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Estrella
«(…)
Telo chegava com a água: o ribeiro vai quase seco. Sempre assim nesta quadra. Tens
uma púcara? Rosinha, vai dentro pela púcara. A menina foi dentro e veio de lá
com uma púcara encardida de sarro. Telo encheu-a de água e deu a Savachão, que
hesitou com relutância. Bebe. A água sabe bem. Não olhes à vasilha. Savachão
bebeu um golo e em seguida sorveu a água toda. Telo oferecia-lhe um naco de
broa. Savachão partiu um pouco e levou à boca. Sentiu em si os olhos da criança
e viu neles a fome: dá à menina, disse, estendendo o resto a Telo. Porque não
lho dás tu?, respondeu Telo, fitando-o acinte nos olhos. Savachão chamou a
criança: anda cá, Rosinha. A menina aproximou-se. Tens um lindo nome. Queres
pão? A criança acenou que sim. Toma. Obrigada, senhor, disse a mãe. Há quanto
tempo não vemos pão! Telo abriu o barrete e apresentou pão e figos. E todos
ali, no sossego da tarde, comeram do que o barrete trazia e beberam da água do
balde pela púcara única. Junto da menina, o cão pedia com os olhos e a pata
levantada. A menina deu-lhe do seu pão, que ele abocanhou. Deus vá convosco,
disse a mulher agradecida, quando eles se deitaram ao caminho. Seguiram estrada
fora. O sol apertava. Telo enfiara o carapuço vazio, a Savachão fazia de
sombreiro a faixa de pano que lhe pensava as feridas.
Sei
que estais a ter uma experiência dolorosa, meu senhor, quebrou Telo o silêncio.
Pchiu!
Quem nos ouve, nesta solidão? A mim custa-me desdobrar a língua e tratar-te por
tu. Mas tu... Sentires a fome e a sede, comeres de esmolas, dirigir-te a
palavra o povoléu sem sombra de respeito e distância... Dão-me aquilo que lhes
tirei. Tirei-lhes o pão, sequei-lhes as terras, roubei-lhes a caça, trouxe-lhes
a viuvez e a orfandade, a miséria e a morte..., e vê tu que me dão amizade e do
pouco que possuem. Que lição! Essa foi a guerra que eu não quis travar..., e
tinha-a em minhas mãos. Maldito rei! Não ouviste dizer? O outro que eu era
mandá-los-ia enforcar por muito menos. Se eu tivesse morrido, estava agora a
penar nas profundas do Inferno. Agradece a Deus ter-te conservado a vida... Um
rei sem reino..., um povo sem pátria... É aqui que devemos penar os nossos
erros.
O
sol declinava. Lá muito atrás o rolar de carros, o patear de alimárias. Era uma
caravana de carriolas e carroças que lá vinha de seu vagar. Quando a primeira
os alcançou, envolveu-os uma nuvem de poeira. Estacaram na berma a deixá-las
passar. Savachão sentou-se na raiz de uma azinheira. Telo encostou-se ao
tronco. As mulas, suadas, tiravam de manso as pesadas cargas, os cães
caminhavam ao lado, as línguas de fora. Nas carriolas cobertas seguiam pessoas.
Pelo vestuário, os lenços de cabeça vermelhos com pintas redondas brancas, os
xailes negros, com franjas, das mulheres, o ,moreno da pele de caras e braços,
reconheceram que eram ciganos. Hou!, regougou do alto da boleia um dos
cocheiros, sacudindo as rédeas. Um dos carros parou e, atrás dele, os outros. Subid,
hombres. La noche no tarda. Telo e o cocheiro, um de baixo e o outro de cima,
ajudaram Savachão a trepar ao assento e daí a pouco seguiam estrada fora. No te
lo dixo yo, veio de trás uma voz feminina, que volveríamos a encontrarnos?
Savachão
voltou-se. No interior do carro, Estrella, entre donas e crianças que
dormitavam, sorria-lhe e começou a falar-lhe em voz baixa. Com aquela perna
doente não iria longe e a noite apanhá-lo-ia no descampado sem manta para se
abrigar nem caldo para conforto do estômago. Não negasse. Ela sabia bem que
eles nada tinham que comer. Não é o comer que me dói. Sim, sim, o mais..., e a
perna. Ela sabia. Quando acampassem para passar a noite, ia ali su madrecita
que sabia de mezinhas e era grande curandeira das feridas que os homens se
faziam uns aos outros ao pegarem-se de rixa e sacarem das navalhas..., suspendia-se
e, com olhar acintoso, acrescentava: ... ou ao meterem-se em guerras..., mas
não se arreceasse, ela sabia guardar um segredo, por grande que fosse...» In
Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia
de Difel/JDACT