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quinta-feira, 2 de abril de 2020

Viagem ao Fundo das Consciências. A Escravatura na Época Moderna. Maria do Rosário Pimentel. «Destes homens que partiam, muitos morriam durante a viagem e a maioria dos que chegavam ao destino nunca mais regressava à metrópole. Diogo Couto noticia…»

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Os escravos na sociedade portuguesa
«(…) Igual importância tinham o campo e a cidade, mas, por razões diversas, registava-se maior concentração de escravos nos centro urbanos. O escravo quando chegava a Portugal, vinha como mercadoria e não como mão-de-obra específica; depois, poderia ter vários rumos consoante o comprador, inclusivamente, ser destinado à exportação. A intensificação da mão-de-obra escrava resultou, como refere Magalhães Godinho, de uma maior procura e oferta, de facilidades no circuito comercial e, pode acrescentar-se, do interesse lucrativo. Todavia, quer na cidade quer no campo, o escravo era sempre votado às tarefas mais vis ou àquelas que requeriam maior esforço, por regra recusadas ou raramente aceites pelo homem livre, sobretudo numa época em que os escravos proliferavam. Além disso, a sua presença veio permitir à população de nível médio um certo desprezo pelo trabalho e facilitar a exaltação de manias nobiliárquicas. Clenardo vê esta terra como um panorama social em que todos eram nobres, pouco sofredores de trabalhos manuais, segundo a observação de Duarte Nunez Leão, e, no dizer de Gil Vicente, uma terra onde todos aspiravam ser cavaleiros fidalgos. Todavia, pensa-se que a maior utilização do escravo não se ficou a dever à indiferença dos portugueses pelo trabalho. Parece superficial a análise de Anna J. Cooper quando afirma, na sua tese de doutoramento, que a origem da escravatura moderna deve ser procurada dans les moeurs mêmes dis Espagnols et des Portugais, peu enclins au travail manuel et trop indolents poui s'y adonner eux-mêmes.
No século XVI, Portugal teria uma população que rondaria 1 400 000 habitantes e, baseado na obra Ásia Portuguesa de Faria Sousa, Costa Lobo afirma que durante o primeiro terço desse século ter-se-iam verificado, somente nas armadas da Índia, uma média anual de 2 400 saídas, excluídos já os que haviam de regressar a Portugal. Apesar dos números apresentados, Magalhães Godinho considera mais correcta a cifra de 2 000 saídas anuais para o Índico, em vez das 2 400 apresentadas por Costa Lobo. Refere mesmo que, no decurso do século, esse número se foi reduzindo progressivamente para 1 500 a 1 000, à medida que o imperialismo guerreiro foi sendo ultrapassado pela era comercial. De 1497 a 1527, navegaram para a Índia cerca de 320 naus, cada uma levando em média 250 homens. Após o reinado de Manuel I, segundo Severim Faria, o número de homens embarcados em cada nau aproximava-se dos 700 / 800, ou mesmo mais. Este acréscimo devia-se ao facto de as naus, que nos primeiros tempos não passavam das 400 toneladas, terem aumentado consideravelmente a sua tonelagem a partir dessa altura, chegando a atingir as 800 ou 900.
Destes homens que partiam, muitos morriam durante a viagem e a maioria dos que chegavam ao destino nunca mais regressava à metrópole. Diogo Couto noticia que, na nau em que o vice-rei António Noronha foi para a Índia, partiram de Lisboa 900 pessoas, das quais 450 morreram na viagem, acontecendo idêntica situação nas restantes naus da armada, o que reduziu para 2 000 os 4 000 soldados embarcados. Duarte Gomes Solis confirma esta realidade, ao notar a frequência destes acontecimentos, como o da nau São Valentim em que morreram 400 pessoas. A situação no Oriente também não era das mais propícias ao europeu, onde as guerras, o clima e as privações, provocavam grande mortalidade. De 1510 a 1513 teriam morrido cerca de 3 000 portugueses no Oriente, uma média de 750 por ano. E em Janeiro de 1514, havia já perecido mais de metade das pessoas que incorporavam a armada que saíra do reino, em Março de 1510. O número dos que embarcavam, legal ou clandestinamente, e a quantidade dos que morriam na viagem ou se dispersavam por terras de além- mar podem suscitar reservas. Não obstante, os testemunhos são reveladores». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.

Cortesia de Colibri/JDACT

Viagem ao Fundo das Consciências. A Escravatura na Época Moderna. Maria do Rosário Pimentel. «Por que é que se intensifica a escravatura? Facilidades da oferta e do circuito de comércio e circulação, decerto, mas também aumento da procura…»

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Os escravos na sociedade portuguesa
«(…) A expansão ultramarina, a ocupação e manutenção das praças marroquinas, a colonização de zonas despovoadas de além-mar, a fixação e exploração comercial de certas zonas do ultramar foram outros motivos responsáveis pela dispersão dos portugueses pelo mundo inteiro e por uma certa diminuição populacional na metrópole, sobretudo a partir do século XVI; a intolerância religiosa foi  outro motivo que levou ao afastamento e fuga de muitos judeus e cristãos-novos. Nestas circunstâncias, compreende-se que certos portugueses vissem nas levas de cativos africanos um suplemento de mão-de-obra de baixo custo, capaz de ser utilizada no amanho das terras incultas e rarefeitas de povoadores. Nesse sentido, Vitorino Magalhães Godinho explica a intensificação do emprego de escravos na Europa a partir do século XIV, acentuando a necessidade de mão-de-obra gerada pela saída de trabalhadores:

Por que é que se intensifica a escravatura? Facilidades da oferta e do circuito de comércio e circulação, decerto, mas também aumento da procura, indispensável. Na realidade, impossível é esquecer a situação do mercado da mão-de-obra que a Peste Negra agravou paroxisticamente. A própria crise agrícola que dela resultou (ou que ela pelo menos agudizou) levava a buscar saídas no incremento das actividades comerciais e industriais e em novas culturas de maior rentabilidade. Não podemos desatender ao alastrar das plantações de cana sacarina e ao aparecimento de novos engenhos de açúcar no Levante hispânico no século XIV. E em Portugal vimos já que o mesmo acontece no caso de Trezentos e primeira metade de Quatrocentos. Mas por outro lado, à primeira vista paradoxalmente, a expansão quatrocentista lança o processus emigratório: a terra expulsa os seus filhos, ao mesmo tempo que reclama braços vindos de fora.[...] Afinal, resultado lógico das condições estruturais que persistem através de todo o Antigo Regime peninsular: obstáculo intransponível à promoção social e económica dos desfavorecidos, empurram-nos para ganhar a vida em terras alheias ou que vão valorizar pela primeira vez, enquanto a estrutura persistente tem que ir buscar ao exterior a mão-de-obra de que carece.

Confronte-se esta explicação de Magalhães Godinho com a opinião de Duarte Nunez Leão que justifica a presença em Portugal de muitos míl escravos de Guiné e de outras partes da Etiophia e da India por haver menos obreiros para a lavoura, e por tanto preço, que os lavradores ficão achando maior a despesa que a colheita. Mas os problemas levantados pela falta de braços nos campos, não foram os únicos responsáveis pela importação e grande utilização do escravo. Opondo-se a Magalhães Godinho, José Ramos Tinhorão, no livro Os negros em Portugal, é de opinião que essa intensificação do emprego do escravo se ficou a dever ao problema da nova divisão do trabalho desencadeado pelo incremento da actividade comercial, ligada à ampliação das possibilidades da navegação e das actividades burguesas. O autor continua a sua explicação, afirmando que a desorganização da vida rural provocada pelo deslocamento do centro de interesses económicos do interior para o litoral, levou à decadência da produção agrícola em Portugal e à consequente diminuição da necessidade de trabalhadores rurais. Mas, em contrapartida, o desenvolvimento da vida urbana e do comércio originaram maior procura do trabalho criando nas cidades uma súbita falta de mão-de-obra no sector dos serviços urbanos, só colmatável com a importação de escravos. José Ramos Tinhorão justifica esta explicação com o facto de se concentrar mais mão-de-obra escrava nas cidades do que nos campos.
A importância do trabalho escravo nas cidades, como se verá adiante, é um facto que deve ser realçado e não esquecido. Parece, no entanto, que esta problemática não deve ser polarizada unicamente à volta da situação que se vivia nas cidades, em particular na cidade de Lisboa, ou nos centros onde o desenvolvimento do comércio era mais intenso». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.

Cortesia de Colibri/JDACT

domingo, 5 de junho de 2016

O Comércio Negreiro. Séculos XV a XIX. Arlindo M. Caldeira. «E durante cerca de 180 anos, entre 1444 (chegada a Portugal do primeiro grande contingente de escravos) e 1621, (fundação da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais), praticamente detiveram o exclusivo…»

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«(…) O aspecto mais polémico relacionado com os chamados tráficos orientais é o do número de escravizados africanos que, através deles, terão sido forçados a deixar as suas terras. Tendo-se desenvolvido num espaço temporal muito alargado (séculos VIII a XX), falta, ou é muito escassa, a documentação para vastos períodos que lhes dizem respeito, pelo que os quantitativos avançados pelos diversos autores não passam de estimativas. Assim, para os anos que vão de 650 a 1400, isto é, antes do início do comércio transatlântico, o historiador americano Ralph Austen calcula que tenham sido transportados pelas rotas transarianas cerca de 4 milhões de escravos, e perto de 2 milhões por via marítima. Avançar com um número total para os tráficos orientais, no período que vai de 650 a 1920 (só no início do século XX terminou oficialmente a circulação de escravos por essas rotas) está longe de ser objecto de consenso, apresentando-se valores que oscilam entre os 9 milhões e os 17 milhões de seres humanos deportados de África. Diga-se, como termo de comparação, que se calcula em cerca de 13 milhões o número de africanos vítimas do tráfico transatlântico. Os valores, entre ambos os tráficos, não devem ser, portanto, muito díspares, embora haja que ter em conta que, no caso do comércio transariano e oriental, se trata de um processo que se prolongou por mais de 1300 anos, enquanto no atlântico se concentrou em menos de quatro séculos. Apesar disso, os defensores dos valores mais elevados para os tráficos orientais, puderam utilizar essa aparente diferença quantitativa para continuarem a afirmar, na sequência de Paul Bairoch, que não foram os ocidentais os maiores negociantes de escravos.

O tráfico transatlântico
O nosso conhecimento do tráfico transatlântico (ou tráfico ocidental) de escravos tem vindo a melhorar substancialmente nas últimas décadas, devido a um crescente interesse por parte dos historiadores, nomeadamente norte-americanos, por essa área de estudos. Mesmo em termos quantitativos, ultrapassou-se já a fase das estimativas de carácter geral e começamos a aproximar-nos dos números reais. O projecto mais ambicioso é uma investigação colectiva, dirigida pelo historiador David Eltis, com vista à elaboração de uma base de dados capaz de reconstituir a dimensão e a estrutura do tráfico de escravos transatlântico entre os séculos XVI e XIX. Os primeiros resultados, que, na altura, já superavam, em muito, o que se conhecia até aí, foram divulgados num CD-ROM, em 1999. A investigação, no entanto, continuou e, desde 2008, foi colocada na Internet, em regime de acesso livre, The Trans-Atlantic Slave Trade Database, uma base de dados, alimentada em permanência, que reunia, no início de2012, informação detalhada sobre cerca de 35 000 viagens do infame comércio, saídas de África entre 1501 e 1866. Embora se calcule que já estejam contempladas cerca de 80% de todas as viagens, há ainda muitas lacunas, que, infelizmente, se concentram sobretudo no tráfico com o Brasil e a América Espanhola. É possível, no entanto, contar, no mesmo site, com estimativas credíveis em que, usando modelos matemáticos; se tenta conciliar os dados disponíveis com a informação de outras fontes de carácter mais geral.
Coube aos portugueses o papel pouco honroso de terem iniciado o tráfico de escravos no Atlântico, uma vez que o avanço das caravelas lhes tinha permitido encontrar uma alternativa às tradicionais rotas transarianas. E durante cerca de 180 anos, entre 1444 (chegada a Portugal do primeiro grande contingente de escravos) e 1621, (fundação da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais), praticamente detiveram o exclusivo desse comércio. Ainda assim, um exclusivo relativo: quase desde o início, espanhóis (sobretudo das Canárias), franceses e ingleses desafiavam as restrições do mare clausum formuladas no Tratado de Tordesilhas e apareciam a negociar no litoral africano. Além disso, se a imensa maioria dos navios e dos traficantes era portuguesa, muitos dos capitais pertenciam a italianos e flamengos. Os primeiros dois séculos são ainda, em volume e em estrutura, uma pequena amostra do tipo de tráfico que virá a seguir, embora já cerca de três mil escravizados sejam vendidos em cada ano. Alguns desses escravos não chegavam a sair de África pois, comprados pelos portugueses no delta do rio Níger e noutros locais, eram vendidos na Costa do Ouro em troca de metal precioso. Calcula-se que, entre 1482 e meados do século XVI, tenham sido objecto desse comércio inter-regional cerca de 30 mil africanos». In Arlindo Manuel Caldeira, Escravos e Traficantes no império português, O Comércio Negreiro no Atlântico durante os séculos XV a XIX, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-478-9.

Cortesia EsferadosLivros/JDACT

sexta-feira, 13 de maio de 2016

O Comércio Negreiro. Séculos XV a XIX. Arlindo M. Caldeira. «No mundo muçulmano, eram destinadas aos escravos africanos as tarefas mais diversas, que estavam longe de se limitarem, como faz parte de algum imaginário erótico-literário, ao serviço, nos haréns dos sultões»

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Tráfico e Tráficos. Os navios negreiros não param de passar
«(…) Aliás, a maioria desses bens eram bens de prestígio e contribuíram para o reforço do poder ou para a renovação das elites linhageiras, na medida em que estas se mostravam capazes, em maior ou menor grau, de se adaptarem aos princípios da economia de mercado. Talvez agora compreendamos melhor o amargo testemunho com que abrimos o texto desta secção. O velho africano, reflectindo sobre os malefícios do tráfico de escravos, recriminava não apenas os brancos mas também as elites locais, a que ele próprio pertencia, por não terem sabido resistir à novidade das mercadorias europeias. E o que mais o chocava era a instabilidade e a insegurança que a arbitrariedade da justiça e os conflitos entre os Estados tinham introduzido num mundo que provavelmente nunca existira, mas onde, segundo ele, reinava a ordem intemporal e a autoridade consentida.

Os tráficos orientais
O volume e a violência do tráfico atlântico, a que a campanha abolicionista do século XIX ajudou a dar a ver a sua verdadeira dimensão de horror, fizeram esquecer que os comerciantes muçulmanos tinham iniciado, vários séculos antes, o seu tráfico africano de escravos, transportando um número de escravizados ainda hoje difícil de contabilizar. A questão dos tráficos orientais continua, aliás, a ser polémica, mesmo nos nossos dias, não faltando quem afirme que chamar a atenção para outras rotas é uma forma de desviar a atenção do comércio transatlântico, como se não fosse possível tratar todas as formas de tráfico com o mesmo esforço de isenção ou com a mesma indignação. Os chamados tráficos orientais iniciaram-se no século VII, com a formação do Império Árabe. A lei islâmica não permitia a escravidão de muçulmanos, mas aceitava a dos infiéis, o que levou a que se estabelecesse uma rede de abastecimento que incluía a população negra da África subsariana mas também as populações brancas dos países eslavos e do Cáucaso e de outras regiões fronteiriças do Império, como os reinos cristãos do Al-Andalus (Península Ibérica). Muhammad Ibn Hawqa, um geógrafo muçulmano de origem turca que viajou no século X pelo Ocidente, registou nos seus cadernos que o artigo de exportação mais conhecido do Al-Andalus eram os escravos, rapazes e raparigas trazidos de França (condados catalães) e da Galiza (reino de Leão) que eram vendidos em leilões públicos em mercados especializados (ma'rid), do tipo dos existentes nas principais cidades do Império Muçulmano.
Nestes pontos de venda de escravos iriam surgir, com uma frequência cada vez maior, indivíduos negros, ditos genericamente do Sudão. Era o resultado do tráfico transariano, desenvolvido pelos muçulmanos após o domínio político de todo o Norte de África e que lhes dava acesso a mercados africanos que iam, na África Ocidental, até ao Norte da actual Nigéria, e, na Oriental, até, à Tanzânia. A travessia do deserto, que podia demorar cerca de três meses, através da complexa rede de rotas caravaneiras que foram sendo criadas, era, como se calcula, dura e perigosa, sobretudo para grandes grupos, exigindo experiência e cálculos rigorosos sobre a duração das etapas, para aproveitar os raros pontos de água existentes nos vários percursos. Ainda assim, a mortalidade era muito elevada, chegando a ultrapassar os valores que se vão registar na fatídica travessia do Atlântico. Pelas arriscadas pistas que cruzavam o Sara, os comerciantes não traziam apenas escravos mas também ouro, pimenta da Guiné e marfim. O destino eram os principais mercados mediterrânicos do Norte de África: para leste, as cidades egípcias, como Alexandria e o Cairo; mais para ocidente, Gadamés, Cairuão, Tunes, Marráquexe ou Fez.
Seria através da intercepção de algumas destas caravanas vindas da região subsariana que os portugueses obtiveram os primeiros carregamentos de escravos negros desembarcados em Portugal, e era também essa via que abastecia a feitoria de Arguim (na actual Mauritânia), onde o infante Henrique mandou levantar, em 1455, uma fortaleza que só ficaria concluída já após a sua morte. Além das rotas transarianas, comerciantes muçulmanos e de outras origens abriram também uma rota marítima para o transporte de escravos da África Oriental, através do oceano Índico e do mar Vermelho. Estes escravos provinham de uma vasta área da África Centro-Oriental que compreendia o Alto Congo e a região dos Grandes Lagos e ia até à bacia do rio Zambeze, sendo embarcados, em geral, a partir de um grande entreposto situado na ilha de Zanzibar. Embora o objectivo fosse sobretudo o abastecimento da Arábia com mão de obra escrava, a verdade é que, desde o século VIII, surgem africanos escravizados em todo o arco do oceano Índico e até para lá do estreito de Malaca. No final do século IX, já há notícia de escravos negros na ilha de Java e uma inscrição um pouco posterior dá conta de uma oferta de cativos da mesma origem, feita por um rei javanês, ao imperador da China.
No mundo muçulmano, eram destinadas aos escravos africanos as tarefas mais diversas, que estavam longe de se limitarem, como faz parte de algum imaginário erótico-literário, ao serviço, nos haréns dos sultões, como odaliscas, concubinas ou eunucos. Eram também recrutados como soldados: por exemplo, em Marrocos, desde os Almorávidas, havia temidos corpos do exército formados por escravos e o mesmo acontecia em Bagdad, na época dos grandes califas abássidas. Mas havia também milhares de escravos africanos em trabalhos mais penosos: na exploração das minas de sal, de alúmen e de cobre do deserto do Sara; nas grandes explorações agrícolas em vários pontos do império, como era o caso das planícies pantanosas do Tigre e do Eufrates; nos estaleiros da construção naval ou como remadores nas galés de combate». In Arlindo Manuel Caldeira, Escravos e Traficantes no império português, O Comércio Negreiro no Atlântico durante os séculos XV a XIX, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-478-9.

Cortesia EsferadosLivros/JDACT

sexta-feira, 1 de maio de 2015

História do Pudor. Jean-Claude Bologne. «São as autoridades que condenam os banhos nus, fecham os bordéis, regulamentam os gestos permitidos e os proibidos. Fácil é ver nesta oposição o resultado de tão diferente educação artística e do acesso ao segundo grau, que oculta…»

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Pudores individual e social.
«(…) Francamente paradoxal, por fim: uma mulher nua no século XVII pode ser mais púdica que uma mulher vestida. Paradoxo aparente, uma vez que o pudor feminino é então natural. Desde Plutarco que se repete que a mulher, quando tira a camisa, veste o pudor. Num Dialogue de la mode et de la nature de 1662, esta última acusa a sua interlocutora de ter tornado as mulheres de tal modo imperiosas e afectadas que nelas já se não reconhece qualquer traço de pudor. A afectação das preciosas, as mosquinhas, os ricos tecidos parecem muitas vezes mais perigosos que um decote um pouco audacioso. Tais as principais ciladas a evitar quando se quer fazer a história de um sentimento e não de uma palavra. Quando se lida com uma realidade por vezes confusamente sentida, há que preservar-lhe a espontaneidade, definindo-lhe rigorosamente o alcance.

Origens do pudor
A história de um sentimento só pode ser feita através da história de atitudes e de comportamentos. Mas estes são muitas vezes ambíguos. Deveremos pois penetrar previamente, para além do gesto e da reacção visíveis, nas motivações e nas mentalidades que lhes estão subjacentes. Na origem de comportamentos púdicos encontram-se muitas vezes realidades sociológicas que escapam à história. Assim, através dos séculos, registam-se pudores de classe social. As classes populares são em geral hostis ao nu artístico. As esculturas do Renascimento, florescem as de Miguel Ângelo, encontraram mais hostilidade junto do povo que entre as autoridades civis ou religiosas e vão ter que ser vestidas para serem expostas em fontanários ou praças públicas. No século XVIII, são os pequeno-burgueses quem mais se perturba com as pinturas indiscretas dos artistas da corte. Napoleão III exige que sejam expostas num Salão dos Rejeitados as obras censuradas pelo pudibundo júri do salão oficial e, ainda hoje, a censura popular é bem mais severa para com os filmes ousados do que a tesoura de Anastasia.
Inversamente, as classes dominantes, aristocracia e depois burguesia, mostram-se hostis ao nu quotidiano. São as autoridades que condenam os banhos nus, fecham os bordéis, regulamentam os gestos permitidos e os proibidos. Fácil é ver nesta oposição o resultado de tão diferente educação artística e do acesso ao segundo grau, que oculta com uma aura artística a mais provocatória nudez. A nudez de primeiro grau, a que o homem da rua adere com mais facilidade, sendo facilmente vulgar àqueles que se gabam de a ter ultrapassado. Em todas as épocas, enfim, a marginalidade fala a linguagem da nudez. A provocação é obra dos heréticos nos séculos de absolutismo religioso: adamitas, abelitas, turlupianos, abandonam a roupa e a religião oficial. Nos séculos da moral burguesa, os artistas, os hippies recebem o testemunho; num mundo cada vez mais industrializado, os naturistas confundem nudez com retorno à natureza. A história da nudez voluntária não interessa ao pudor, não mais que essa outra forma de meter entre parênteses o nu que é a arte erótica. Para o estudo, atenderei apenas às mentalidades partilhadas pelo maior número de pessoas, o que não impede que se consagre um apêndice aos principais movimentos nudishs que atravessaram a história». In Jean-Claude Bologne, Histoire de la pudeur, Olivier Orban, 1986, História do Pudor, Editorial Teorema, Círculo de Leitores, 1996, ISBN 972-42-1374-9.

Cortesia de CL/JDACT

sábado, 21 de março de 2015

Viagem ao Fundo das Consciências. A Escravatura na Época Moderna. Maria do Rosário Pimentel. «Na década de 1430-40, verificou-se mesmo uma fase de prosperidade, o número de arroteamentos aumentou e, a um ritmo variável de progresso e acalmia, mas também durante todo o século XVI»



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«(…)
Os escravos na sociedade portuguesa
Nos finais do século XIV e primeira metade do século XV, Portugal registava um índice populacional sujeito a variações frequentes, nas quais é notória uma certa mobilidade da população. Por seu lado, o estado da agricultura acompanhava de perto essas alterações, influenciando e sendo influenciado por esses ritmos populacionais. Das palavras de Rui Pina, na Crónica do Rei D. Duarte, pode deduzir-se que por ocasião da morte de João I, em 1433, à excepção de Lisboa, o país era escassamente povoado, razão pela qual o soberano foi transportado nos últimos momentos de vida para esta cidade, pois não convinha morrer em aldeias e desertos mas na mais principal cidade do reino. Por sua vez, o infante Pedro, em 1436, no concelho de Leiria, referia-se a Portugal como sendo um reino financeiramente pobre, insuficientemente povoado e arroteado, mediante o qual jamais seria possível povoar e explorar convenientemente as novas conquistas. No dizer de Costa Lobo, Portugal do século XV era um vasto matagal entressachado, afora algumas cidades e vilas, de pequenas povoações circundadas de breves arroteas. O Alentejo era na máxima parte uma brenha selvática. Para outros autores, o país estagnava no dourado sonho das vãs riquezas, de pouco ou mesmo nada lhe valendo os fumos da Índia.
É um facto que o desenvolvimento económico e o crescimento populacional, verificados em Portugal durante o século XIII, sofreram uma contracção ao longo do século XIV e primeira metade do século XV, se bem que neste período se tivessem notado momentos de fluxo e refluxo económico. Todavia, o estado da agricultura em Portugal nos séculos XV e XVI não era tão dramático como à partida se poderia pensar, através dos testemunhos da época. Na década de 1430-40, verificou-se mesmo uma fase de prosperidade, o número de arroteamentos já verificados em anos anteriores aumentou e, a um ritmo variável de progresso e acalmia, continuaria não só na segunda metade do século XV, mas também durante todo o século XVI. Esta atitude denota bem o interesse da população na aquisição de novos espaços, o que leva a crer ter existido uma preocupação de aumento de produção face a um crescimento demográfico. Uma vez que o atraso das técnicas agrárias não permitia o desenvolvimento intensivo da agricultura, optava-se pela realização de culturas extensivas a fim de dar resposta às necessidades da populagão. Apesar disso, não se pode deixar de acreditar, de facto, na existência de um certo vácuo na população activa do reino, sobretudo nas zonas rurais. Fustigadas por maus anos agrícolas, fomes, conflitos internos e por epidemias frequentes, as populações eram levadas a deixarem as terras onde habitavam e a tentarem a sorte noutras regiões. Sobretudo após os anos em que a peste negra deflagrou, associada a outros factores, intensificou-se a falta de gente nos campos, provocada não apenas pelas elevadas taxas de mortalidade, mas também devido à movimentação populacional e à mobilização dos efectivos para a guerra.
Ao longo dos séculos XIV e XV, tornaram-se frequentes as migrações do campo para a cidade, onde a existência podia ser mais cómoda, sobretudo se os indivíduos se conseguissem inserir no sector comercial ou artesanal urbano. A cidade oferecia mais oportunidades e possibilidades de resistir. A miragem de grandes e fartas riquezas também devia ter exercido uma forte atracção sobre essa gente que se dirigia às cidades em busca de trabalho e melhores condições de vida. Daí partiam à aventura, recrutados para as empresas marítimas ou emigrados com destino à Índia, às possessões espanholas, ou à vizinha Espanha, na ânsia de melhor sorte. Porém, o seu prémio não foi muitas vezes além da miséria e da mendicidade. Aqueles que possuíam algo de seu, mas que era insuficiente para a sua subsistência, optavam frequentemente por se colocarem sob a protecção de um convento, por servir em grandes casas senhoriais ou entregavam-se ao exercício das armas, timbre de nobreza, o que em parte ia ao encontro das tendências nobiliárquicas de um certo sector da sociedade. Dentro das regiões rurais, inclusive, havia mobilidade populacional, em especial das zonas menos férteis para as mais férteis ou melhor localizadas ou, então, para áreas onde os trabalhos à jorna eram mais lucrativos devido à falta de braços e à abundância de terras. Os arroteamentos, os parcelamentos, a compra e venda de propriedades, a procura de novas fontes de rendimento para a economia rural, a opção pelo trabalho à jorna, são atitudes sintomáticas não apenas de uma mudança económica, mas igualmente de uma transformação a nível social. Por mais variados que se apresentassem os índices demográficos, é detectável no campesinato a tendência para uma certa mobilidade. O camponês ia adquirindo a liberdade de se poder movimentar de umas para outras regiões, consoante os seus interesses, sobretudo em épocas em que a falta de mão-de-obra ou o imperativo de certas tarefas (lavras, sementeiras e colheitas), levava à subida do preço da jorna. Nessas alturas intensificavam-se as movimentações de trabalhadores e, inclusivamente, era frequente a quebra de contratos.
A existência destes assalariados não excluía a mão-de-obra escrava, moura ou cristã, quer nos serviços agrícolas, quer nos domésticos, ou mesmo em ofícios artesanais. É conhecido o caso de Fernando Perez, senhor territorial e fundador de São Paulo de Almaziva, que em 1220 possuía mancebos a quem pagava soldada e também dispunha de caseiros fixos, morando nas terras do domínio, para além de oito mouros e uma moura com um filho, que possivelmente constituíam mão-de-obra escrava. Dois destes servos eram artesãos; havia, ainda, um vinitor e hortelão, um colmeiro, um alfageme e um forneiro. Também o chantre Pedro Martins, no seu testamento de 1322, deixou uma serva com um filho ao serviço de uma freira de Celas, e uma ancilla que, depois de servir outra pessoa, ficaria, por morte desta, em liberdade. Segundo o estudo O baixo Mondego nos finais da Idade Média, de Maria Helena Cruz Coelho, os escravos no século XIV destinavam-se em especial aos trabalhos domésticos e a serviços nas reservas senhoriais, concluindo que por esta altura não era com servos que se cultivavam os campos, mas com homens livres que se lhe dedicavam, cumprindo cláusulas contratuais ou a troco de uma retribuição pelos seus dias de trabalho». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.

Cortesia de Colibri/JDACT

Viagem ao Fundo das Consciências. A Escravatura na Época Moderna. Maria do Rosário Pimentel. «Das regiões orientais vieram também escravos, uns enviados como presente, outros acompanhando os donos, a quem tinham sido entregues como forma de pagamento por serviços prestados…»

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Os Descobrimentos e o Tráfico de Escravos. Zonas de Resgate
«(…) Antonil refere que os poucos moçambicanos, existentes no Brasil, teriam lá chegado a bordo das naus regressadas da Índia. Mas, já na segunda década do século XIX, Tollenar, nas Notas Dominicais redigidas no Recife entre l816 e 1818, dá conhecimento da entrada naquele porto de alguns negreiros procedentes de Moçambique, que consideravam ter feito uma boa viagem quando as perdas não excediam 10% do carregamento. E, segundo o testemunho de Jerónimo Joze Nogueira Andrade, que em 1790 faz uma descrição do estado dos negócios de Moçambique nos finais de Novembro de 1789, aquela possessão africana exportava anualmente de 4 a 5 mil escravos ou mais, dos quais apenas 500 ou 600 eram tirados pelos portugueses. Talvez porque a extracção dos escravos da contracosta exigia investimentos mais avultados, ou porque as relações comerciais e administrativas de Moçambique se processavam mais intensamente com a Índia, os portugueses não foram tão motivados pelo comércio de escravos na costa oriental de África, como na parte ocidental. Esse interesse surgiu apenas nos finais do século XVIII e, de modo mais intenso, no século XIX.
A intensificação do tráfico em Moçambique é justificada, segundo Boxer, pela ambição de lucro que passou a ser mais facilmente satisfeita no século XVIII com o tráfico de escravos do que com o ouro e o marfim. Na verdade, os metais preciosos constituíam um comércio exclusivo da coroa e o marfim só podia ser comerciado mediante o pagamento de um direito suplementar. O ponto fundamental da sua estrutura económica passou então a ser o negócio de escravos e, entre os seus grandes consumidores, surgem as possessões francesas e inglesas. O período áureo da exportação para o Brasil coincidiu com a repressão do tráfico em Angola. Durante o século XIX o tráfico de escravos foi, praticamente, o grande recurso desta colónia. Andrade Corvo, nos Estudos sobre as províncias ultramarinas, escreveu que em Moçambique nenhum outro incentivo havia para a actividade e movimento nas transações comerciais, senão o odioso tráfico de escravo que chegou a tais proporções que de todo paralisou o desenvolvimento e obstou à civilização da colónia. De tal modo foi significativo que, por volta de 1812, o termo comum usado em todo o Oriente para designar um escravo africano era moçambicano.
Das regiões orientais vieram também escravos, uns enviados como presente, outros acompanhando os donos, a quem tinham sido entregues como forma de pagamento por serviços prestados. A importação de escravos dessas regiões para Portugal e suas colónias sofreu bastantes restrições desde cedo, talvez por motivos religiosos e também por razões utilitárias e mesmo estratégicas. Todavia, o facto da exportação para Portugal ter sofrido limitações não significa que também no Oriente os portugueses não tivessem utilizado o trabalho escravo. Com frequência se verificava que os portugueses que ali se encontravam, residentes ou não, tinham escravos e se serviam das redes de comercialização destes. Em 1561, o padre Jerónimo Fernandes observava que todos os anos iam a Malaca muitos navios carregados de negros e gente cativa, vindos de Java, Sunda, Sião, Pegu, China, Bornéu, Macassar, Timor, Solor, Bengala e de muitos outros reinos, alguns deles maiores que a Europa. As possessões espanholas do Pacífico eram então, em parte, fornecidas por mercadores e navios portugueses. Com esta finalidade, em 1612, foram ao porto de Manila sete veleiros provenientes de Macau e da Índia que, além de outras mercadorias, levavam também escravos. E de 1620 há a notícia de um navio que partiu de Malaca para Manila com um carregamento exclusivamente de escravos. Por último, é de referir que a exportação dos ameríndios, apesar de se verificar, nunca atingiu grande vulto. A sua escravização esteve também condicionada por motivos religiosos, além de que o Brasil, por si só, sempre apresentou uma grande procura de mão-de-obra servil, dirigindo-se para lá o grosso do tráfico de escravos português. Em meados do século XVIII, a legislação pombalina desviou mesmo o tráfico negreiro da metrópole para aquela colónia». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.

Cortesia de Colibri/JDACT

sexta-feira, 13 de março de 2015

História do Pudor. Jean-Claude Bologne. «Na linguagem preciosa, o pudor torna-se ‘o estigma da vergonha’ e as maçãs do rosto ‘os tronos do pudor’. Ao mesmo tempo, sob a influência do latim, o pudor transforma-se em sentido da honra. Aí está algo que serviria para resolver os dilemas…»

jdact e wikipedia

Pudores individual e social.
«(…) Afinal, é assim que se nos apresenta o pudor, como perpétuo combate entre instinto e razão, entre consciência e inconsciência, entre indivíduo e sociedade. Seria necessário estudar outros pares, muitos outros sentimentos vizinhos para o traçar perfeitamente. Em que difere o pudor da vergonha, da humildade, da modéstia, da timidez? Como se demarca o despudor da impudicícia? A título de hipótese de trabalho, definir-se-á o pudor como o sentimento que impede de realizar ou olhar uma acção (pudor corporal) ou a sua representação (pudor artístico) condenada por um código moral pessoal (pudibundaria) ou característica de uma dada época e lugar (pudor), Por respeito para consigo próprio (pudor) ou para com os outros (decência).

As palavras e a história
O pudor, para o etimologista, nasceu no século XVI. A história do sentimento, porém, não se reduz à da palavra, por um lado, porque havia pudor muito antes de haver o nome, por outro, porque o próprio termo, quando apareceu, designava frequentemente outra coisa. Há que saber, portanto, que palavras, que hoje designam sentimentos muito diferentes do pudor, podem substituí-lo nos textos antigos que teremos que citar. Na Idade Média, nojo e vergonha, são as mais correntes. Quando Chrétien de Troyes evoca uma rainha envergonhada como donzela, é ao pudor feminino que faz nitidamente alusão. No século XVI, com o gosto de associar sinónimos, a parelha sem vergonha e sem pudor invade as páginas e é por vezes difícil separar um de outro dos sentimentos. No século XVII, a modéstia faz furor entre as mulheres, enquanto os homens se contentam em ser decentes, civis, honestos (ou, o que, hélas!, é mais frequente, indecentes, incivis e desonestos). Pudor e pudicícia, estão ainda mal separados e ambos significam ainda castidade. São os primeiros dicionários que dão o sentido actual ao pudor (boa vergonha, honesta vergonha) e à pudicícia (acepção sexual). O pudor-castidade fica então enfeudado à modéstia soberana: esta tem particular cuidado com o pudor: não basta dizer que lhe põe pregas no corpete e o veste de saias compridas? O termo modéstia corresponde aqui ao sentimento moderno de pudor.
Na época em que vergonha podia designar pudor, o pudor, por sua vez, podia designar vergonha... O que não conserta lá muito bem as coisas. Se o francês antigo não conhece a palavra, o latim medieval conserva toda a família dos derivados de pudor. Pudenda, pudor, designam ainda os órgãos vergonhosos; impudicus, designa o maior, o mais indiscreto dos dedos da mão. Nas suas poesias, os goliardos atacam impudenter (vergonhosamente) a corte romana. E esta acepção irá manter-se até ao século XVII. Na linguagem preciosa, o pudor torna-se o estigma da vergonha e as maçãs do rosto os tronos do pudor. Ao mesmo tempo, sob a influência do latim, o pudor transforma-se em sentido da honra. Aí está algo que serviria para resolver os dilemas de Corneille. Rodrigo, ao vingar o pai, dá provas de pudor; mas tem vergonha de ter matado o pai de Ximenes, é o seu pudor a manifestar-se de novo...
Surpreendente: do século XVI para o século XVII, pudico e decente aplicam-se tanto a actos como a sentimentos. Joana de Navarra será declarada impudica por Brantôme por se ter casado quatro vezes; o novo casamento de Ogine, para Pasquier, é coisa de muita vergonha e pudor: não instituiu Deus o casamento por pudor, vergonha, honesddade? Em 1792, quando as execuções à pressa exasperavam o público, o carrasco Sanson queixa-se dos entes .tranquilos, porque o público continua a querer decência. A guilhotina passa a ter a decência que convém a uma viúva». In Jean-Claude Bologne, Histoire de la pudeur, Olivier Orban, 1986, História do Pudor, Editorial Teorema, Círculo de Leitores, 1996, ISBN 972-42-1374-9.

Cortesia de CL/JDACT

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Chão de Sombras. Maria do Rosário Pimentel. Estudos sobre Escravatura. «Previa-se que a duração de uma viagem de Angola a Pernambuco, com condições favoráveis, fosse de trinta e cinco dias, à Baía quarenta e ao Rio de Janeiro cinquenta. Mas se o navio ficava preso nas calmarias equatoriais…»

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Aspectos do Quotidiano no Transporte de Escravos no Século XVIII
Do Sertão Africano à Costa Americana
«(…) Aí tudo lhes faltava. A alimentação continuava a ser má e insuficiente, fermentada pelo calor e pelo azebre das caldeiras de cobre em que era cozinhada. A água, escassa, era salobra, alterada pela má qualidade do vasilhame. A pouca ou nenhuma higiene, juntamente com o intenso calor e a humidade salitrosa, ateavam as epidemias de que nem os marinheiros escapavam. O próprio ar, pouco ou nada ventilado, tornava o ambiente dos porões denso e pestilento; tal como a luz, entrava apenas pelas grades da escotilha, ou por uma ou outra fenda. Os capitães dos navios tinham consciência de quanto era prejudicial esta situação. Querendo de algum modo minimizar as perdas, mais por interesse do que por humanidade, entre outras medidas, mandavam limpar e esfregar a coberta duas vezes por semana com vinagre e permitiam que os escravos, divididos em grupos, viessem a ferros até ao convés para receber ar fresco. Nessas ocasiões, davam-lhes uma porção de aguardente e, para os obrigarem a fazer algum exercício mandavam-nos cantar e dançar. Recomendavam à tripulação, igualmente, que nos dias quentes e calmos, se prendesse no cesto da gávea uma manga de pano que, passando pela grade da escotilha, renovasse o ambiente. Todas essas providências eram, no entanto, esforços que na prática se revelavam inúteis para afastar o ar doentio e travar o avanço das epidemias que os alimentos estragados, a ardência do clima e a imundície favoreciam.
Previa-se que a duração de uma viagem de Angola a Pernambuco, com condições favoráveis, fosse de trinta e cinco dias, à Baía quarenta e ao Rio de Janeiro cinquenta. Mas se o navio ficava preso nas calmarias equatoriais, o percurso até ao Recife podia durar cinquenta dias. Quanto mais longas fossem as viagens, piores se tornavam. As embarcações que iam da Guiné e da região de Daomé para a Baía beneficiavam de viagens mais rápidas. Nas das outras regiões, que de preferência se dirigiam para o sul do Brasil, os escravos padeciam a mais longa, cruel e mortífera travessia do oceano, a que provocava mais vítimas e maiores tragédias. Elias Corrêa descreve a experiência que viveu na sua viagem para o Rio de Janeiro em que os mantimentos e a aguada embarcados foram de tal modo preteridos ao embarque de um maior número de escravos que, ao vigésimo dia de mar, já só era distribuída meia ração de água, chegando a situação ao ponto de se recusarem os remédios aos doentes pela sua falta. Quando aos sessenta dias de viagem se avistou terra, foram obrigados a aportar à capitania do Espírito Santo por falta total de mantimentos. Todavia a farinha de pau comprada neste porto para suprir a que o navio deixou de embarcar, estava tão podre e cheia de bicho que causou uma epidemia terrível e muitas mortes.
Faleciam não só vitimados pelas doenças, mas também devido ao desespero em que se encontravam e que os levava na primeira oportunidade ao suicídio. Neste acto, acontecia arrastarem consigo para o mar os seus companheiros de ferros e, por vezes, até os tripulantes do navio, dando assim resposta ao desespero que os minava. O seu desejo de morrer era tão forte que, faltando-lhes outros meios, se recusavam a comer. Nestes casos, se mesmo depois de castigados mantinham a sua recusa, abriam-lhes a boca à força e obrigavam-nos a engolir os alimentos. Este procedimento dos escravos era acompanhado, com frequência, por manifestações doentias de carácter psicológico designadas banzo e apresentavam como principal sintoma uma nostalgia angustiante que, no dizer de Oliveira Mendes, constituía uma paixão da alma a que se entregavam e que so dão por extinta com a morte». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.

Cortesia de Colibri/JDACT

domingo, 26 de outubro de 2014

Chão de Sombras. Maria do Rosário Pimentel. Estudos sobre Escravatura. «… sórdida imundice dos únicos panos com que mal se cobrem, e enxugam no corpo depois que a chuva, o sereno e o suor os molha; exalam um hálito insuportável cujas partículas envolvidas se juntam ao odor da transpiração…»

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Aspectos do Quotidiano no Transporte de Escravos no Século XVIII
Do Sertão Africano à Costa Americana
«(…) E era aqui, continua o autor, neste asquerosíssimo charco acrescentado continuamente com os excrementos da mesma infeliz gente, que se conservavam os escravos até serem comprados pelos capitães negreiros. No litoral, a alimentação do escravo, apesar de lhe adicionarem o sal necessário, que aí existia em abundância, continuava a ser escassa e de má qualidade. Só a fome os obrigava a comer uma refeição feita à base de farinha ou mandioca podre ou cheia de mofo, de milho e feijão corruptos, aos quais era adicionado, por vezes, algum peixe salgado já velho e fedorento. Os negociantes, esperando a todo o momento a venda dos escravos, recusavam-se a gastar dinheiro com eles.
Mal alimentados, mal vestidos, torturados, sem cuidados médicos ou de higiene, pois apenas lhe era permitido irem em lotes lavarem-se ao mar, assim permaneciam por tempo indeterminado, acabando grande parte por morrer. Oliveira Mendes salienta, a este propósito, que a Luanda chegavam todos os anos cerca de dez a doze mil escravos, dos quais só eram transportados para o Brasil cerca de seis ou sete mil. Todos os outros acabavam por perecer, vitimados pelo cálculo económico dos negociantes, que preferiam vê-los morrer a despender algum dinheiro e a ter certos cuidados com a conservação da sua saúde.
Quando os negreiros se apresentavam para o negócio, a situação alterava-se ligeiramente. Nessa ocasião, os escravos eram sujeitos a um minucioso exame por parte dos compradores, que não se deixavam facilmente influenciar pelas qualidades apregoadas por quem os vendia. Procuravam assegurar-se da origem dos escravos, idade, condição física, temperamento e carácter, factores importantes que podiam determinar decisivamente os preços. Faziam-nos correr, saltar, gritar; examinavam-lhes os dentes, os olhos, os músculos e órgãos genitais; observavam-lhes as atitudes e provocavam-nos com violência para descobrir se o ânimo correspondia às aparências. Tudo exigia uma observação atenta, porque os vendedores usavam de toda a astúcia para alterar estes dados a seu favor.
Neste sentido, com o objectivo de lhes melhorar a aparência e impressionar o comprador, nos dias que antecediam a venda, os mercadores aumentavam-lhes a ração; esfregavam-nos com óleo de palma, que os tornava mais negros e luzidios; aos que já tinham barba, escanhoavam-nos bem e, como último ardil para os encarecer, friccionavam-lhes o rosto com pedra-ume, de modo a deixá-lo macio como se fossem imberbes. Sem o menor vestígio de barba à vista e ao tacto, restava aos peritos negreiros recorrer ao processo de passar a língua pelo rosto dos negros, procurando assim detectar o que, de outra maneira, lhes escaparia. Por processo semelhante, através do sabor do suor, tentavam descobrir se o escravo tinha ou não contraído determinadas doenças.
A escolha estava feita. O escravo dava entrada no barracão do traficante onde iria esperar o momento de embarque. Na altura do pagamento dos direitos a que esta transacção estava sujeita, sofriam nova marcação a fogo, no lado direito do peito, representando as armas do rei e do país a que passavam a pertencer. No peito, do lado esquerdo, no braço ou na perna, podiam ainda sofrer outra marca com o sinal do senhor que os negociava e transportava para o Brasil. Era um processo dolorosíssimo, feito com instrumento de prata incandescente, que se pressionava sobre papel engordurado na zona do corpo pretendida. A carne inchava com dor intensa e o estigma surgia em relevo para toda a vida.
Seguia-se o embarque com destino aos seus novos presídios de além-mar. Porém, antes de embarcarem recebiam o baptismo em conjunto, com um hissope, muitas vezes já na praia, sem a mínima compreensão do que se estava a passar, pois a pressa de partir não permitia uma catequização conveniente. Falavam-lhes apenas de uma nova terra pertencente aos portugueses onde iriam aprender as coisas da Fé. E posto este cuidado, suficiente para sossegar a consciência cristã dos capitães negreiros quando mais tarde começassem a atirar cadáveres ao mar, procedia-se à passagem dos cativos para o navio. Era um momento difícil, em que os negros, atormentados pela imaginação e pelo afastamento da costa, tentavam, num último esforço, libertar-se, procurando à custa de contorções desequilibrar as almadias ou, no momento em que subiam para o barco, aproveitar qualquer movimento em falso.
Embarcados em número muito superior àquele que o navio deveria transportar eram amontoados na coberta ou sob a escotilha, mal se podendo mexer. O franciscano italiano Carli, que viajou a bordo de um desses navios carregado com 680 escravos, registou que iam cruelmente acumulados num espaço exíguo e imundo, onde homens e dejectos se misturavam de tal modo que o calor e os odores tornavam o ambiente intolerável. E Elias Corrêa refere-se à sórdida imundice dos únicos panos com que mal se cobrem, e enxugam no corpo depois que a chuva, o sereno e o suor os molha; exalam um hálito insuportável cujas partículas envolvidas se juntam ao odor da transpiração de corpos enfermos, criando uma atmosfera onde se respira a morte que os acomete e derruba com vontade. A caridade desaparece e a sepultura é a obra de misericórdia mais ampla que se lhes administra». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.

Cortesia de Colibri/JDACT

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Viagem ao Fundo das Consciências. A Escravatura na Época Moderna. Maria do Rosário Pimentel. «Igualmente nas bulas, os pontífices referiam-se aos escravos em geral, como sendo ‘de Guiné’. Não é de admirar que fossem classificados ‘de Guiné’, quer o trato quer os escravos, uma vez que nesta região se centralizava todo o comércio»

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Os Descobrimentos e o Tráfico de Escravos. Zonas de Resgate
«(…) No entanto, a maioria dos escravos que entrava em São Jorge da Mina, provinha da ilha de São Tomé que desempenhava as funções de posto intermediário do tráfico de escravos oriundo de Benim e do Congo. Só inicialmente este tráfico se fez directamente daquela procedência para São Jorge da Mina. Segundo Valentim Fernandes, por volta de 1506 já se concentravam em São Tomé cerca de 5 000 a 6 000 escravos destinados à exportação, para além dos que estavam ao serviço dos colonos. A ilha de São Tomé era um grande armazém de escravaria no Atlântico, que funcionava não só como depósito dos que vinham da costa de África, mas também como local de procriação. Esta grande área que englobava a Guiné, com a região de Daomé e adjacências, teve uma importância extraordinária no tráfico de escravos. A prová-lo estava a designação genérica de Guiné para todos os escravos desembarcados em Portugal ou no Brasil durante o século XVI, independentemente de pertencerem à parte superior ou inferior da linha equatorial. Igualmente nas bulas, os pontífices referiam-se aos escravos em geral, como sendo de Guiné. Não é de admirar que fossem classificados de Guiné, quer o trato quer os escravos, uma vez que nesta região se centralizava todo o comércio. No entanto, outra zona da costa ocidental africana, o reino do Congo, incluindo a região de Angola, veio a revelar-se de extraordinária importância para este comércio. Aí se desenvolveu o tráfico escravista, desde o início do século XVI. Quando em 1512, Simão Silveira foi enviado ao Manicongo, ia incumbido de explicar a Afonso do Congo que o entendimento estabelecido entre os dois reinos levava a que as naus não partissem dali de porões vazios, isto é, sem escravos, marfim ou cobre. Mas foi sobretudo no último quartel de quinhentos, que se deu o grande incremento do comércio escravista daquela região, em parte devido à guerra desencadeada pelos holandeses e ingleses, o que obrigou a deslocação do tráfico cada vez mais para sul. Aqui, sem concorrentes estrangeiros, os produtos eram mais baratos do que na costa da Guiné, de onde os portugueses tinham sido expulsos pelos holandeses e suplantados pelos ingleses. O centro do comércio passou então da costa da Guiné para o reino banto do Congo e, após a fundação de São Paulo de Luanda em 1575, para o reino de Angola, que mais tarde incluiria Benguela.
Segundo Abreu Brito, de 1575 a 1587, saíram da feitoria de Luanda 31 922 peças de escravatura, ou seja, em média 2 660 por ano, e, nos quatro anos de 1587 a 1591, foram embarcadas 20 131, numa média anual de 5 032. A exportação continuou a crescer prodigiosamente durante o primeiro quartel do século XVII e, em 1680, Cadornega calculava em 8 000 ou l0 000 os escravos que anualmente saíam daquela região, perfazendo assim a soma de um milhão de almas subtraídas a Angola durante os primeiros cem anos de contacto com os europeus. Indubitavelmente, a maioria dos escravos provinha da África ocidental, uns recolhidos nos mercados principais, outros nas zonas secundárias de comércio; alguns vinham da África oriental, mas o tráfico proveniente desta costa não foi relevante até ao século XIX. Como já foi referido, o tráfico era aí conhecido desde longa data, sendo a ilha de São Lourenço (Madagáscar) um grande depósito de negros a que árabes e indianos recorriam na própria procura de escravos. A Abissínia era outro grande reservatório que fornecia as regiões orientais. Os escravos abexins, na generalidade muito estimados pelos mouros, eram feitos cativos quer pelos árabes do litoral, quer pelos cristãos, que de seguida os vendiam aos mouros.
Inicialmente, este comércio humano da costa oriental africana destinou-se, sobretudo, ao Oriente. Só muito mais tarde passou a fornecer também mão-de-obra escrava às potências estrangeiras. Não significa isto, porém, que não tivessem vindo escravos daquela região para Lisboa e, até, ocasionalmente para o Brasil onde, de entre todos, eram os menos apreciados. Independentemente deste facto, a extracção de escravos de Moçambique para a América era pouco compensadora devido à morosidade da viagem. No entanto, é possível que o poderio estrangeiro ao longo da costa ocidental africana, principalmente a dominação holandesa em Angola, tenha ocasionado uma intensificação da procura de escravos na contracosta. Em 1644, Gaspar Pacheco e Gonçalves Magriço solicitaram autorização à corte para irem do Brasil a Moçambique negociar escravos. Em sua opinião, caso fossem bem sucedidos, outros mercadores lhes seguiriam o exemplo e um novo mercado escravista se abriria então para o Brasil. Contudo, parece que não tiveram êxito com este intento, pois em 1709, José Seixas Borges, ao requerer idêntico pedido, dizia não ser usual irem embarcações resgatar àquele porto e, por esse facto, punha em dúvida o resultado final do empreendimento». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.

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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Chão de Sombras. Maria do Rosário Pimentel. Estudos sobre Escravatura. «As horas de sono eram passadas numa modorra constante sob os gritos dos guardas que os acordavam com receio de algum levantamento, sugestionados de que os escravos conheciam uma erva capaz de amaciar e estalar o ferro das prisões»

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Aspectos do Quotidiano no Transporte de Escravos no Século XVIII
Do Sertão Africano à Costa Americana
«(…) Alguns dos escravos que se encontravam presos no interior já estavam a ferros há muito tempo, por vezes anos a fio, à espera de quem os comprasse. Era grande a sua angústia e, quando as caravanas dos mercadores chegavam, manifestavam-se apreensivos quanto à sorte que os esperava. Testemunha Mungo Park, explorador inglês integrado num desses comboios, que eles olhavam os traficantes com horror e insisentemente perguntavam qual o destino dado aos escravos que passavam a água salgada. A firme persuasão em que estavam, de que os brancos compravam os negros para os comerem ou para os venderem a outros que os comiam, fazia com que olhassem com incrível pavor a viagem. A sua perturbação era grande e os mercadores, receosos de alguma fuga, revolta ou suicídio, mantinham-nos constantemente presos.
A medida que os iam comprando, agrilhoavam-nos dois a dois a uma corrente que, embora muito devagar, lhes permitia caminhar. Para maior segurança, dividiam-nos, depois, em grupos de quatro, que acorrentavam pelo pescoço. E à noite prendiam-lhes ainda as mãos com argolas de ferro. Aos menos submissos, destinavam um grosso cepo onde ficavam presos pelas pernas ou, então, um tronco de madeira, aparelho que abria pelo meio, fechava com forte argola de ferro e tinha orifícios escavados por onde podiam passar o pescoço, os braços ou as pernas dos escravos, mantendo-os imobilizados.
Ao acto da compra, seguia-se a primeira marcação, com ferro em brasa, que lhes imprimia o sinal do mercador para poderem ser reconhecidos em caso de fuga. E quando o número de escravos era já suficiente, iniciava-se a penosa marcha em direcção ao litoral, que poderia durar largos meses. Os escravos caminhavam acorrentados, com o braço direito preso nos anéis dos libambos e o pescoço entalado nas gargalheiras de ferro ou na forquilha das prisões de pau e correias entrelaçadas. A cada passo, os mais resistentes arrastavam consigo aqueles a quem já iam faltando as forças. E se, sob a vigilância atenta dos guardas, o andamento abrandava, ou se alguém se recusava a prosseguir, a autoridade do chicote anunciava que era necessário continuar e que só a morte dali os podia libertar.
Às costas levavam o carapetal, saco que continha a ração que o mercador lhes destinava até chegarem a outro presídio, onde de novo se abasteciam. O sal, por ser pesado, faltava na alimentação, tornando-a insípida e desagradável. Como também faltavam a pimenta e o azeite, condimentos tão a seu gosto; comiam somente para não morrer. A escassez aliava-se o mau estado dos alimentos, comprados já deteriorados, o que os tornava mais baratos, e a sua má confecção, uma vez que tudo era cozinhado à pressa, apenas aferventados em função do tempo do mercador e da distância a percorrer. A água, só a bebiam quando se aproximavam dos charcos e lagoas. Por cama tinham o chão e as próprias folhas das árvores nem a todos protegiam da cacimba que continuamente caía durante a noite, ensopando o único vestuário que possuíam ou o que dele restava. Uma fogueira era o seu único conforto, porém, insuficiente para atenuar os efeitos nefastos do orvalho e da falta de vestuário, que estavam na origem de muitas das enfermidades de que padeciam. As grandes febres chamadas carneiradas, atribuídas aos efeitos da cacimba, eram significativas pela maneira como se propagavam e dizimavam os escravos em poucos dias.
As horas de sono eram passadas numa modorra constante sob os gritos dos guardas que frequentemente os acordavam com receio de algum levantamento, sugestionados pela crença de que os escravos conheciam uma erva capaz de amaciar e estalar o ferro das prisões. Chegavam aos portos marítimos já muito debilitados. Eram, então, permutados pela segunda vez. No entanto, os comerciantes continuavam a mantê-los presos com as mesmas correntes com que tinham viajado, ou fechavam-nos em pátios de altas paredes e devidamente apetrechados com correntes de ferro, argolas encastoadas, cepos de madeira e grilhões. À noite, tinham agora o privilégio de um telheiro ou armazém térreo, mas tão imundo que o cheiro que exalava, segundo o médico setecentista Francisco Damião Cosme, até fazia delíquios e vómitos a quem passasse defronte». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.

Cortesia de Colibri/JDACT