O que a Idade Média nos deixou
«(…)
Inspirando-se nas pesquisas dos árabes, a Idade Média presta muita atenção à óptica,
e Roger Bacon declarava que era a nova ciência destinada a revolucionar o
mundo: Esta ciência é indispensável para o estudo da teologia e para o mundo… A
vista mostra-nos toda a variedade das coisas, e por ela se abre o caminho para
o conhecimento de todas as coisas, como resulta da experiência. E são os
estudos de óptica, juntamente com a experiência dos mestres vidreiros, que
conduzem à invenção, quase casual e de origens um tanto ou quanto obscuras (há
quem mencione Salvino degli Armati, em 1317, e quem recue até ao século XIII,
com Fra Alessandro della Spina), de uma coisa que desde então se não tem
modificado muito: os óculos. À parte o uso que ainda hoje fazemos deles, os
óculos exerceram uma influência de grande alcance na evolução do mundo moderno.
Todos os seres humanos tendem a sofrer de presbiopia depois dos quarenta anos,
e podemos considerar que numa época em que se lia por manuscritos, e durante
metade do dia à luz de velas, a actividade de um estudioso se reduzia
temivelmente a partir de uma certa idade. Mercê dos óculos, os estudiosos, os
comerciantes e os artífices prolongaram e aumentaram as suas capacidades de
aplicação. É como se as energias intelectuais daqueles séculos tivessem
duplicado ou até decuplicado, subitamente. Se pensarmos como foi útil para o desenvolvimento
científico norte-americano o facto de ter havido algumas dezenas de cientistas
judeus que, fugindo ao nazismo, foram enriquecer a ciência e a técnica do Novo
Continente (é em grande parte a eles que se deve o descobrimento da energia atómica
e as suas aplicações), teremos uma pálida ideia do que a invenção dos óculos significou.
Finalmente, é nos últimos decénios da Idade Média que aparece no Ocidente a pólvora
de tiro (provavelmente já conhecida dos chineses, que a utilizavam para efeitos
pirotécnicos). Tudo muda na arte da guerra, e 18 anos antes do fim oficial da Idade
Média, perante a nova invenção do arcabuz, Ludovico Ariosto cantará:
Come trovasti, scellerata e brutta
invenzion, mai loco in alcun core?
Per te la militar gloria è distrutta:
per te il mestier de l’arme è senza onore;
per te il valore e la virtù ridutta
che spesso par del buono il rio migliore;
non più la gagliardia, non più l’ardire,
per te può in campo al paragon venire (Orlando furioso, XI, 26
E assim começa verdadeiramente, sob tão terrível agoiro, a obscura
Idade Moderna.
Em que sentido a Idade Média foi radicalmente diferente dos
nossos tempos
A
Idade Média elaborou não só uma constante tensão para o Além mas também um sentimento
visionário do mundo terreno e da natureza. O homem medieval via o mundo como
uma floresta cheia de perigos, mas também de revelações extraordinárias, e a Terra
como uma extensão de regiões remotas povoadas por seres esplendidamente monstruosos.
Extraía estas fantasias dos textos clássicos e de inúmeras lendas, e acreditava
firmemente que o mundo estava povoado por cinocéfalos com cabeça de cão,
ciclopes com um olho único no meio da testa, blémies sem cabeça e com a boca e os
olhos no peito e criaturas com um lábio inferior tão proeminente que ao dormir cobrem
com ele toda a cara para defender-se do ardor do sol; por seres com uma boca tão
pequena que comem por um buraquinho utilizando caules de aveia, e por panotos com
orelhas tão grandes que podem cobrir com elas todo o corpo; por artabantes que caminham
inclinados para o chão como as ovelhas e sátiros com nariz adunco, chifres na
testa e pés de cabra, ou por ciápodes, só com um pé que lhes serve de
guarda-sol quando se deitam de costas no chão, por causa do calor do sol.
Tudo
isto e muito mais (baleias em forma de ilha, onde São Brandão aproava ao navegar
em mares remotos, os reinos da longínqua Ásia, onde abundavam pedras preciosas,
e muitas outras fantasias), constituía o repertório do maravilhoso medieval. Se
fosse só isto, estas maravilhas não seriam diferentes das que haviam fascinado
a Antiguidade e o período helenístico. Mas a Idade Média consegue traduzir
grande parte deste repertório do maravilhoso em termos de revelação espiritual».
In
Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.
Cortesia PdQuixote/JDACT
JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,