«(…) A gravação começava com imagens da família Jiménez saindo do Edifício del Presidente. Raúl e Consuelo Jiménez estavam de braço dado. Ela vestia um casaco de peles até aos pés e ele tinha um sobretudo cor de mel. Os rapazes estavam todos vestidos de igual, em verde e cor de vinho. Caminharam em direcção à Câmara, que se encontrava do outro lado da rua, e viraram à esquerda, para a Calle de Asunción. O filme saltava para o mesmo grupo mas com roupas diferentes, num dia de sol, saindo dos armazéns do El Corte Inglês, na Plaza del Duque de la Victoria. Atravessaram a rua em direcção à praça, que estava cheia de vendedores ambulantes de CD’s, carteiras e porta-moedas em pele. O grupo entrou no Marks & Spencer. A família foi sendo mostrada repetidamente, no meio de centros comerciais, em encontros na praia, em passeios na Plaza de España e no Parque de Marta Luisa, até dois dos três homens já estarem abafando os bocejos. Ele está nos mostrando que fez o trabalho de casa? Perguntou Ramírez. Espantosamente aborrecido, não é? Disse Falcón, sem achar que fosse, se sentindo estranhamente fascinado pela dinâmica do grupo familiar em diferentes locais. Vivia fascinado pela ideia de família, especialmente deste tipo, aparentemente feliz, e como seria ter uma; o que o levava a pensar porque teria falhado tão estrondosamente nesse campo. Uma mudança de rumo do filme fê-lo retomar abruptamente a atenção. Era a primeira gravação em que a família não aparecia em grupo. Raúl Jiménez e os filhos estavam no estádio de futebol do Bétis, num dia em que este jogava contra o Sevilla, como era patente pelos cachecóis, o derby local.
Lembro-me deste dia, disse Calderón.
Perdemos por 4-0, disse Ramírez. Vocês perderam, disse Calderón. Nós ganhamos. Não
me diga, disse Ramírez. Por quem torce, inspetor-chefe? Perguntou Calderón.
Falcón não reagiu. Não lhe interessava. Ramírez lançou um olhar por cima do
ombro dele, pouco à vontade com a sua presença. A câmera voltava ao Edifício
del Presidente. Consuelo Jiménez, sozinha, entrava num táxi. Plano dela pagando
o táxi numa rua arborizada, esperando por instantes até que o carro partisse,
antes de atravessar a estrada, e subir vários degraus de uma casa. Onde é isto?
Perguntou Calderón. Ele vai nos dizer, disse Falcón. Uma série de planos
mostrava Consuelo Jiménez chegando à mesma casa em dias diferentes, com
diferentes roupas. Depois o número da porta: 17. E o nome da rua: Calle Rio de
la Plata. Aquilo é em El Porvenir, disse Ramírez. Isto é o futuro, disse Calderón.
Cheira-me que temos aqui um amante.
Plano nocturno e a traseira de um
grande Mercedes Classe E com placa de Sevilha. A imagem ficou fixa por um
bocado. Ele não imprime grande ritmo ao argumento, disse Calderón, que depressa
tinha atingido o seu patamar de saturação. Suspense, disse Falcón. Finalmente,
Raúl Jiménez saiu do carro, trancou-o, saiu da zona iluminada da rua para a
escuridão. Plano de uma fogueira em plena noite; pessoas à volta das chamas
crepitantes. Mulheres com saias curtas, algumas revelando cintos de ligas e os
remates das meias. Uma virou, se dobrou e voltou as nádegas para o fogo. Raúl
Jiménez apareceu à beira da fogueira. Encetou uma conversa inaudível. Regressou
a passos largos para o Mercedes com uma mulher atrás de si, cujos saltos altos
a faziam tropeçar no chão irregular. Isto é na Alameda, disse Ramírez. Apenas o
mais barato para Raúl Jiménez, disse Falcón. Jiménez empurrou a jovem para o
banco de trás, lhe abaixando a cabeça como se fosse um suspeito da polícia.
Olhou em redor e entrou atrás dela. O plano fixou a porta traseira do Mercedes,
seguindo movimentos obscuros por trás do vidro. Não passou mais de um minuto e
Jiménez saiu do carro, apertou a braguilha e estendeu uma nota à jovem, que
pegou. Jiménez voltou a sentar-se ao volante. O carro arrancou. Foi uma
rapidinha, disse Ramírez, previsível». In
Robert Wilson, O Cego de Sevilha, 2003, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2004,
ISBN 978-972-202-615-5.
Cortesia de PdomQuixote/JDACT
JDACT, Literatura, Robert Wilson, Sevilha,