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De Portugal para S. Tomé e Príncipe por
ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) Completamente ensonado, pernas
e vozes trémulas, olhei para o alto, numa tentativa de alcançar o rosto daquele
que não mais parecia senão uma torre perante os seus mais de cinco pés,
devidamente encostado à minha insignificante estatura, empunhando um punhal.
Ainda assim, senti um vento fraterno que chegou a misturar-
-se
com o paterno... Estava quebrado o silêncio.
Vieram-me
à memória os traços do meu pai. Devo confessar que não sei se aquela voz que me
gritava ao ouvido era a dos relatos da minha irmã ou dos ecos da minha memória,
a verdade é que, para todo esse drama, havia uma voz, um olhar, palavras e
lágrimas que antes daqueles momentos dramáticos eu desconhecia. Naquele momento,
a figura central era o meu pai, dada a presença daquele indivíduo, mas sentia a
presença de todos: minha irmã, minha mãe e a minha avó.
Todas
as histórias que eles contavam começavam da mesma forma, baseavam-se em terrores
e angústias. Não consegui captar as primeiras palavras proferidas por aquela
figura; apercebi-me de ele ter rumorejado qualquer coisa, mas parecia a
reprodução fiel das últimas palavras da minha irmã. Procurava, de forma tão
desesperada, ser bafejado com algum vento vindo do meu passado, uma leve brisa
que me levasse a ter uma vaga ideia daquilo que fui, naqueles momentos em que
nada me ocorria, para melhor perceber os acontecimentos presentes. Se calhar
por isso, nada mais ouvia senão aqueles que sempre me foram queridos e me
ofereceram a necessária segurança até ao fatídico dia.
Depois
de ter vagueado sem norte, os meus seis anos em nada ajudavam para que alguma
coisa fizesse sentido, senão o tão almejado conforto. Eu desesperava pelo consolo
de alguém mas, ao mesmo tempo, desconfiava da minha própria sombra. Não sabia e
nem podia saber de onde podiam surgir, outra vez, aqueles mesmos homens que tinham
desmoronado a minha família. Nunca lhes cheguei a alcançar os rostos. As suas
motivações, para mim, ainda eram dúbias, apesar do esforço da minha irmã. Barba
eriçada, espessa e dourada, cabelo farto, olhos escuros e grandes, um xaile azul
e branco em cima dos ombros, voz inflamada, mesmo própria de quem nasceu com o
dom da oração, mas circunstancialmente suplantada, uma boca grande, o elemento
mais marcante daquela face sisuda, que nem mesmo aquelas imponentes barbas conseguiam
ofuscar, badalavam em movimentos verticais e reprimiam aquela corda vocal que
não podia ir além dos atributos natos para se fazer ouvir mas, ainda assim,
suficientemente vigorosa.
A
minha tenra idade, o meu olhar escuro, triste e pujado de dó, a minha imagem
dilacerada mas, ainda assim, a deixar transparecer alguma estirpe,
conferiram-me alguns créditos mas nem por isso ele cedeu um mínimo sequer. Por
instinto, fitei-o firmemente, antes de sentir o peso do pânico que se abateu
sobre mim, da cabeça aos pés. As primeiras vítimas foram os meus braços que
tombaram e se colaram ao meu tronco como um servo que obedece ao seu senhor.
Deixei cair o meu olhar, desamparadamente, indo este estacionar junto aos meus pés
descalços.
Nunca
cheguei a saber o que terá passado pela sua cabeça naquele momento. Aquela
postura serene, o olhar frio e cru que me foi servido como entrada povoava
aquele pedaço de chão, onde os meus olhos se tinham estacionado. Podia ter
passado pela minha cabeça esboçar uma fuga, mas para quê? Duas, três ou talvez
quatro valas abertas no meu rosto serviam de curso para a corrente do meu pranto
acrimonioso que arrastava camadas de poeiras aí alojadas. Depois de um olhar
panorâmico e mais umas quantas espreitadelas, de modo a assegurar-se de que eu
estava sozinho, estendeu o seu braço direito, agarrou-me no queixo e
levantou-me a cabeça. Não há perigo, disse, ao mesmo tempo que acariciava o meu
queixo com o seu polegar direito. Não te aflijas. Onde estão os teus pais?, prosseguiu.
Ainda ensaiei a resposta mas não consegui mais do que soluços e lágrimas,
misturadas com alguns murmúrios descoordenados e completamente imperceptíveis.
Acenou com a cabeça, num gesto de compreensão, e agarrou-me pelo braço esquerdo
agudizando ainda mais a minha dor. Espantado ficou quando libertei um grito,
cuja espontaneidade fez lembrar quando se pisa a cauda a um cão distraído.
Soltou o meu braço e olhou para a sua mão ensanguentada. Como quem não acredita
nos próprios olhos, voltou a olhar, mas desta feita para ambas as mãos, como
quem procura diferença entre elas. E havia! Dirigiu-se outra vez para mim, como
se estivesse a dirigir-se à metragens, agarrou--me pelo braço enfermo, uma mão
pelo sovaco e outra pelo pulso, rodou ligeiramente para tentar perceber a
extensão do ferimento. Fitou a sua filha Alisah, que entretanto chegara,
ordenando-lhe que se retirasse.
Ela tinha mais ou menos a minha
idade e foi a primeira a dar pela minha presença na cozinha indo, por isso,
chamar o seu pai, o senhor Abner. Pai, ele está a chorar. Onde estarão os seus
pais? Ciciou ela ao ouvido do seu progenitor antes de se retirar. Terá sido
abandonado? Prosseguiu. Como que abençoando a minha presença e iluminando os
meus primeiros passos naquela casa, ele estendeu na minha direcção a sua enorme
mão direita que abafou completamente a minha, num entrelaçar perfeito, com um
sufoco incapaz de ensaiar qualquer dança, dada a perfeição da fusão. Não sei de
onde terá surgido tão grande confiança, mas foi sentida com à vontade e
deixei-me levar sem temores». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus
Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por
ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.
Cortesia de Colibri/JDACT