jdact
A
Letra Pitagórica
«(…) Frades ajoelhados a rezar,
diante das fogueiras, rostos com lágrimas, rostos hirtos, esgares, bocas
cerrando os dentes para não gritarem seus protestos, e os sinos e os sinos e os
sinos..., os bronzes dos templos a martelar infandos, plangentes soluços,
lúgubres lamentos..., e a praça de repente deserta de todos, como se nada se
houvesse passado se não fosse lá ao centro, a fumegarem lentamente, os restos
das efígies e o carvão negro em que se tornara uma criatura de Deus..., e a voz
de Diogo, assustada, que me diz: vem. Que tens tu? Estás doente? Já todos se
foram. Pareces estar sonâmbulo. Estou a chamar-te há uma porção de tempo... Olho-o
tristemente, sentindo as lágrimas escorrerem-me pelas faces a baixo, e sem
dizer uma palavra ponho-me a caminhar ao lado dele, as labaredas do tição humano
nos olhos, os gritos de dor nos ouvidos, a alma a sangrar-me... Naquele dia,
como cheguei ao convento combalido das cenas a que assistira, julgando-me ainda
convalescente dispensaram-me do horário normal, deram-me uma cama na enfermaria
e, tive refeição de doente, que era sempre melhorada.
Deitei-me logo em seguida pois
desejava estar só comigo e fechar os olhos era para mim, naquele momento, uma
real maneira de olhar para dentro. Bem precisava, que a hora de tomar a decisão
definitiva estava a chegar. Mas então que dúvidas me restavam ainda? A
experiência com Margarida e Elsa não me tinha esclarecido? O que me abalava
agora era a impressão que me ficara das cenas do auto-de-fé a que assistira,
aquele fanatismo, aquela intolerância, aquela barbaridade..., em nome de
Cristo! Não podia concordar com o espírito da Inquisição (maldita) e isso quereria
dizer que eu não era católico e
muito menos poderia em consciência ser padre...
Estava nesta tortura de escrúpulos
de consciência, quando Diogo, pela tardinha, me veio ver. Desabafei com ele.
Escutou-me todo o tempo em silêncio, de semblante grave mas sereno. Quando me
calei, disse: julguei que tudo estava resolvido. Não tenho eloquência nem
agudeza de espírito para desfazer os teus escrúpulos. Fala amanhã com o
superior. Conta-lhe das tuas dúvidas. Por mim, recuso-me a esquecer-me, desde
que te ouvi compor e cantar hinos a Deus, a aceitar que tu não sejas um
franciscano nato. Lembras-te?, e trauteou: Rosmaninho, alecrim da nossa terra nardo ejunfa dos brejos... E
eu, num soluço convulso: ... louvai
ao Senhor!
No dia seguinte, antes que me
dirigisse ao superior, este, sabendo que eu já não estava de cama e me
preparava para me integrar na vida normal do convento, mandou-me recado que o
procurasse. Acolheu-me com um abraço paternal e, depois das perguntas formais
sobre a minha saúde, veio ao ponto -Então já decidiste? Contei-lhe as minhas
dúvidas recentes, que as antigas haviam deixado de existir. Que os meus
escrúpulos não tinham razão de ser, respondeu-me com um sorriso, pois o próprio
papa, como estava mostrando pela resistência ao pedido de el-rei, pela
promulgação da bula de perdão que protegia os cristãos-novos, pelas dilações
dos núncios apostólicos que nos vinham de Roma, afinal pensava como... Como eu?!,
perguntei espantado. Como tu e como eu!, replicou o superior. E não tenhas
dúvidas, que, se eles pudessem,
queimavam na fogueira da Inquisição (maldita) a Cristo, ao papa, a mim e a ti,
e pôs-se a rir, considerando-me convencido e dando o assunto por terminado.
Quase
sem resistência, se alguma restava naquele momento ficou comigo toda a vida,
deixei-me convencer. Estás pois resolvido? Sim... Creio que sim. Graças a Deus,
irmão! Posso ser o primeiro a chamar-te assim? É muita bondade de vossa
paternidade... Ora, ora, João!... Mas tenho uma pergunta a fazer-te...
Calou-se, por momentos, procurando encontrar o meu olhar. Conservei-me sério,
calmo, na expectativa. Perguntou-me então: que nome de religião pretendes
tomar? Não era assunto em que nunca houvesse pensado. Tinha até, há muito, uma
resolução tomada. Respondi prontamente: Pantaleão, senhor, Pantaleão Miragaia!
Olhou-me completamente atónito: Pantaleão?! Pois sabia? O que eu sei..., não
sei. Creio até que desconheço quase tudo. Sei que o medalhão que trago ao peito
contém uma relíquia de São Pantaleão, que morreu mártir na Bitínia e cujos
restos uns arménios, fugidos da destruição de Constantinopla, trouxeram até
Miragaia. Sei também que as suas relíquias estão em precioso relicário na sé do
Porto». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva,
Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT