«(…) Toda uma cultura e sua religião pesam sobre cada muçulmano, mas o maior dos pesos recai desproporcionalmente sobre os ombros da mulher. Somos obrigadas a obedecer e somos obrigadas a viver na castidade e na vergonha por Alá, pelo Profeta e pelos pais e maridos que são nossos guardiões. As mulheres na Whitechapel Road carregam o fardo de todas as obrigações e regras religiosas que, no Islão, se concentram de forma obsessiva nas mulheres, com a mesma inexorabilidade que observam suas irmãs na África Oriental. Eu ainda sentia a dor provocada pela ideia de ter manchado o bom nome do meu pai. Por ser uma apóstata, uma descrente, por viver agora como uma mulher ocidental, eu o tinha magoado, prejudicado e até profanado com minha rebelião. Mas eu sabia também que aquilo era necessário, vital. Sahra tinha adoptado o caminho inverso. Ela não se rebolou. Magool me dissera que Sahra era muito religiosa e que usava o jilbab, um longo roupão preto que cobre o cabelo e todo o corpo além dos tornozelos e pulsos, mas não o rosto. O manto negro de Sahra ultrapassava as pontas dos seus dedos e chegava até ao chão; a cada palavra e gesto seu, ela buscava expressar sua submissão à vontade de Alá e à autoridade dos homens. O véu muçulmano, os diferentes tipos de máscaras e burcas, são gradações da escravidão mental. É preciso pedir permissão para sair de casa, e, quando saímos, somos invariavelmente obrigadas a nos esconder sob tecidos espessos. Envergonhadas do próprio corpo, suprimindo nossos desejos, sobra algum espaço na vida, por menor que seja, para ser chamado de nosso?
O véu marca deliberadamente as
mulheres como propriedade particular e restrita, como não pessoas. O véu separa
as mulheres dos homens e do mundo; ele as restringe, confina, educa para a
docilidade. A mente pode receber um espaço tão limitado quanto o corpo, e o véu
muçulmano restringe tanto a visão da mulher quanto o seu destino. Trata-se da
marca de uma espécie de apartheid, reflectindo não a dominação de uma raça, mas
de um género. Enquanto o carro avançava pela Whitechapel Road, senti raiva ao
ver que essa submissão, ainda que não fosse promovida, era silenciosamente
tolerada não apenas pelos britânicos, mas por tantas sociedades ocidentais nas
quais a igualdade entre os sexos é protegida pela lei.
Do aeroporto, telefonei para
Sahra e contei que tinha ido visitar o nosso pai e estava partindo de volta
para os Estados Unidos. Você foi realmente abençoada com a boa sorte!, disse em
somali, rindo com a brincadeira que fizera com o meu nome, Ayaan, afortunada. Desde
que falou com ele pelo telefone semanas atrás, ele não parou de falar a seu
respeito. Conversamos um pouco sobre a família. Tomei o cuidado de não dizer
nada que ela pudesse considerar ofensivo. Perguntei à minha irmã porque o hospital
tinha internado o pai sob um nome falso, e ela respondeu: Ah, este é o nome que
ele usou quando pediu asilo no Reino Unido. Conversamos sobre o hospital, e
Sahra me contou uma história engraçada. Quando meu pai foi levado para lá, a mãe
dela disse aos enfermeiros que era esposa dele; então sua primeira mulher,
Maryan Farah, foi visitá-lo, pois também morava na Inglaterra, e disse aos enfermeiros
que ela era a mulher do
meu pai. A equipe do hospital parecia se divertir com o número impossível de pessoas
que afirmavam ser irmãos e primos dele. Eu ri. Eles devem pensar que somos
todos loucos, disse Sahra. Eu disse a ela que provavelmente aquela não era a
primeira vez que o hospital via uma situação do tipo.
À
semelhança da mãe, cada frase dita por Sahra parecia terminar em Inshallah, é a vontade de Alá. De início,
isso me pareceu um sinal de bom comportamento e de um alto grau de civilização,
mas, depois de tantos suspiros de aceitação, tantas invocações da vontade de Alá
e tantos pedidos pela bênção de Alá, envergonho-me de admitir que aquilo começou
a me irritar. Passei a desconfiar dela; Sahra não era mais a criança feliz e
saltitante que conheci em 1992». In Ayaan Hirsi Ali, Nomad, From Islam to America,
Nómade, tradução de Augusto Calil, Companhia das Letras, 2010, ISBN
978-858-086-374-1 e / ou In Ayaan Hirsi Ali, Nómada, Galaxia Gutenberg, 2011,
ISBN 978-848-109-928-7.
Cortesia da CdasLetras/GGutenberg/JDACT