Saudades da Caverna
«(…) Não sei que autor de
anteontem dizia que o melhor instrumento de medição das altas e baixas pressões
económicas era os pequenos anúncios dos jornais. Achava o dito autor, e julgo
que o conseguia demonstrar, que aquilo que se vende, de particular a
particular, em bens de luxo ou objectos úteis, define de um modo bastante
rigoroso uma situação económica geral. Claro que por este meu jeito tacteante
de avançar na matéria se está já notando que me falta saber e capacidade para
discutir a tese, nem creio que tal discussão adiantasse muito neste tempo de
grandes concentrações económicas e de impérios comerciais. Acho preferível
passar adiante, não me caiam em cima os coriscos da informática. Fique apenas
desta introdução quanto basta para se compreender melhor o sobressalto de espírito
que me trouxe o tema desta crónica. Certos usos e costumes (certas vendas,
certas compras) não surgem por acaso, e para o assunto que hoje me ocupa nem
sequer o apelativo de moda designa seja o que for, uma vez que a moda não é
mais do que a difusão promovente de um uso primeiramente limitado. E chego
desta maneira ao meu tema. Que razões profundas, que mecanismos, que vozes
ancestrais, se estão definindo, movendo, articulando, nesta sociedade, para que
se tivesse tornado tão usual uma terminologia que evoca tempos revolutos,
sobretudo, e é isto que me parece mais importante, quando aplicada a lugares de
ajuntamento, de repasto, isto é, onde o gregarismo é padrão. Que saudades da
caverna latejam na memória inconsciente dos grupos, para que tenha surgido este
aluvião de boites e restaurantes com nomes velhos? Que psicólogo ou
psicanalista me explicará a razão de tantos cacos, carunchos, toscos, caixotes,
choupanas, ferraduras, cubatas, cangas, chocalhos, naus, veleiros? E dos archotes,
calhambeques, lareiras, carripanas, breques, baiúcas, chafarizes, tocas, braseiros
e túneis?
Esta atracção do primitivo, que
até na decoração dessas casas ganha aspectos de ideia fixa, quase agressiva, se
por um lado pode significar a continuidade, em plano diferente, de certa atracção
de contrários que nos caracterizou como sociedade particular (o infante dom
Miguel e os arrieiros, o marquês de Marialva e o fado, os capotes brancos do
Bairro Alto, os fidalgos pegadores de touros), há-de certamente obedecer a razões
menos visíveis e mais gerais, as mesmas, talvez, que fizeram surgir bandas desenhadas
cujos heróis são homens e' mulheres da pré-história, da idade da pedra, ainda
incapazes de inventar a roda mas já enleados nos problemas e nos conflitos de
hoje. Andaremos nós à procura de uma nova inocência, de um recomeço? A escolha daqueles
nomes será movida por um obscuro e aparentemente contraditório rancor contra as
sociedades de consumo? Ou será antes um reflexo de má consciência que leva a
dar às coisas, não o nome que lhes cabe mas o nome que as nega, como se essa
operação de mágica linguística extraísse o veneno da serpente? Se eu tiver um
palácio e lhe chamar a minha barraca, afasto com isso o raio que é atraído
pelos lugares altos? Em grande conta eu me teria se fosse capaz de dar resposta
a tais perguntas. Mas não será melhor deixá-las intactas? Se o leitor as
considerar ociosas, facilmente as esquecerá, depois de protestar contra a perda
do meu tempo e do seu tempo. Mas se murmurar: E boa! Nunca tinha pensado nisso,
então ganhei bem o meu dia. O que, posso garantir, não é todos os dias que
acontece.
Elogio
da couve portuguesa
A notícia correu o país inteiro,
provocando o frémito das grandes ocasiões patrióticas: uma couve portuguesa
plantada na Austrália atingiu 2,40 metros de altura (por extenso e para não
haver dúvidas: dois metros e quarenta centímetros), e continua a crescer. Sob céus
e climas estranhos, rodeada de cangurus, ameaçada certamente pelas tribos
primitivas do interior, ao alcance do terrível boomerang, a couve portuguesa dá
uma lição de constância e de fidelidade às origens, ao mesmo tempo que mostra
ao mundo as nossas raras qualidades de adaptação, o nosso universalismo, a
nossa vocação de grandes viajantes. E continua a crescer». In José Saramago, A Bagagem do
Viajante, 1973, Editorial Futura, Editora Caminho, 1998, ISBN
978-972-212-339-6.
Cortesia de EFutura/ECaminho/JDACT
Crónica, Ensaio, JDACT, José Saramago, O Saber,