terça-feira, 31 de março de 2020

No 31. O Tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668). Joaquim Veríssimo Serrão. «… ter pertencido a dona Catarina, duquesa de Bragança. Como filha do infante Duarte, a ela cabia de justiça o trono de Manuel I, pelo que a invasão de Filipe II violara…»

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Guerra e diplomacia
«(…) Essa primeira vitória foi de molde a animar os Portugueses, já que a Espanha estava mergulhada na Guerra dos Trinta Anos e não poderia de momento desviar mais tropas para a nossa fronteira. Tal circunstância permitiu apenas a vigilância nos castelos da raia, enquanto se reorganizava o exército com o material de guerra vindo de França para os aprestos da defesa. Assim decorreram mais de dez anos, até que, na regência de dona Luísa Gusmão, a paz dos Pirinéus, em 1659, permitiu o fim da longa guerra entre as duas coroas pirenaicas. Foi então, como veremos adiante, que Filipe IV organizou vários exércitos para tentar, sem êxito, pôr termo à Restauração.
No campo diplomático contou João IV com embaixadores e agentes de alta craveira: uns de ascendência nobre, para impor no estrangeiro a valia dos seus títulos; outros, que serviram de secretários, eram letrados e juristas oriundos da Universidade de Coimbra; outros, enfim, religiosos de formação, mormente da Companhia de Jesus, que revelaram dotes de bons negociadores. Alguns nomes podem ser referidos: o padre Inácio Mascarenhas, que obteve na Catalunha um tratado de aliança e auxílio em homens e em armas para o primeiro ano da Restauração; o monteiro-mor, Francisco Melo, que conseguiu em França um tratado de amizade e a vinda de oficiais e soldados; e Antão Almada, que alcançou em Londres reatar a velha aliança para efeitos de defesa mútua.
Mas não foram menos notáveis outras missões diplomáticas. Na Holanda, apesar da ocupação flamenga de uma parte do Brasil, conseguiu Tristão Mendonça Furtado assinar uma trégua por dez anos e obter navios para a defesa marítima de Portugal. Também com a Suécia e a Dinamarca conseguiu Francisco Sousa Coutinho tratados de amizade e de comércio. Mais difíceis foram as negociações com a Santa Sé, onde a influência política da Espanha se opôs, durante muitos anos, aos direitos de João IV. As relações luso-romanas chegaram a conhecer períodos de grande tensão, em virtude de o papado não querer reconhecer a causa da Restauração, nem prover as sés vagas no Reino. Apenas em 1669, no pontificado de Clemente IX, se modificou a atitude romana para com Portugal.

O Direito e a Restauração
O direito exerceu um contributo notável para a defesa da dinastia nova. Impunha-se demonstrar que em 1580 a coroa devia, pelo benefício da representação, ter pertencido a dona Catarina, duquesa de Bragança. Como filha do infante Duarte, a ela cabia de justiça o trono de Manuel I, pelo que a invasão de Filipe II violara os foros autênticos do Reino. A partir desta base ilegal, o governo dos três Filipes podia ser considerado como ilegítimo e não aceite pela consciência dos Portugueses. O 8º duque de Bragança limitava-se, pois, a exercer o princípio jurídico que era pertença da mais antiga casa senhorial do País. O papel dos jurisconsultos de 1640, como Francisco Velasco Gouveia, João Pinto Ribeiro, António Pais Viegas e António Sousa Macedo, defendia assim o argumento da restituição da coroa a João IV.
Outro grupo actuou por caminho diferente nessa política destinada a justificar a Restauração. Baseava-se no princípio da alienação do poder, que permitia aos povos expulsar os monarcas que haviam desrespeitado o pactum subiectionls assinado com os súbditos. Nesta acepção, a soberania não era pertença dos reis, que apenas a exerciam por obra de um pacto natural: detinham eles o poder in actu, enquanto o povo o recebera in habitu. A doutrina fora sustentada pelo jesuíta Francisco Suárez, o célebre Doctor Eximius, que iluminara com a sua docência a Universidade de Coimbra. Assim sucedera com os três reis estranhos, o que legitimava a acção do povo ao sagrar pela força do direito natural a realeza de João IV.
Os nossos diplomatas tiveram de defender estes princípios nas várias missões que os levaram ao estrangeiro. Contra a corrente espalhada pela Espanha, de que o duque de Bragança cometera um acto de rebeldia e não passava de um usurpador, foi preciso sustentar a razão de ser do movimento aclamatório, como a vontade de um povo livre que, ao longo de sessenta anos, jamais perdera o sentimento da autonomia. Tal facto permite também compreender por que motivo os secretários das embaixadas foram sempre juristas consagrados, na missão que lhes cabia de provar nas cortes europeias a força do direito que animara a Restauração». In Joaquim Veríssimo Serrão, O Tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668), Edições Colibri, Estudos Históricos, Lisboa, 1994, ISBN 972-8047-58-4.

Cortesia de Colibri/JDACT

No 31. Os Meninos Judeus Desterrados. Orlando Piedade. «Ela tinha mais ou menos a minha idade e foi a primeira a dar pela minha presença na cozinha indo, por isso, chamar o seu pai, o senhor Abner. Pai, ele está a chorar. Onde estarão os seus pais?»


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De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) Completamente ensonado, pernas e vozes trémulas, olhei para o alto, numa tentativa de alcançar o rosto daquele que não mais parecia senão uma torre perante os seus mais de cinco pés, devidamente encostado à minha insignificante estatura, empunhando um punhal. Ainda assim, senti um vento fraterno que chegou a misturar-
-se com o paterno... Estava quebrado o silêncio.
Vieram-me à memória os traços do meu pai. Devo confessar que não sei se aquela voz que me gritava ao ouvido era a dos relatos da minha irmã ou dos ecos da minha memória, a verdade é que, para todo esse drama, havia uma voz, um olhar, palavras e lágrimas que antes daqueles momentos dramáticos eu desconhecia. Naquele momento, a figura central era o meu pai, dada a presença daquele indivíduo, mas sentia a presença de todos: minha irmã, minha mãe e a minha avó.
Todas as histórias que eles contavam começavam da mesma forma, baseavam-se em terrores e angústias. Não consegui captar as primeiras palavras proferidas por aquela figura; apercebi-me de ele ter rumorejado qualquer coisa, mas parecia a reprodução fiel das últimas palavras da minha irmã. Procurava, de forma tão desesperada, ser bafejado com algum vento vindo do meu passado, uma leve brisa que me levasse a ter uma vaga ideia daquilo que fui, naqueles momentos em que nada me ocorria, para melhor perceber os acontecimentos presentes. Se calhar por isso, nada mais ouvia senão aqueles que sempre me foram queridos e me ofereceram a necessária segurança até ao fatídico dia.
Depois de ter vagueado sem norte, os meus seis anos em nada ajudavam para que alguma coisa fizesse sentido, senão o tão almejado conforto. Eu desesperava pelo consolo de alguém mas, ao mesmo tempo, desconfiava da minha própria sombra. Não sabia e nem podia saber de onde podiam surgir, outra vez, aqueles mesmos homens que tinham desmoronado a minha família. Nunca lhes cheguei a alcançar os rostos. As suas motivações, para mim, ainda eram dúbias, apesar do esforço da minha irmã. Barba eriçada, espessa e dourada, cabelo farto, olhos escuros e grandes, um xaile azul e branco em cima dos ombros, voz inflamada, mesmo própria de quem nasceu com o dom da oração, mas circunstancialmente suplantada, uma boca grande, o elemento mais marcante daquela face sisuda, que nem mesmo aquelas imponentes barbas conseguiam ofuscar, badalavam em movimentos verticais e reprimiam aquela corda vocal que não podia ir além dos atributos natos para se fazer ouvir mas, ainda assim, suficientemente vigorosa.
A minha tenra idade, o meu olhar escuro, triste e pujado de dó, a minha imagem dilacerada mas, ainda assim, a deixar transparecer alguma estirpe, conferiram-me alguns créditos mas nem por isso ele cedeu um mínimo sequer. Por instinto, fitei-o firmemente, antes de sentir o peso do pânico que se abateu sobre mim, da cabeça aos pés. As primeiras vítimas foram os meus braços que tombaram e se colaram ao meu tronco como um servo que obedece ao seu senhor. Deixei cair o meu olhar, desamparadamente, indo este estacionar junto aos meus pés descalços.
Nunca cheguei a saber o que terá passado pela sua cabeça naquele momento. Aquela postura serene, o olhar frio e cru que me foi servido como entrada povoava aquele pedaço de chão, onde os meus olhos se tinham estacionado. Podia ter passado pela minha cabeça esboçar uma fuga, mas para quê? Duas, três ou talvez quatro valas abertas no meu rosto serviam de curso para a corrente do meu pranto acrimonioso que arrastava camadas de poeiras aí alojadas. Depois de um olhar panorâmico e mais umas quantas espreitadelas, de modo a assegurar-se de que eu estava sozinho, estendeu o seu braço direito, agarrou-me no queixo e levantou-me a cabeça. Não há perigo, disse, ao mesmo tempo que acariciava o meu queixo com o seu polegar direito. Não te aflijas. Onde estão os teus pais?, prosseguiu. Ainda ensaiei a resposta mas não consegui mais do que soluços e lágrimas, misturadas com alguns murmúrios descoordenados e completamente imperceptíveis. Acenou com a cabeça, num gesto de compreensão, e agarrou-me pelo braço esquerdo agudizando ainda mais a minha dor. Espantado ficou quando libertei um grito, cuja espontaneidade fez lembrar quando se pisa a cauda a um cão distraído. Soltou o meu braço e olhou para a sua mão ensanguentada. Como quem não acredita nos próprios olhos, voltou a olhar, mas desta feita para ambas as mãos, como quem procura diferença entre elas. E havia! Dirigiu-se outra vez para mim, como se estivesse a dirigir-se à metragens, agarrou--me pelo braço enfermo, uma mão pelo sovaco e outra pelo pulso, rodou ligeiramente para tentar perceber a extensão do ferimento. Fitou a sua filha Alisah, que entretanto chegara, ordenando-lhe que se retirasse.
Ela tinha mais ou menos a minha idade e foi a primeira a dar pela minha presença na cozinha indo, por isso, chamar o seu pai, o senhor Abner. Pai, ele está a chorar. Onde estarão os seus pais? Ciciou ela ao ouvido do seu progenitor antes de se retirar. Terá sido abandonado? Prosseguiu. Como que abençoando a minha presença e iluminando os meus primeiros passos naquela casa, ele estendeu na minha direcção a sua enorme mão direita que abafou completamente a minha, num entrelaçar perfeito, com um sufoco incapaz de ensaiar qualquer dança, dada a perfeição da fusão. Não sei de onde terá surgido tão grande confiança, mas foi sentida com à vontade e deixei-me levar sem temores». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.

Cortesia de Colibri/JDACT

No 31. O Tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668). Joaquim Veríssimo Serrão. «… com o evidente fim de diminuir o papel de João IV, não merece hoje crédito, ainda que seja um facto a determinação que dona Luísa Gusmão pôs no movimento»

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A Guerra da Restauração
«(…) O rei João IV foi aclamado no dia 15 de Dezembro, abrindo a dinastia de Bragança. Foi notável o seu papel ao longo de dezasseis anos, pois soube manifestar uma prudência, muitas vezes concretizada em firmeza, que assegurou o triunfo da causa que nele se personificou. Muitos autores viram em João IV um tímido que apenas teria aceite a coroa por influência da duquesa dona Luísa Gusmão. As hesitações do marido teria ela respondido com a frase que a história celebrizou: antes rainha uma hora do que duquesa toda a vida. Mas esta versão da historiografia liberal, com o evidente fim de diminuir o papel de João IV, não merece hoje crédito, ainda que seja um facto a determinação que dona Luísa Gusmão pôs no movimento. Sendo oriunda da casa ducal de Medina Sidónia, poderia a rainha hesitar na grave opção ou aconselhar prudência ao régio consorte. Pelo contrário, deu o seu caloroso apoio à Restauração, unindo-se pelo espírito ao seu país adoptivo. Quanto ao monarca, soube estar à altura da confiança que nele depositaram os conjurados, identificando-se com os ideais da pátria que assim se tornava novamente senhora do seu destino.
Todo o Reino colaborou no grandioso esforço de que João IV foi o símbolo. Nas Cortes de 1641-1642 exigiram-se novas contribuições em dinheiro, que os três estados aceitaram. As cidades e vilas não olharam a sacrifícios para que a Nação pudesse vencer a grave ameaça. Mas de início não foi total a adesão ao novo monarca, pois nos meados de 1641 descobriu-se uma conjura para o assassinar. Eram seus cabecilhas o arcebispo de Braga, o inquisidor-mor, Francisco Castro, o conde de Armamar, o marquês de Vila Real e, sem provas de colaboração, seu filho, o duque de Caminha. Influenciados por alguns dos seus familiares que viviam em Madrid, deixaram-se arrastar para uma aventura contrária ao rumo natural da Restauração.
A diplomacia de Filipe IV fizera correr na Europa que João IV era rebelde, pelo que teria de sofrer o castigo da traição obrada contra a realeza filipina. Esta versão conquistou muitos exilados que em Espanha se opunham à Restauração. Descoberta a conjura, o monarca tornou-se implacável com os seus inimigos. Pagaram estes com a vida o crime de lesa-majestade em que se deixaram envolver. O jovem Miguel Noronha, duque de Caminha, sem ligação directa na revolta, sofreu as consequências de não haver denunciado o progenitor. O arcebispo bracarense e o inquisidor-mor foram presos na Torre de Belém, onde o primeiro veio a falecer e o segundo, em 1643, a ser perdoado. Por mais alta que fosse a progénie dos acusados, não podia ser diferente a reacção da coroa, a fim de pôr termo a outras tentativas que pretendessem enfraquecer o ideal da Restauração. A hora era de sacrifícios para o Reino e havia que assumi-los por inteiro.

Guerra e diplomacia
A defesa da Restauração orientou-se em dois grandes sentidos: a protecção militar das fronteiras e o envio de embaixadores para as principais cortes europeias. Por um lado, impunha-se reparar os castelos, organizar as tropas e obter armas para enfrentar a iminente invasão do País. Por outro lado, carecia João IV do reconhecimento das outras nações, solicitando os inimigos da Espanha (como a França e os Países Baixos) para a assinatura de tratados de comércio e de amizade. Tão importante como o papel dos militares foi o dos diplomatas, que, em circunstâncias muitas vezes adversas, sustentaram nas capitais da Europa os direitos da Casa de Bragança ao trono. A primeira grande acção militar da Espanha traduziu-se numa vitória para Portugal. Foi o caso de, na Primavera de 1644, se ter concentrado em Badajoz um forte exército para invadir o nosso país. Ao mal sucedido ataque contra Guguela respondeu Matias Albuquerque com uma incursão na Estremadura espanhola que devastou terras e obteve valiosas presas. No prosseguimento dessa ofensiva, Albuquerque derrotou o exército castelhano junto ao Montijo, a cinco léguas da fronteira, no dia do Corpo de Deus de 1644. Antes da batalha, o general exortou as tropas a cumprir o seu dever: no sucesso de hoje consiste a conservação de nossas vidas, a liberdade da nossa Pátria e a opinião da nossa monarquia. [...] A pelejar, valorosos portugueses, que o inimigo vem chegando! A pelejar, que é o mesmo que mandar-vos a vencer». In Joaquim Veríssimo Serrão, O Tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668), Edições Colibri, Estudos Históricos, Lisboa, 1994, ISBN 972-8047-58-4.

Cortesia de Colibri/JDACT

segunda-feira, 30 de março de 2020

A Sala das Perguntas. Fernando Campos. «Sacrifiquei os meus vinte anos a tratar do pai e dos irmãos. Agora, com trinta e cinco, não achas que é tempo de casar? ... e de ter filhos...»

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Enigma Alfa. 1501 - 1545
O que murmuram os canaviais
«(…) Herdou as saboarias paterna, mas não a provedoria, que o pai vendera para pagar dívidas. Casava assim a irmã Inês com um homem bem dotado e rico. Uma pontinha de inveja? Ana era mais velha que Inês e lá se quedava naquele casarão de Santarém, condenada a cuidar do pai viúvo e dos irmãos, sem a companhia da irmã nem da aia Maria do Céu que Inês levava consigo. Súbito reio o luto: Inês morria do parto do filho Francisco; o cunhado casava segunda vez, com uma prima dele, Filipa, de quem teve o filho Fruitos; falecida a segunda mulher, volta a contrair matrimónio, agora Isabel Vieira que se finou de peste sem lhe dar geração: e pela quarta vez com Isabel Gomes Limi que gerou cinco filhos: primeiro Rui como o pai, falecido ainda no berço, o segundo Manuel e depois Damião, Baltasar e Antónia. A aia ia ficando na casa a cuidar das crianças. Em mil e quinhentos e onze, Isabel viu-se viúva. Foi então que ao menino Damião, nascera em mil e quinhentos e dois como o príncipe João, recordava Ana, após o saimento do pai levou-o para a corte, ainda na idade do eixo e do pião, o meio-irmão Fruitos, a sugestão de el-rei de quem era moço da guarda-roupa. Aí vão os dois rapazes a entrar nos Paços da Ribeira. Largo e comprido corredor de portadas de vidro viradas ao terreiro e, ao fundo, às naus varadas no Tejo. Grossos tocheiros em castiçais dourados. A espaços certos, pesadas portas de carvalho polido e nos intervalos, em frente das portadas, grandes espelhos a beberem a luz e a espalharem claridade. Soam-lhes os passos nas lajes de mármore, os de Fruitos mais largos, os do irmão miudinhos. Na última porta dois archeiros fardados de librés com galões de ouro fazem sentinela. Na antecâmara vem recebê-los o guarda-mor: por aqui. Vais ver o senhor do mundo, segreda Fruitos ao ouvido do irmão.
O rei Emanuel estava sentado em cadeirão de espaldar, junto a uma mesa com papéis, a ditar suas cartas ao secretário. Ao vê-los, parou de ditar e ergueu o olhar para o menino. Damião arregalou os olhos de água. O rei sorria-lhe: aproxima-te. Beija a mão a Sua Alteza, disse-lhe Fruitos em voz baixa. Damião, num dobrar de joelhos, os olhos cheios de lágrimas, beijou a mão do rei. Estás espantado, moço? Nunca viste um rei? Que se passa com teu irmão, Fruitos? Senhor, nosso pai foi a enterrar. E ver-te agora…, a tua parecença com ele... Até eu, habituado a ti, estou torvado. Vá meu filho, disse o rei afagando a cabeça do menino, enxuga-me essas lágrimas. Serei para ti um pai, verás. Ana Macedo recordava estas coisa com o susto na alma e, quando Maria do Céu se preparava para ingressar num convento… Volta para Santarém, propõe-lhe. A nossa casa continua a ser a tua. Maria do Céu ripostava: mas, menina… Céu, estou sozinha, meu paizinho Deus o chamou, meus irmãos na Índia... Cá me soou que a menina vai casar…
Sacrifiquei os meus vinte anos a tratar do pai e dos irmãos. Agora, com trinta e cinco, não achas que é tempo de casar? ... e de ter filhos... Mais uma razão para lhe fazeres companhia. Recordaremos os tempos felizes e tu ajudas-me a tratar das crianças que nascerem… Quem é ele? Um cavaleiro-fidalgo chamado Simão Vaz. Vem. Contar-te-ei tudo quando estiveres comigo. Um dia, já casada, foram viver para Lisboa e por essa altura vira Ana o rei pela primeira vez e logo notara a extrema semelhança dele com o defunto marido da sua defunta irmã, que ambos Deus fosse servido de ter em sua glória, amém. Homem de boa estatura de corpo el-rei Emanuel, mais delgado que grosso, a cabeça sobre o redondo, cabelos castanhos, a testa desanuviada deles, olhos alegres, de um verde quase branco, alvo, semblante bem-assombrado, risonho nas covas da face e na comissura dos lábios, os braços carnudos, tão compridos que as mãos lhe passavam abaixo dos joelhos, as pernas proporcionadas ao corpo...
Tão enleada ficou Ana que nem atentava na pompa, atabales e trombetas com que el-rei cavalgava a caminho do mosteiro dos frades jerónimos que andava a ser edificado. Adiante, a perder de vista, ladeada de mocetões negros com varapaus nas mão, caminhava uma pesada ganga ou rinocerota. Seguiam-se cinco elefantes e, precedendo el-rei, um alazão, acobertado, em cujas ancas um caçador pérsio levava uma onça de montaria, que lhe mandara o senhor de Ormuz». In Fernando Campos, A Sala das Perguntas, 1998, Difel, 1999, ISBN 972-290-437-X.

Cortesia de Difel/JDACT

Caminho do Oriente. José Sarmento Matos e Jorge Ferreira Paulo. «Da mesma forma se autonomizou o vastíssimo património azulejar, desde finais do século XVI até à actualidade, numa investigação realizada por Luísa Arruda e que irá contribuir…»

Pormenor de pintura mural decorativa do Palácio dos Duques de Lafões, 1.ª metade do século XIX
Cortesia de wikipedia e jdact

Guia histórico I
A Oriente. A nossa cidade
Descobrir o Oriente
«(…) A partir da escolha do limite da Zona Oriental de Lisboa para implantação da Exposição Mundial de Lisboa de I998, impôs-se de imediato um olhar atento sobre uma área vastíssima da qual pouco ou nada se conhecia, quer na sua evolução histórica, quer quanto ao património de variada ordem nela existente. Com efeito, desde Júlio Castilho que os estudiosos olisiponenses privilegiaram o casco antigo da cidade intramuros, rareando por isso a informação trabalhada sobre a restante parcela oriental do concelho de Lisboa. Corno excepção destaque-se o trabalho isolado, mas precioso, de Ralph Delgado sobre os Olivais e um ou outro caso pontual de informação dispersa sobre algum edifício mais conhecido. Impunha-se, pois, partir do zero, tentando definir-se, por um lado, a unidade estruturante de uma zona da cidade, individualizando-se, por outro, os edifícios mais interessantes, (A Fortuna, painel de azulejos do início do século XVIII numa das capelas do claustro de Santos-o-Novo), quer na sua riqueza patrimonial e artística, quer nas informações históricas que podem fornecer.
Decidiram, assim, os responsáveis pela EXPO '98 iniciar imediatamente um levantamento patrimonial da Zona Oriental, cujos primeiros resultados se consubstanciaram na publicação do livro Lisboa, Um Passeio a Oriente, edição da Parque EXPO e do Metropolitano de Lisboa (1994). O carácter provisório da investigação então recolhida, ainda pouco aprofundada, não pareceu óbice para que essa leitura impressionista de uma realidade desconhecida desempenhasse a função primordial de chamar a atenção para uma riqueza insuspeitada pela maioria dos lisboetas, mesmo correndo-se o risco de se avançar com informação pontualmente provisória que, num caso ou noutro, felizmente poucos, a continuação do trabalho não confirmou. Mas o objectivo fundamental foi atingido. Através dos textos e do acervo fotográfico, tornou-se evidente a dimensão do que estava em jogo, criando-se as condições indispensáveis para que esse levantamento fosse prosseguido e alargado, integrado agora não numa mera acção de estudo historiográfico mas, sim, num programa mais ambicioso em que a componente de investigação se inseria num projecto de reabilitação e de animação de uma área específica da cidade.
O início do programa Caminho do Oriente em Novembro de 1996 veio criar as condições para se prosseguir a investigação sobre a Zona Oriental, impondo em simultâneo algumas limitações físicas do seu âmbito. Com efeito, ao restringir-se por razões de eficácia de meios o programa ao antigo percurso ribeirinho até Marvila, ficaram de fora importantes áreas, como Chelas, os Olivais ou parte da Estrada de Marvila, com prejuízo de uma visão mais ampla do conjunto mas permitindo, em contrapartida, a objectivação mais detalhada da investigação, estudando-se com maior rigor e pormenor a área efectivamente abrangida. No entanto, o relevo da zona do Vale de Chelas e a sua estreita conexão com o percurso em análise impôs que o mesmo fosse integrado no trabalho final, ainda que sob a forma sumária de um simples passeio. A dimensão do património e as características próprias da evolução da área em estudo condicionaram também as linhas do projecto de investigação e as suas balizas cronológicas. A história da Zona Oriental de Lisboa divide-se muito nitidamente em duas grandes épocas, separadas pelo rasgão físico que o caminho-de-ferro veio introduzir, criando as condições para o posterior desenvolvimento industrial.
Apesar de se terem já instalado algumas indústrias a partir da segunda metade do século XVIII, inicialmente com carácter quase exclusivamente manufactureiro, a tonalidade geral da zona mantinha-se essencialmente rural, com um ou outro pólo urbano rudimentar, como Santa Apolónia, Xabregas ou Marvila. Eram os conventos e as quintas que pontuavam e davam o tom ao sítio, profundamente ligado, assim, à estrutura social e económica do Antigo Regime. É sobre esse tecido muito específico que a industrialização se vai inserir, por vezes readaptando edifícios anteriores a novos usos, numa promiscuidade criativa que para sempre marcou esta parte de Lisboa e lhe concede no todo urbano um lugar à parte. Dado o carácter especializado da investigação sobre o período industrial, tornou-se indispensável o recurso a estudiosos credenciados, com métodos de trabalho e pistas de investigação autónomas. Solicitou-se, assim, a Jorge Custódio e a Deolinda Folgado a realização de um Guia do Património Industrial que abrangesse também a dinâmica social dos bairros operários e outros equipamentos dela emergentes. Da mesma forma se autonomizou o vastíssimo património azulejar, desde finais do século XVI até à actualidade, numa investigação realizada por Luísa Arruda e que irá contribuir para uma nova abordagem do azulejo de interior e de fachada, não só como elemento estético decorativo, mas também como pólo de uma actividade social e económica cuja importância na história da cidade tem sido pouco realçada». In José Sarmento Matos e Jorge Ferreira Paulo, Caminho do Oriente, Livros Horizonte, 1999, ISBN 972-241-057-1.

Cortesia de LHorizonte/JDACT

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «É hoje à noite que os outros virão juntar-se a nós. Onde é o encontro? Luís sugerira as casas em que, num dos pátios do hospital, se acolhem peregrinos e mendigos»

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O Sapateiro Santo
«(…) Porque dizes isso?, perguntou Telo. Com o fedor que vem de África, onde filhos e maridos apodrecem, os ventos começam a ser de devassidão..., sorriam-lhe os dentes sujos e acrescentava: se os maridos soubessem..., eh, eh, eh..., antes queriam continuar mortos... Levantaram-se, entraram pelas portas de Santo Antão e, pela rua que vai da estrebaria de el-rei, caminharam ao longo da muralha que descia de Santa Ana. Ficaram lá todos, disse Savachão. Até eles. Eles quem? Os cavalos. Repara, Telo, como está vazia a estrebaria. Temos agora ali boa palha para dormirmos. Telo comoveu-se: meu Senhor! Savachão enlaçou-o com o braço direito pelos ombros: amigo..., e, continuando a caminhar, acrescentou: vou estando habituado, mas quero ainda sepultar-me de vez, quando, daqui a dias, forem as minhas solenes exéquias nos Jerónimos. Esquecia-me de dizer-te informou Telo. É hoje à noite que os outros virão juntar-se a nós. Onde é o encontro? Luís sugerira as casas em que, num dos pátios do hospital, se acolhem peregrinos e mendigos. Junto às da roda e do criadoiro?, riu-se Cristóvão. Lá enjeitados somos nós, que nos enjeitámos a nós próprios, mas julgo que dispensamos amas cristãs e vacas leiteiras. João lembrou então os aposentos das corporações, onde se costumam reunir caldeireiros, bate-folhas, barbeiros... Mas Jorge considerou estes lugares demasiado próximos das gentes... Com razão. Deixassem com ele, dizia, que haveria de amanhar sítio resguardado. Onde? No boqueirão do Corpo Santo. Não estou a ver onde é. Ali adiante, passados os estaleiros da Ribeira das Naus, uma angustura cega de janelas, na babugem do rio. Para lá se dirigiram ao anoitecer e encontraram os quatro companheiros sentados num bote varado, preso a uma argola da parede. Ao verem chegar o rei, apearam-se e, desabituados, esboçaram a vénia, logo atalhados pelos gestos de Savachão: então, então! Ficavam calados, depois de tornarem todos a sentar-se no barco, interditos, sem saberem como se dirigir ao soberano. As vossas feridas são saradas?,  perguntou Savachão a quebrar-lhes a tolheição.
Savachão ainda anda de muleta ajudava Telo, mas é já só quase fingimento, que a perna vai melhor. Notícias?, perguntou o rei. Não sei como falar..., contigo..., adiantou Jorge. Vejo que Telo se acostumou. Fala. As feridas estão a cicatrizar..., e o resto... Bem, no maior dos segredos, conseguimos dinheiro e garantias de crédito junto de vários banqueiros estrangeiros... Podemos partir, sem necessitarmos de..., olhou para Savachão e Telo: de que tendes vivido? De esmolas, respondeu Telo. Telo é hábil, acrescentou Savachão, em deitar o barrete ao chão. A minha perna tem ajudado.
Tudo isso agora acabou, disse Cristóvão com raiva nos olhos. Não, amigos, não, ripostou Savachão. Por enquanto, na cidade e no reino, teremos de continuar a ser mendigos. Deixa-nos ao menos, disse Luís, arranjar-te cómodos condignos para dormires... Temos boa palha nas cavalariças vazias de el-rei, atrás dos muros... Olhou em redor a embarcação: este barco... Não o fretastes, não? Não, respondeu Jorge. Estava aqui amarrado. Sentámo-nos nele. Ostentar riqueza será mau neste transe. Quais são os teus planos?, perguntou João. Isto é uma violência e constante agravo de nossas qualidades, disse Cristóvão, ... quanto mais da tua. Calculo o que te vai na alma. Não tenho senão o que mereço. Até a morte seria alívio... Penso que devemos sair do reino...» In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

domingo, 29 de março de 2020

A Sala das Perguntas. Fernando Campos. «Não devia ter vindo, não devia ter vindo!, desabou Maria do Céu em soluços no ombro da patroa. Moveu-se o coração de Ana…»

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Enigma Alfa. 1501 - 1545
O que murmuram os canaviais
«A cangosta de ao fundo da quinta leva ao rio sem ponte, pensou a aia. Acaba ali junto aos canaviais. Não chiam carros de bois carregados de gigas com cachos de uvas nem os muares dos lenhadores tiram carroças pejadas de madeiros. Não vêm para aqui embeber-se olhos nos olhos, arrenegando a morte, nem dar beijos furtivos os namorados de sangue impaciente. Escolherei um sítio ermo, onde ninguém passe, decidia-se Maria do Céu. Pôs o lenço preto pela cabeça, atou-o sob o queixo e ia a sair sem dizer nada... Aonde vais, Céu?, perguntou-lhe Ana Macedo suspendendo o bordado no bastidor. Havia dias já que sentia na velha aia grande inquietação: às vezes ela aproximava-se, o olhar angustiado, a boca quase a abrir-se, e calava-se. Que tens, mulher? Para quê esse
sacho?
Vou enterrar os gatinhos. A ninhada foi tamanha... Afoga-os no poço. Num saco com pedras. Têm sete fôlegos, disse desaparecendo porta fora. Tinham sete fôlegos! Tanto tinham sete fôlegos debaixo de água como debaixo de terra. Pousou o trabalho. levantou-se do escabelo e foi-lhe na peugada. Viu-a esgueirar-se lá adiante pelo portão da cortinha. Seguiu-a de longe, topou-a a caminhar açodada vereda abaixo em direcção à ribeira. Aonde vai o dianho da mulher? Boa meia légua andada, o caminho estacava junto às águas, tão serenas que ao pé dos junços nadavam alfaiates. Soava que em noites de ventania desferiam ali os pinhais o cântico de uma moira encantada. Nem vivalma, mas de detrás das canas vinha som de cavadas. Contornou a moita. Hei-de saber. A aia, cle bruços, abria um buraco e, ao ouvir passos, virou-se, largou desolada o sacho: ai, minha ama, que não devia ter vindo! Ninhada nenhuma. Para que é esse buraco? Não devia ter vindo, não devia ter vindo!, desabou Maria do Céu em soluços no ombro da patroa. Moveu-se o coração de Ana, ameigou a voz: é assim tão mau? Abre-te comigo. Há quase vinte anos que me queima a alma um segredo muito grande. Ia abafá-lo na terra.
Se o não podes contar, também não o deves enterrar. Com o vento dão as canas em murmurar e toda a gente o ficaria a saber. Partilha-o comigo. Sou cova sem fundo. Não o contarei a ninguém e tu ficas aliviada pelo menos de metade da carga, e Ana enxugava as lágrimas da pobre. Dispunha-se esta a falar... Não!, tapou-lhe Ana a boca. Não grites, não fales alto. Nem a agulha desses pinheiros nem as ervas do chão devem escutar. Diz-mo ao ouvido. A aia segredou junto à orelha de Ana e os olhos de Ana iam-se abrindo, abrindo de tão medonha coisa.
Nos dias que se seguiram desfilaram no espírito de Ana imagens antigas. A irmã Inês a sair da casa de Santarém, corria a era de mil e quatrocentos e noventa e dois, a casar com Rui Dias, um jovem de Alenquer, descendente dos senhores de Góis. Senhoria secular, sim senhor, do tempo do conde Henrique. Rui Dias era neto de Gomes Dias, criado de el-rei Fernando I e depois de el-rei João I, o da boa memória. Esteve este seu avô nas cortes de Coimbra e foi com o infante Henrique à conquista de Ceuta. Pagou-lhe o infante os serviços e o valor com lhe dar as seis saboarias de Alenquer a Atouguia e o rei João I a provedoria da gafaria de Coimbra. Casou com Brites Vaz Lemos de quem teve Lopo Dias. Quando os infantes Henrique e Fernando partiram na trágica expedição a Tânger. Gomes Dias não permitiu que o filho fosse consigo. Lopo Dias amuou e jurou nunca mais usar o apelido de Góis nem o transmitir aos filhos, mas herdou as saboarias e a provedoria do pai, que lhe foram confirmadas por el-rei Afonso, ao serviço de cuja mãe, a rainha Leonor, viúva do rei Duarte I se conservou até à morte dela em Toledo. Ora pois, este Rui Dias que aí vai a casar com minha irmã é o primogénito de Lopo Dias, desfiava Ana em seu pensamento. Guapo rapaz, boa estatura de corpo, mais delgado que grosso, a cabeça sobre o redondo, cabelos castanhos, a testa larga desanuviada deles, olhos de um verde claro, alegres, alvo, bem-assombrado, risonho nas covas da face e na comissura dos beiços, braços carnudos, tão compridos que as mãos lhe passavam abaixo dos joelhos, as pernas proporcionadas ao corpo, a voz um tanto enrouquecida». In Fernando Campos, A Sala das Perguntas, 1998, Difel, 1999, ISBN 972-290-437-X.

Cortesia de Difel/JDACT

sábado, 28 de março de 2020

Caminho do Oriente. José Sarmento Matos e Jorge Ferreira Paulo. «O programa Caminho do Oriente envolveu um vasto conjunto de obras de recuperação de edifícios, públicos e privados, e um amplo programa de manifestações, das quais as exposições temáticas»

Cortesia de wikipedia e jdact

Guia histórico I
A Oriente. A nossa cidade
«Lisboa é uma cidade com múltiplas vivências. O percurso de uma história feita ao longo de muitos séculos marcou a cultura e a imagem da cidade, que é, no seu conjunto, um objecto patrimonial rico. Para além do valor inequívoco das muitas singularidades que marcam cada um dos seus edifícios e espaços, é a ambiência do cenário total que torna esta cidade um objecto notável, uma obra de arte onde o natural e o social se interpenetram. Esta é uma evidência com que nos deparamos em praticamente todas as zonas, desde os bairros que formam o centro histórico antigo, as áreas que de periféricas se tornaram centrais e trouxeram à cidade um perfil próprio, acrescentando novas referências à memória já rica e diversificada. Esta última situação é bem característica da coroa norte e das frentes ribeirinhas oriental e ocidental que, no século XIX se inseriram no novo perímetro urbano então ampliado, trazendo as raízes de uma existência mais antiga e passando a incorporar os testemunhos da então florescente industrialização. É esta história que Lisboa preserva no cenário urbano continuadamente vivido e apropriado ao longo dos tempos. A cidade é, sem dúvida, um excelente testemunho e uma boa narradora da sua própria história. A investigação no domínio da história das tradições e da cultura urbana têm em Lisboa um objecto apetecível, tanto pela sua riqueza e especificidade como pela quase inexistência de estudos sobre muitas áreas. A zona oriental, até ao limite do concelho, é um território que apenas tem sido abordado sectorialmente em temas monográficos específicos. E, no entanto, as memórias estão aqui bem visíveis no seu património construído, na toponímia, na morfologia urbana. Mas foi preciso reconhecê-lo, dar-lhe legibilidade, estudá-lo. Foi precisamente esta descoberta assente numa investigação profunda que o Caminho do Oriente nos trouxe. A valorização do percurso urbano através de acções de requalificação e de animação, provou que esta parte da cidade, até há pouco tempo quase desconhecida para muitos lisboetas, é um património vivo, de grande valor histórico, artístico, urbanístico, antropológico e sociológico. Resultando de uma parceria entre a CML, a Ambelis e a Parque Expo e tendo como pano de fundo a Exposição
Mundial de Lisboa, o Caminho do Oriente é agora uma referência no imaginário dos que vivem e amam Lisboa. A requalificação e a valorização da cidade, continua com novas intervenções em curso e programadas e com a animação dos equipamentos culturais, de modo a criar e a reforçar as respectivas centralidades. O trabalho de levantamento, investigação e análise realizado foi fundamental. Por isso, esta obra é uma referência imprescindível para todos os que queiram investigar e intervir na cidade. Aos coordenadores e autores, com destaque muito especial ao dr. José Sarmento Matos e todos os colaboradores, editores, promotores e também seguramente aos leitores, o nosso reconhecimento. E, também, o desafio para novos percursos pelo Caminho do Oriente». In Maria Calado, Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, 1999

«Durante demasiado tempo vivemos esquecidos de Lisboa, da sua condição de cidade inteira: esquecemo-nos do oriente. Para aqui, onde outrora se desenvolviam quintas, palácios e mosteiros, convergiram nos anos deste século armazéns e indústrias, tudo mais ou menos desordenado, porque a falsa ordem que nos regeu durante cinquenta anos era feita de abandono e segregação. Lisboa foi-se esquecendo de que uma parte da sua história partiu desta metade imperfeita que se julga traçada a partir do eixo imaginário que liga o Parque Eduardo VII à Praça do Comércio. Só nos últimos anos a cidade voltou a olhar para si própria e, nesse movimento, para a sua metade leste, que confina com a extrema ocidental do concelho de Loures. A partir de 1997, e ao mesmo tempo que decorria em contra-relógio o trabalho colossal de remodelação de 330 hectares em torno da Doca dos Olivais, para acolher a Exposição Mundial de Lisboa, a Expo'98 e a Câmara Municipal de Lisboa lançavam um programa de recuperação e animação dos bairros orientais até se atingir a zona onde hoje, extintos os fogos da Exposição, se abre ao público o Parque das Nações. O programa Caminho do Oriente envolveu um vasto conjunto de obras de recuperação de edifícios, públicos e privados, e um amplo programa de manifestações, das quais as exposições temáticas e fotográficas, a animação dos Armazéns Abel Pereira Fonseca e o plano de edições constituem marcos salientes. Não temos ainda recuo para proceder a um balanço da experiência. E é até desejável que não haja balanço possível, isto é, colunas fechadas de deve e haver, porque o processo de devolução do oriente à nossa cidade não pode parar. O que começou, nestes auspiciosos anos noventa, foi o princípio de uma revolução, esta sim, permanente, a exigir mais imaginação, mais criatividade e mais audácia, para recuperarmos o tempo absurdamente perdido, enquanto o Tejo se espreguiçava indolente, doente do tédio que lhe inspirava a distracção dos homens. Neste trabalho de recuperação de memória é indispensável pôr hoje em relevo quem lhe deu asas e forma, quem o trouxe pela mão e o enformou com um discurso culto e sensível, de lisboeta apaixonado. Os guias que rematam esta etapa da aventura de redescoberta do oriente de Lisboa aí estão para testemunhar a qualidade singular do trabalho desenvolvido por José Sarmento Matos, em investigação que se anunciara logo em 1993 com o magnífico álbum Um Passeio a Oriente (Edição Expo'98/Metropolitano de Lisboa), mas que encontrou, na coordenação-geral do programa Caminho do Oriente, aqui com a valiosa colaboração de Jorge Custódio, Deolinda Folgado, Luísa Arruda e Jorge Ferreira Paulo, a expressão mais completa da sua identificação com o pulsar da cidade, da sua história passada, mas também dos seus ritmos presentes e da sua ambição de futuro. Não sei se Lisboa lhe deve alguma coisa; mas, como lisboeta, sei que lhe devo o enumerar de algumas das principais razões pelas quais milhares de portugueses se empenharam, durante anos, em fazer, do oriente de Lisboa, a nossa cidade». In António Mega Ferreira

In José Sarmento Matos e Jorge Ferreira Paulo, Caminho do Oriente, Livros Horizonte, 1999, ISBN 972-241-057-1.

Cortesia de LHorizonte/JDACT

sexta-feira, 27 de março de 2020

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «A aula acabaria dentro de duas horas. Uma eternidade. Lá fora, a chuva arranhava os vidros. Quando a campainha tocou, fugi a toda a velocidade…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Germán examinou-me com curiosidade benevolente. Devolvi a sua amabilidade com uma inclinação de cabeça e levei a colher aos lábios. Assim pelo menos não podia falar e acabar enfiando os pés pelas mãos. Continuamos a comer em silêncio. Não demorei para perceber que, do outro lado da mesa, Germán estava caindo no sono. Quando a colher finalmente escorregou de seus dedos, Marina levantou-se e, sem dizer uma palavra, afrouxou sua gravata de seda prateada. Germán suspirou. Uma das suas mãos tremia levemente. Marina deu o braço ao pai para ajudá-lo a levantar. Germán concordou, abatido, e sorriu fraco para mim, quase envergonhado. Parecia que tinha envelhecido 15 anos num piscar de olhos. Me desculpe, por favor, Oscar..., disse num fio de voz. São coisas da idade. Levantei-me também, oferecendo ajuda a Marina com os olhos. Ela recusou e pediu que ficasse na sala. Seu pai se apoiou nela e assim os dois abandonaram o salão. Foi um gosto, Oscar..., murmurou a voz cansada de Germán, perdendo-se no corredor de sombras. Venha-nos visitar de novo, venha-nos visitar... Ouvi os passos sumirem no interior da casa e esperei por Marina à luz das velas por quase meia hora. A atmosfera da casa começou a pesar sobre mim.
Quando tive certeza de que Marina não voltaria, comecei a me preocupar. Pensei em ir atrás dela, mas não me pareceu correcto ficar procurando pelos quartos sem ter sido convidado. Pensei em deixar um bilhete, mas não tinha como fazer isso. Estava anoitecendo, de modo que o melhor a fazer era ir embora. Voltaria no dia seguinte, depois das aulas, para ver se estava tudo bem. Surpreso, constatei que não via Marina há apenas meia hora e a minha mente já estava procurando pretextos para voltar. Fui até à porta dos fundos, na cozinha, e percorri o jardim até ao portão. O céu se apagava sobre a cidade cheio de nuvens em trânsito. Enquanto ia para o internato, passeando lentamente, os acontecimentos daquele dia desfilaram na minha memória. Ao subir as escadas para o quarto andar estava convencido de que tinha sido o dia mais estranho da minha vida. Mas se fosse possível comprar uma entrada para ver tudo se repetir, compraria sem pensar duas vezes.

À noite, sonhei que estava preso dentro de um imenso caleidoscópio. Um ser diabólico, de quem só podia ver o olho enorme através da lente, fazia o mecanismo girar. O mundo se desfazia em labirintos de ilusões de óptica que flutuavam ao meu redor. Insectos. Borboletas negras. Despertei de repente, com a sensação de ter café fervente correndo nas veias. Aquela febre não me abandonou por todo o dia. As aulas de segunda-feira se suicidaram como comboios sem paragem na minha estação. JF percebeu imediatamente. Você já anda nas nuvens normalmente, sentenciou, mas hoje está além da estratosfera. Está doente? Tratei de tranquilizá-lo com um gesto vago. Consultei o relógio acima do quadro-negro. Três e meia. A aula acabaria dentro de duas horas. Uma eternidade. Lá fora, a chuva arranhava os vidros. Quando a campainha tocou, fugi a toda a velocidade, dando um bolo em JF e em nosso passeio habitual pelo mundo real. Atravessei os eternos corredores até chegar à saída. Os jardins e as fontes da entrada empalideciam sob o manto da tempestade. Não tinha guarda-chuva e o meu casaco não tinha capuz. O céu era uma lápide de chumbo. Os lampiões ardiam como fósforos. Comecei a correr. Evitei poças, desviei de bueiros inundados e cheguei à saída. Riachos de chuva desciam pela rua como uma veia perdendo sangue. Molhado até aos ossos, corri por ruelas estreitas e silenciosas. Os bueiros rugiam à minha passagem. Parecia que a cidade se ia fundir num oceano negro. Levei dez minutos para chegar à cerca do casarão de Marina e Germán. Nessa altura, as minhas roupas e sapatos estavam irremediavelmente encharcados». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «Diga-me, Oscar, o que o mundo nos conta nesses últimos dias? Formulou a pergunta de tal modo que suspeitei que, se anunciasse o fim da Segunda Guerra Mundial…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Quando saímos de lá, a garoa tinha vestido as ruas de prata. Era uma da tarde. Fizemos o caminho de volta sem trocar uma palavra. Na casa de Marina, Germán nos esperava para almoçar. Não diga nada a Germán sobre isso, por favor, pediu Marina. Não se preocupe. Percebi que, de qualquer jeito, não saberia explicar o que tinha acontecido. À medida que nos afastávamos do local, a lembrança daquelas imagens e daquela estufa sinistra foi-se atenuando. Quando chegamos na Plaza Sarriá, vi que Marina estava pálida e respirava com dificuldade. Você está bem?, perguntei. Marina disse que sim, não muito convencida. Sentámo-nos num banco da praça. Ela respirou profundamente várias vezes, com os olhos fechados. Um bando de pombos saltitava a nossos pés. Por um instante, temi que Marina fosse desmaiar. De repente, ela abriu os olhos e sorriu para mim. Não se assuste. Só fiquei um pouco enjoada. Deve ter sido aquele cheiro. Com certeza. Provavelmente era algum bicho morto. Uma ratazana ou...
Marina concordou com essa hipótese. Em pouco tempo, a cor voltou a seu rosto. O que está me fazendo falta é comer alguma coisa. Ande, vamos embora. Germán já deve estar cansado de esperar. Levantamos e tomámos o caminho de sua casa. Kafka esperava no portão. Olhou para mim com desprezo e correu para se esfregar nos tornozelos de Marina. Estava eu pensando nas vantagens de ser um gato, quando reconheci o som daquela voz celestial no gramofone de Germán. A música se filtrava pelo jardim como uma maré alta. Que música é esta? Léo Delibes, respondeu Marina. Nem desconfio... Delibes. Um compositor francês, esclareceu Marina, adivinhando meu desconhecimento. O que ensinam a vocês nessas escolas? Dei de ombros. E um trecho de uma das óperas dele. Lakmé. E a voz? Minha mãe. Olhei para ela, perplexo. Sua mãe é cantora de ópera? Marina me devolveu um olhar impenetrável. Era, respondeu. Ela morreu.
Germán esperava por nós no salão principal, uma peça ampla e ovalada. Um lustre de lágrimas de cristal pendia do tecto. O pai de Marina estava vestido quase a rigor. Usava um casaco com colete e a sua cabeleira prateada estava cuidadosamente penteada para trás. Tive a impressão de que estava diante de um cavaleiro do final do século. Sentámos à mesa, posta com toalhas de linho e talheres de prata. E um prazer tê-lo aqui connosco, Oscar, disse Germán. Não é todos os domingos que temos a honra de tão grata companhia. A louça era de porcelana, uma verdadeira peça de antiquário. O cardápio parecia consistir numa sopa de aroma delicioso e pão. Mais nada. Enquanto Germán me servia antes de todos, compreendi que todo o luxo se devia à minha presença. Apesar dos talheres de prata, da sopeira de museu e dos luxos de domingo, aquela casa não tinha dinheiro suficiente para um segundo prato. Aliás, quanto a não ter, não tinha nem luz. O casarão era iluminado permanentemente por velas.
Germán deve ter lido o meu pensamento. Deve ter percebido que não temos electricidade, Oscar. Na verdade, nós não damos muito crédito aos avanços da ciência moderna. Afinal de contas, que tipo de ciência é essa, capaz de colocar um homem na lua, mas incapaz de colocar um pedaço de pão na mesa de cada ser humano? Acho que o problema não está na ciência, mas naqueles que decidem como empregá-la, sugeri. Germán considerou a minha ideia e concordou solenemente, não sei se por cortesia ou por convencimento mesmo. Percebo que você é um tanto filósofo, Oscar. Já leu Schopenliauer? Senti os olhos de Marina pousados em mim, sugerindo que seguisse os passos de seu pai. Só por alto, improvisei. Saboreamos a sopa sem falar. Germán sorria amavelmente de vez em quando e observava a filha com carinho. Algo me dizia que Marina não tinha muitos amigos e que Germán via com bons olhos a minha presença, embora, no que me dizia respeito, Schopenliauer podia muito bem ser uma marca de artigos ortopédicos.
Diga-me, Oscar, o que o mundo nos conta nesses últimos dias? Formulou a pergunta de tal modo que suspeitei que, se anunciasse o fim da Segunda Guerra Mundial, causaria um grande alvoroço. Não muito, na verdade, disse, sob a atenta vigilância de Marina. Teremos eleições... Isso despertou o interesse de Germán, que deteve a dança da sua colher e avaliou o tema. E você, Oscar? F, de direita ou de esquerda? Óscar e um anarquista, pai, cortou Marina. O pedaço de pão engasgou na minha garganta. Não sabia o que significava aquela palavra, mas soava como anarquista de bicicleta. Germán observou-me detidamente, intrigado. O idealismo da juventude..., murmurou. É compreensível, é compreensível. Na sua idade, também li Bakunin. É como o sarampo: enquanto você não passa por isso... Dei uma olhada de ajuda para Marina, que lambeu os lábios como um gato. Piscou o olho para mim e virou para o outro lado». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT

A Catedral do Mar. Ildefonso Falcones. «O rapaz, com os olhos brilhantes, instara-o a continuar. Barcelona é muito rica. Durante muitos anos, desde Jaime…»

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Servos da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da Catalunha
«(…) Nenhum dos numerosos camponeses que iam ao castelo se dignou sequer a olhar para ela. Francesca tentou aproximar-se de alguns, mas afastaram-na. Não se atreveu a regressar a casa dos pais, porque a mãe a repudiara publicamente, diante do forno do pão, e assim se viu obrigada a permanecer na proximidade do castelo, como mais um dos muitos mendigos que se aproximavam das muralhas para procurar por entre o lixo. O seu único destino parecia ser o de ir passando de mão em mão, a troco das sobras do rancho do soldado que a tivesse escolhido nesse dia. Chegou Setembro. Bernat já vira o filho sorrir e gatinhar pela gruta e pelos arredores. No entanto, as provisões começavam a escassear, e o Inverno estava a chegar. Chegara o momento de partir.

A cidade estendia-se aos seus pés. Olha, Arnau, disse Bernat ao menino, que dormia placidamente encostado ao seu peito, Barcelona. Ali seremos livres. Desde a sua fuga com Arnau, Bernat não parara de pensar naquela cidade, grande esperança de todos os servos. Bernat ouvira falar dela sempre que iam trabalhar nas terras do senhor, ou reparar as muralhas do castelo, ou fazer qualquer outro trabalho de que o senhor necessitasse. Sempre cuidadosos para que os soldados e o aguazil não os ouvissem, esses sussurros nunca tinham despertado em Bernat mais do que simples curiosidade. Era feliz nas suas terras e nunca abandonaria o pai. E também não poderia fugir com ele. No entanto, depois de ter perdido as suas terras, quando, durante a noite via dormir o filho, no interior da gruta dos Estany ol, aqueles comentários tinham começado a ganhar vida, até ecoarem no interior da gruta. Se se consegue viver lá durante um ano e um dia sem se ser detido pelo senhor, lembrava-se de ter ouvido, ganha-se a carta de vizinhança e alcança-se a liberdade. Nessa ocasião, todos os servos tinham guardado silêncio. Bernat olhara-os: alguns tinham os olhos fechados e os lábios cerrados, outros faziam que não com a cabeça, e os restantes sorriam, olhando para o céu. E apenas é preciso viver na cidade?, rompera o silêncio um rapaz, um dos que tinha olhado para o céu, sonhando certamente com poder quebrar as cadeias que o amarravam à terra. Porque se pode ganhar a liberdade em Barcelona?
O mais idoso respondera-lhe, pausadamente: sim, não é preciso nada mais. Basta viver lá durante esse tempo. O rapaz, com os olhos brilhantes, instara-o a continuar. Barcelona é muito rica. Durante muitos anos, desde Jaime, o Conquistador, até Pedro, o Grande, os reis pediram dinheiro à cidade para as suas guerras ou para as suas cortes. Durante todos esses anos, os cidadãos de Barcelona concederam esses dinheiros, mas em troca de privilégios especiais, até que o próprio Pedro, o Grande, em guerra com a Sicília, os resumiu num código... O velho titubeara: kecognoverunt próceres, creio que assim se chama. É aí que diz que podemos alcançar a liberdade. Barcelona precisa de trabalhadores, de trabalhadores livres. No dia seguinte, aquele rapaz não aparecera à hora marcada pelo senhor. E também não o fez no dia seguinte. O pai, em contrapartida, continuava a trabalhar, em silêncio. Ao fim de três meses, tinham-no trazido, agrilhoado, caminhando diante de um chicote; no entanto, todos supuseram ver no seu olhar uma centelha de orgulho». In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT

A Catedral do Mar. Ildefonso Falcones. «Acabará por cair. Manda aviso a todos os outros senhores e aos nossos agentes nas cidades. Diz-lhes que fugiu um servo das minhas terras e que deve ser detido»

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Servos da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da Catalunha
«(…) Havemos de sair desta, Arnau, repetiu, desatando a correr em direcção a casa. Percorreu o caminho sem olhar para trás. Nem sequer quando chegou se permitiu um momento de descanso; deixou Arnau no berço, agarrou num saco e encheu-o de trigo moído e de legumes secos, uma bexiga cheia de água e outra cheia de leite, carne salgada, uma escudela, uma colher e roupa, algum dinheiro que tinha escondido, uma faca de caça e a sua balestra... Que orgulho tinha o pai nesta balestra, pensou, enquanto a sopesava. Lutou ao lado do conde Ramon Borrell quando os Estany ol eram livres, repetia-lhe sempre que o ensinava a usá-la. Livres! Bernat atou o menino ao peito e carregou tudo o resto. Seria sempre um servo, a não ser que... Por agora, seremos fugitivos, disse ao filho, antes de se lançar para o monte. Ninguém conhece estes montes melhor que os Estany ol, assegurou-lhe, já no meio das árvores. Sempre caçámos nestas terras, sabes? Bernat avançou por entre a folhagem até chegar a um riacho, meteu-se nele com a água até aos joelhos e começou a subir o seu curso. Arnau fechara os olhos e dormia, mas Bernat continuava a falar com ele. Os cães do senhor não são muito rápidos, maltrataram-nos demasiado. Chegaremos até lá acima, onde o bosque se adensa e se torna difícil andar a cavalo. Os senhores só caçam a cavalo, nunca chegam a esta zona. Rasgariam as suas vestes. E os soldados... Para que haviam de vir caçar para aqui? Com a comida que nos roubam, têm que lhes chegue. Vamos esconder-nos, Arnau. Ninguém conseguirá encontrar-nos, juro-te, Bernat acariciou a cabeça do filho enquanto continuava a subir contra a corrente.
A meio da tarde, fez uma paragem. O bosque tornara-se tão frondoso que as árvores invadiam as margens do riacho e cobriam por completo o céu. Sentou-se sobre uma rocha e olhou para as pernas, brancas e enrugadas pela água. Só então notou a dor, mas não se importou. Desfez-se da carga e desatou Arnau. O menino abrira os olhos. Diluiu leite em água e adicionou-lhe trigo moído, remexeu a mistura e aproximou a escudela dos lábios do pequenito. Arnau rejeitou-a, com um esgar. Bernat limpou um dedo no riacho, molhou-o na comida e tentou de novo. Depois de várias tentativas, Arnau correspondeu e permitiu que o pai o alimentasse com o dedo; depois, fechou os olhos e adormeceu. Bernat comeu apenas um pouco de carne salgada. Teria gostado de descansar um pouco, mas ainda lhe faltava uma boa distância. A gruta dos Estany ol, como lhe chamava o seu pai. Chegaram lá quando já tinha anoitecido, depois de terem feito outra paragem para que Arnau comesse. Entrava-se na gruta por uma estreita fenda aberta nas rochas, que Bernat, o seu pai e também o seu avô fechavam por dentro com troncos, para dormirem ao abrigo do mau tempo e dos animais, quando saíam para caçar.
Acendeu um fogo à entrada da gruta e entrou nela com uma acha, para se assegurar de que não estivesse a ser ocupada por algum animal; depois, acomodou Arnau sobre um colchão improvisado com o saco e com ramos secos, e voltou a dar-lhe de comer. O pequenito aceitou o alimento e caiu num sono profundo, tal como Bernat, que nem sequer foi capaz de comer a carne salgada. Ali estariam a salvo do senhor, pensou, antes de fechar os olhos e compassar a sua respiração com a do filho.
Llorenç de Bellera saiu a galope desenfreado com os seus homens, assim que o mestre da forja encontrou o aprendiz, morto no meio de um charco de sangue. O esaparecimento de Arnau e o facto de o pai ter sido visto no castelo apontaram imediatamente para a culpa de Bernat. O senhor de Navarcles, que esperava montado a cavalo em frente à porta da casa dos Estany ol, sorriu quando os seus homens lhe disseram que o interior estava remexido e que, ao que parecia, Bernat tinha fugido com o filho. Depois da morte do teu pai, ainda te livraste, vociferou, mas agora será tudo meu. Procurem-no!, gritou aos homens. Depois, virou-se para o aguazil: faz uma relação de todos os bens, haveres e animais desta propriedade e trata de que não falte nem uma libra de cereal. Depois, procura Bernat. Ao fim de vários dias, o aguazil compareceu diante do seu senhor, na torre de menagem do castelo: procurámos em todas as outras quintas, nos bosques e nos campos. Não há nem rasto de Estany ol. Deve ter fugido para alguma cidade, talvez para Manresa, ou...
Llorenç de Bellera mandou-o calar com um gesto da mão.
Acabará por cair. Manda aviso a todos os outros senhores e aos nossos agentes nas cidades. Diz-lhes que fugiu um servo das minhas terras e que deve ser detido. Nesse momento, apareceram Francesca e dona Catarina, com Jaume, o filho desta, nos braços da primeira. Llorenç de Bellera observou-a e fez um gesto sacudido; já não precisava dela. Senhora, disse para a mulher, não compreendo como permitis que uma meretriz amamente o meu filho. Dona Catarina estremeceu. Acaso não sabeis que a vossa ama é a mulher de toda a soldadesca? Dona Catarina arrancou o filho dos braços de Francesca. Quando Francesca soube que Bernat tinha fugido com Arnau, interrogou-se sobre o que seria feito do filho. As terras e propriedades dos Estany ol pertenciam agora ao senhor de Bellera. Não tinha a quem pedir ajuda e, entretanto, os soldados continuavam a aproveitar-se dela. Um pedaço de pão duro, uma verdura podre, por vezes algum osso para roer: tal era o preço do seu corpo». In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT

quinta-feira, 26 de março de 2020

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Como o povo corresponde sem alegria!... Vem, Telo. Já me custa morrer tanta vez. E afastam-se dali, pelas traseiras dos Estaus…»

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O Sapateiro Santo
«(…) Entravam. Sentavam-se a uma mesa corrida, diante de uma tijela de caldo e um naco de pão. Savachão hesitava. A seu lado, à sua frente, sôfrega sorvia a pobreza a sopa nas gorjas sequiosas os lábios a escorrerem. As freiras apressavam-nos: vamos, vamos. Dar o lugar. Levantavam-se limpando as beiças às mangas dos gibões, levando à boca com grandes dentadas a polpa do pão. Então não comes?, perguntava a irmã a Savachão. Não sei comer depressa. Andar, andar. Há outros à espera. Telo tocou-lhe de leve no braço a urgi-lo. Beberam o caldo, ergueram-se e saíram. Savachão tinha os olhos húmidos. O pajem olhou-o, mas evitou dizer fosse o que fosse. Vinha lá um cortejo em direcção à igreja. Em cavalos baios de gualdrapas quarteadas de vermelho e branco, os trombeteiros e atabaleiros com os instrumentos calados... Por de mais conhecia ele aquele protocolo, as precedências. Podia vê-los de olhos fechados... os três reis-de-armas, os arautos, os passavantes... Abria os olhos. Já desfilava a representação da câmara, agora os desembargadores e..., seus pecados!..., os magros fidalgos que restavam na corte. A negrura da ausência povoa o séquito. O que meus olhos da culpa estão vendo é a multidão dos fantasmas dos que se finaram lá em baixo...
Sacudo-os com a mão... Lá vem o alferes-mor, a bandeira enrolada na haste, como condestável o duque de Bragança com o estoque... Meu tio Henrique! De vermelho. Montado em mula preta de gualdrapa escarlate, doirados os copos da brida e os arreios da cabeçada. Às rédeas, os condes da Sortelha e da Castanheira. Diante deles, empunhando a vara de mordomo-mor, o conde de Portalegre... Escolheu esta capela, conheço bem porquê: aqui foi ele sagrado arcebispo de Braga. Agora vai ser rei... Já sobe a escadaria. No patamar espera-o toda a clerezia da capela real e do cabido. Lá está o arcebispo Teotónio e os bispos Osório, André, Jorge e aquele ali, diz-me, Telo... É Sebastião Fonseca, bispo de Targa... Olha o meu capelão-mor João Castro... Debaixo do pálio, Jorge Almeida, arcebispo de Lisboa... Já entram no templo.
Sei bem o que se vai passar lá dentro: meu tio no estrado, sob o dossel..., a jurar, de joelhos, sobre o missal e a cruz, bem governar, sustentar a justiça, guardar privilégios e liberdades..., o camareiro-mor a entregar-lhe o ceptro..., a cerimónia do beija-mão..., e não tardará, tão poucos são os senhores para lhe beijarem a mão, que o rei-de-armas... Ouvide! Ouvide! Ouvide!, soa dentro a grita do rei-de-armas. ... o alferes-mor já desfralda a bandeira e solta o brado... Real! Real! Real! Pelo Sereníssimo Príncipe Dom Henrique, Rei de Portugal!
... Ah! Que tibieza! Como o povo corresponde sem alegria!... Vem, Telo. Já me custa morrer tanta vez. E afastam-se dali, pelas traseiras dos Estaus, soavam na praça as trombetas e os atabales. Vieram de detrás de São Domingos e no largo da feira das bestas, sentaram-se nos degraus da ermida da Senhora da Escada. Saíam da igreja do mosteiro damas embiocadas, seguidas das criadas e escravas negras, e juntavam-se a falar. De luto, senhora? Pois já tendes a certeza? Não, mas..., é o luto da alma. Eu recuso-me a acreditar. Choro dia e noite..., mas não me visto de negro enquanto não souber. Dá mau sestro. Esta angústia em que vivemos... Conseguistes saber alguma coisa dos poucos que chegaram na armada de dom Diogo? Não queirais saber! Insisti, insisti... Caras de pau, senho sombrio, carrancudos, a boca cerrada..., um túmulo..., um túmulo como todo o reino... Mas podiam, ao menos, desabafar, dizer o que sabem... Dizerem que o rei morreu é dizerem que o deixaram morrer... Ah! Meu Deus! Tenho lá o meu marido, os meus filhos..., agonia de alma! Sabeis que vos digo? Eu não sou pessoa para ficar nesta incerteza. Que ides fazer? Falaram-me de uma mulher de virtude que vive no Borratém... Também a mim. Mas essa foi presa por roubar. Está presa no Aljube. Pois irei ao Aljube. Sentou-se junto deles um mendigo que rondara as damas de mão estendida: pobres comadres!, rosnou coçando os sovacos. Tão desvairadas e andejas, acabam por não fazer diferença entre luto e romaria». In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

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