segunda-feira, 23 de março de 2020

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Quando me calei, disse: julguei que tudo estava resolvido. Não tenho eloquência nem agudeza de espírito para desfazer os teus escrúpulos. Fala amanhã com o superior. Conta-lhe das tuas dúvidas»

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A Letra Pitagórica
«(…) Frades ajoelhados a rezar, diante das fogueiras, rostos com lágrimas, rostos hirtos, esgares, bocas cerrando os dentes para não gritarem seus protestos, e os sinos e os sinos e os sinos..., os bronzes dos templos a martelar infandos, plangentes soluços, lúgubres lamentos..., e a praça de repente deserta de todos, como se nada se houvesse passado se não fosse lá ao centro, a fumegarem lentamente, os restos das efígies e o carvão negro em que se tornara uma criatura de Deus..., e a voz de Diogo, assustada, que me diz: vem. Que tens tu? Estás doente? Já todos se foram. Pareces estar sonâmbulo. Estou a chamar-te há uma porção de tempo... Olho-o tristemente, sentindo as lágrimas escorrerem-me pelas faces a baixo, e sem dizer uma palavra ponho-me a caminhar ao lado dele, as labaredas do tição humano nos olhos, os gritos de dor nos ouvidos, a alma a sangrar-me... Naquele dia, como cheguei ao convento combalido das cenas a que assistira, julgando-me ainda convalescente dispensaram-me do horário normal, deram-me uma cama na enfermaria e, tive refeição de doente, que era sempre melhorada.
Deitei-me logo em seguida pois desejava estar só comigo e fechar os olhos era para mim, naquele momento, uma real maneira de olhar para dentro. Bem precisava, que a hora de tomar a decisão definitiva estava a chegar. Mas então que dúvidas me restavam ainda? A experiência com Margarida e Elsa não me tinha esclarecido? O que me abalava agora era a impressão que me ficara das cenas do auto-de-fé a que assistira, aquele fanatismo, aquela intolerância, aquela barbaridade..., em nome de Cristo! Não podia concordar com o espírito da Inquisição (maldita) e isso quereria dizer que eu não era católico e muito menos poderia em consciência ser padre...
Estava nesta tortura de escrúpulos de consciência, quando Diogo, pela tardinha, me veio ver. Desabafei com ele. Escutou-me todo o tempo em silêncio, de semblante grave mas sereno. Quando me calei, disse: julguei que tudo estava resolvido. Não tenho eloquência nem agudeza de espírito para desfazer os teus escrúpulos. Fala amanhã com o superior. Conta-lhe das tuas dúvidas. Por mim, recuso-me a esquecer-me, desde que te ouvi compor e cantar hinos a Deus, a aceitar que tu não sejas um franciscano nato. Lembras-te?, e trauteou: Rosmaninho, alecrim da nossa terra nardo ejunfa dos brejos... E eu, num soluço convulso: ... louvai ao Senhor!
No dia seguinte, antes que me dirigisse ao superior, este, sabendo que eu já não estava de cama e me preparava para me integrar na vida normal do convento, mandou-me recado que o procurasse. Acolheu-me com um abraço paternal e, depois das perguntas formais sobre a minha saúde, veio ao ponto -Então já decidiste? Contei-lhe as minhas dúvidas recentes, que as antigas haviam deixado de existir. Que os meus escrúpulos não tinham razão de ser, respondeu-me com um sorriso, pois o próprio papa, como estava mostrando pela resistência ao pedido de el-rei, pela promulgação da bula de perdão que protegia os cristãos-novos, pelas dilações dos núncios apostólicos que nos vinham de Roma, afinal pensava como... Como eu?!, perguntei espantado. Como tu e como eu!, replicou o superior. E não tenhas dúvidas, que, se eles pudessem, queimavam na fogueira da Inquisição (maldita) a Cristo, ao papa, a mim e a ti, e pôs-se a rir, considerando-me convencido e dando o assunto por terminado.
Quase sem resistência, se alguma restava naquele momento ficou comigo toda a vida, deixei-me convencer. Estás pois resolvido? Sim... Creio que sim. Graças a Deus, irmão! Posso ser o primeiro a chamar-te assim? É muita bondade de vossa paternidade... Ora, ora, João!... Mas tenho uma pergunta a fazer-te... Calou-se, por momentos, procurando encontrar o meu olhar. Conservei-me sério, calmo, na expectativa. Perguntou-me então: que nome de religião pretendes tomar? Não era assunto em que nunca houvesse pensado. Tinha até, há muito, uma resolução tomada. Respondi prontamente: Pantaleão, senhor, Pantaleão Miragaia! Olhou-me completamente atónito: Pantaleão?! Pois sabia? O que eu sei..., não sei. Creio até que desconheço quase tudo. Sei que o medalhão que trago ao peito contém uma relíquia de São Pantaleão, que morreu mártir na Bitínia e cujos restos uns arménios, fugidos da destruição de Constantinopla, trouxeram até Miragaia. Sei também que as suas relíquias estão em precioso relicário na sé do Porto». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT