terça-feira, 3 de março de 2020

O Pecado e a Honra. Maria João Câmara. «Alguns procuradores emocionaram-se com a vista, primeira, por vezes, do seu Rei, do seu pai, do seu protector. Alguns suavam, já pelo calor da sala, já pelo esforço que tinham de fazer para se manterem em pé…»

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«(…) O início dos trabalhos das Cortes de Évora fora marcado para a manhã do dia 12. Pouco antes das nove horas já findara a missa em S. Francisco e, atravessando o adro da igreja, virando logo ali à esquerda, viam-se gentes vindas de muitas partes do reino. Começavam a chegar ao paço os procuradores das terras que, enchendo a arcaria do piso inferior e subindo uma escada larga e redonda, se iam instalando de pé, logo à entrada da sala do trono, cujas paredes laterais mais não eram do que graciosas janelas em arco de volta perfeita, de vidros pequenos, geometricamente coloridos, deixando ver um gracioso jardim de ambos os lados. As cortinas vermelhas e armoriadas que tapavam as portas conferiam mais cor à sala que, nessa manhã de Novembro, tanto tinha sol como não, tanto se alegrava como entristecia, porque o dia estava intermitente. Ao fundo, do lado oposto à entrada, estava o trono com seu baldaquino adamascado de vermelho e bordejado de cordão de ouro. Os nobres instalavam-se à esquerda do trono e, à direita, os clérigos, numa ordem perfeitamente determinada e respeitada. O burburinho fazia-se ouvir para lá do paço e do convento, mais acima, e só baixou de tom quando os guardas reais içaram as lanças. João saía dos seus aposentos e dirigia-se para o salão. Nesta ocasião solene fez-se preceder pelos arautos, que gritavam a compasso Aqui vem El-Rei de Portugal!, e pelo rei-de-armas que, com grande pompa, levava uma imponente e gigantesca bandeira de seda onde se viam as armas reais: os sete castelos, as quinas, os besantes em aspa, como as chagas de Cristo, nos escudetes já não derribados e as flores-de-lis retiradas.
Atrás, vinham os conselheiros, entre os quais o chanceler Vasco Fernandes Lucena, a quem havia El-Rei encomendado o discurso de abertura. Seguiam-se os desembargadores, os vedores e, finalmente, um grupo numeroso e confuso, que incluía os restantes conselheiros e muitos fidalgos da Casa Real. Entre eles, Henrique, e, a seu lado, Rodrigo, que via pela primeira vez de perto a pessoa real, pelo que era com grande respeito e emoção que ali se encontrava. Recordaria para sempre o momento em que o Rei, ao sair dos seus aposentos para se dirigir a esta sala, cumprimentava alguns dos fidalgos que o aguardavam para o acompanhar, lhes deu a mão a beijar, num gesto de grande favor, e assim fez ao passar por Henrique e depois por ele. Imitando seu pai, Rodrigo ajoelhara imediatamente e, tremendo, tomou a régia mão e beijou-a como se disso dependesse a sua vida. Mantendo a posição de joelhos, os fidalgos ergueram-se apenas quando o Rei prosseguiu o caminho, e incorporaram-se depois no cortejo. No salão, ouvidos os arautos, imediatamente cessou a vozearia. O Rei entrou na sala, atravessou o corredor central que se formou imediatamente na direcção do trono. Foram então gritados Vivas! e as exclamações de júbilo e espanto eram tão mais exuberantes quanto mais distantes os municípios das cidades principais.
Alguns procuradores emocionaram-se com a vista, primeira, por vezes, do seu Rei, do seu pai, do seu protector. Alguns suavam, já pelo calor da sala, já pelo esforço que tinham de fazer para se manterem em pé, por serem velhos, mancos ou doentes... Quanto a El-Rei, alto, enxuto e bem feito, tinha o rosto comprido e barbudo. Os seus cabelos castanhos e corredios mostravam já algumas cãs, que lhe davam grande contentamento pela muita potestade que à sua dignidade real iam acrescentando. O nariz um pouco comprido e derrubado, o seu rosto corado, demonstravam a sua predilecção pelo ar livre e pela caça. Sobre os ombros trazia um manto feito de seda branca, forrado de pele castanha e debruado com rica passamanaria de ouro. Tomou El-Rei assento com elegância e pompa, colocando o manto sobre a perna direita e deixando a descoberto a outra perna. Colocando uma das mangas um pouco acima do pulso, dirigiu o olhar aos procuradores, aos clérigos e aos grandes do reino, a todos e a cada um. Todos eles baixaram a cabeça imediatamente, em sinal de obediência e de submissão. Para seu espanto, o duque de Bragança susteve o olhar por um segundo ficando na impressão d’El-Rei uma sensação de desafio, ainda que ténue. A um gesto seu, tomaram assento os que o podiam tomar, com alívio das cruzes e das pernas: as dignidades eclesiásticas, os duques, os marqueses e os condes. Todos os outros permaneceriam de pé». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.

Cortesia de OdoLivro/JDACT