de água». In Theresa Breslin, Prisioneira da
Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.
Cortesia de GRecord/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,