quarta-feira, 31 de outubro de 2018

A Biblioteca Perdida do Alquimista no 31. Marcello Simoni. «Posso perguntar-lhe uma coisa, magister? Onde entra Filippo Lusignano nesta história? Quando o conheci, não pertencia à corte de Castela, usava o uniforme dos templários e havia renunciado ao seu título de nobreza»

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«(…) Nesse instante entrou na sala um grupo de serviçais trazendo garrafas e bandejas que se perfilou diante da mesa e distribuiu os talheres, as frutas e os petiscos frios do primeiro serviço. Ignazio se preparou para enfrentar um dos mais complicados cerimoniais da corte castelhana, a ceia, composta, segundo o costume, de mais de uma dezena de pratos. Teria preferido partilhar uma refeição frugal com uns poucos comensais, talvez na penumbra de uma taberna. Sentia saudade da lareira doméstica e principalmente da sua mulher, Sibilla. Fazia meses que ele não a via, e o pensamento de tê-la deixado sozinha outra vez lhe atormentava a consciência. Sou o pior dos maridos, disse para si mesmo, tentando imaginar o que ela estaria fazendo na solidão de uma casa vazia, sem o homem que jurara amá-la. Sentiu-se oprimido por um desgosto profundo e por uma ânsia incontida de voltar para junto dela. Porém, o sentimento de culpa se foi tão rápido quanto viera e, um segundo depois, o rosto do mercador estava impassível como sempre. A racionalidade lhe permitia amar apenas em alguns momentos e esconder depressa as emoções. Afastara-se de casa pela enésima vez, era certo, mas não tivera escolha. Para esquecer de vez a melancolia, emborcou um copo de vinho aromatizado.
Galib, enquanto isso, interrogava Willalme a respeito de sua cidade natal, Béziers, posta a ferro e fogo pelos cruzados porque abrigava hereges cátaros. O francês revelou que, logo depois desse acontecimento, fugira, escapando por puro milagre. E a sua família?, perguntou instintivamente o velho. A expressão de Willalme ficou sombria. Estão todos mortos. Com um ar irritado, pegou uma maçã e descascou-a com gestos bruscos. Meu pai, minha mãe, minha irmã... Todos mortos pelos cruzados durante a tomada de Béziers... Não querendo constrangê-lo, Galib aproveitou-se da troca de pratos para mudar de assunto. Depois das frutas e do doce de amêndoa, veio a salada de queijo com azeitonas. Todos pareciam alegres, mas, por trás daquele véu de jovialidade, notava-se uma tensão contida, visível nos rostos contraídos de alguns comensais. O mercador de Toledo percebeu tudo, mas não disse nada.
Posso perguntar-lhe uma coisa, magister? Onde entra Filippo Lusignano nesta história? Quando o conheci, não pertencia à corte de Castela, usava o uniforme dos templários e havia renunciado ao seu título de nobreza. Lusignano é um dos embaixadores mais prestigiados por Fernando III, pois vem da França, explicou Galib, afastando com repugnância um prato de carne temperada com vinagre. Apresentou-se a esta corte há uns sete anos e até agora se comportou de maneira impecável, tanto que a sua majestade lhe facilitou o ingresso na Ordem Militar de Calatrava e a obtenção de uma comenda. E quem é o dominicano sentado à direita do rei? A essas palavras, o velho teve um sobressalto, mas o mercador não se impressionou. Já notara os olhares frequentes que Galib lançava àquela figura. É Pedro Gonzalez Palencia, confessor pessoal de sua majestade, respondeu Galib. Fernando III não dá um passo sem consultá-lo primeiro. Ouvi falar dele, tem fama de profundo conhecedor das Sagradas Escrituras. Ignazio esboçou um sorriso malicioso. Vai dizer-me porque o observa com tanta animosidade?» In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.

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No 31.O Juiz do Egipto. A Justiça do Vizir. Christian Jacq. «Uma personagem seca, de sobrancelhas negras e espessas unidas sobre o nariz, lábios finos, mãos intermináveis e pernas finas, aproximou-se da capela»

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«(…) Geralmente, as hienas varriam o deserto devorando os cadáveres que encontravam e não se aproximavam das povoações. Contrariamente aos seus hábitos, uma dúzia de animais selvagens tinha-se aventurado nos subúrbios de Mênfis, matando um ex-escrivão, Larrot, um bêbado que os seus vizinhos detestavam. Armados de bastões, os habitantes do bairro tinham posto os predadores em fuga, mas todos interpretavam a tragédia como um mau presságio para o futuro de Ramsés cuja autoridade, até ao momento, ninguém havia contestado. No porto de Mênfis, nos arsenais, nas docas, nas casernas, nos bairros de Sicómoro, do Muro do crocodilo, da Escola Médica, nos mercados, nas barracas dos artesãos, corriam de boca em boca as mesmas palavras: o ano das hienas! O país ficaria enfraquecido, a cheia seria má, a terra estéril, os pomares definhariam, faltariam as frutas, os legumes, o vestuário e os unguentos, os Beduínos atacariam as explorações do delta, o trono do Faraó vacilaria. O ano das hienas, a ruptura da harmonia, a fenda na qual se precipitariam as forças do mal!
Murmurava-se que Ramsés, o Grande, mostrara-se impotente para impedir esta catástrofe. É certo que dentro de nove meses teria lugar a festa da regeneração, a qual restituiria ao monarca o poder necessário para enfrentar e vencer a adversidade. Mas não chegaria essa celebração muito tarde? Paser, o novo vizir, era jovem e inexperiente. O facto de ter entrado em funções no ano das hienas conduzi-lo-ia ao fracasso. Se o rei já não protegia o seu povo, todos eles pereceriam na goela voraz das trevas.
Nesse fim do mês de Janeiro, um vento glacial varria a necrópole de Sakkarah, dominada pela pirâmide em degraus do faraó Djeser, gigantesca escadaria em direcção aos céus. Ninguém teria reconhecido o casal confortavelmente vestido que se recolhia na capela do túmulo do sábio Branir, protegidos por uma túnica grossa, feita de tiras de pano cosidas e de mangas compridas, Paser e Néféret liam em silêncio os hieróglifos gravados numa bela pedra calcária: criaturas que viveis na terra e passais perto deste sepulcro, que amais a vida e odiais a morte, pronunciai o meu nome para que eu viva, proferi em meu benefício a fórmula da oferenda. Branir, mestre espiritual de Paser e Néféret, fora assassinado. Quem teria sido capaz da crueldade de lhe espetar uma agulha de madrepérola na nuca, impedi-lo de se tornar sumo-sacerdote de Carnaque e fazer recair a culpa da sua morte no seu discípulo Paser? Ainda que o inquérito não conhecesse qualquer progresso, o casal jurara descobrir a verdade, quaisquer que fossem os riscos envolvidos.
Uma personagem seca, de sobrancelhas negras e espessas unidas sobre o nariz, lábios finos, mãos intermináveis e pernas finas, aproximou-se da capela. Mumificador de profissão, Djuí passava a maior parte do seu tempo a preparar os cadáveres, para os transformar em Osíris. Desejas ver o local do teu túmulo?, perguntou ele a Paser. Vai tu à frente. Esbelto, de cabelos castanhos, fronte larga e alta e olhos verdes acastanhados, o vizir Paser recebera de Ramsés a grande missão de salvar o Egito de uma conspiração que ameaçava o trono. Juiz de província principiante transferido para Mênfis, o jovem Paser, cujo nome significava o vidente, aquele que discerne o longínquo, recusara-se a dar seguimento a uma irregularidade administrativa, trazendo à luz do dia um drama abominável cuja chave lhe fora oferecida pelo rei em pessoa. Os conspiradores haviam eliminado a guarda de honra da esfinge de Gize para ter acesso a um corredor que tinha o seu início entre as patas da gigantesca estátua e conduzia ao interior da grande pirâmide, centro energético e espiritual do país. Tinham violado o sarcófago de Queóps e roubado o testamento dos deuses que legitimava o poder do Faraó. Se este último não fosse exibido aos sacerdotes, à corte e ao povo aquando da festa da regeneração, fixada para o próximo dia vinte de Julho, primeiro dia do novo ano, ele ver-se-ia obrigado a abdicar e a entregar o leme da embarcação do Estado a um ser das trevas». In Christian Jacq, O Juiz do Egipto, A Justiça do Vizir, Bertrand Editora, 1995, ISBN 978-872-250-890-2.

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O Juiz do Egipto no 31 A Justiça do Vizir Christian Jacq. «Afastou o portal da janela de madeira e relanceou o olhar pelo exterior. Ninguém. Com um resmungo, pensou no magnífico dia que se anunciava»

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«Chegou a hora da derradeira e decisiva confrontação neste último volume da trilogia O Juiz do Egipto. Paser, investido no cargo de vizir, e sua esposa Néféret, nomeada médica-chefe do reino, enfrentam o ministro das Finanças, director da Dupla Casa branca, que já não hesita em apresentar-se como o porta-voz dos conspiradores que detêm o testamento dos deuses e se aprontam para derrubar Ramsés o Grande a fim de conquistar o poder supremo. O alto funcionário, que se fazia passar por amigo de Paser, tecera entretanto uma teia tão forte que a situação parece desesperada, desorganizando a economia e orientando-a pela simples lei do lucro, mostra-se decidido a destruir, com os cúmplices, os valores que presidiram ao nascimento da civilização egípcia. O vizir e a esposa, determinados a lutar até ao fim, tentam resistir à tenaz que pouco a pouco se aperta e identificar o assassino do seu mestre espiritual que teve a má sorte de cruzar com a rota dos conspiradores. Mas os aliados são raros... E onde se encontra o irmão de sangue, Suti, que conseguiu fugir da prisão núbia? Acabará o misterioso devorador de sombras por suprimir Paser? Quem é a verdadeira alma da conjura, que se mantém escondida nas trevas? Com a traição e o crime de um lado, e a lei do vizir do outro, quem sairá finalmente vencedor deste combate de que depende a sobrevivência do Egipto?

Rejubila, ó terra inteira!
Foi restaurada a justiça.
E vós, justos, vinde e contemplai,
A justiça triunfou sobre o mal,
Os perversos foram derrubados,
Os ávidos foram condenados.

In Papyrus Sallier (Museu Britânico 1018)

A traição trazia-lhe grandes benefícios. Bochechudo, vermelhusco, balofo, Larrot bebeu a sua terceira taça de vinho branco, congratulando-se pela sua escolha. Quando era escrivão do juiz Paser, tornado vizir de Ramsés, o Grande, trabalhava muito e ganhava pouco. Desde que entrara ao serviço de Bel-Tran, o pior inimigo do vizir, a sua existência prosperava. Em troca de cada informação sobre os hábitos de Paser, recebia uma retribuição. Com o apoio de Bel-Tran e o falso testemunho de um dos seus esbirros, Larrot esperava obter, a qualquer preço, o divórcio de sua mulher e a custódia de sua filha, futura bailarina. Molestado por uma enxaqueca, o ex-escrivão levantara-se antes da alvorada, quando a noite reinava ainda sobre Mênfis, a capital económica do Egipto, situada na junção do Delta e do vale do Nilo. Da ruela, habitualmente tranquila, chegou-lhe o som de murmúrios. Larrot pousou a taça. Desde que traía Paser, bebia cada vez mais, não por remorso, mas porque podia, enfim, comprar vinhos de boas colheitas e cerveja de primeira qualidade. Uma sede inextinguível queimava-lhe a garganta sem cessar.
Afastou o portal da janela de madeira e relanceou o olhar pelo exterior. Ninguém. Com um resmungo, pensou no magnífico dia que se anunciava. Graças a Bel-Tran, ia deixar aquele subúrbio para residir num bairro melhor, próximo do centro da cidade. A partir dessa tarde, instalar-se-ia numa casa de cinco divisões, com um pequeno jardim, no dia seguinte, seria titular de um posto de inspector do fisco, dependente do ministério dirigido por Bel-Tran. Apenas uma contrariedade se apresentava: apesar da qualidade das informações fornecidas a Bel-Tran, Paser não fora ainda eliminado, como se os deuses o protegessem. A sorte acabaria por mudar. Lá fora ouvia-se o som de risos. Perturbado, Larrot colou o ouvido à porta que dava para a ruela. Subitamente, percebeu: tratava-se novamente daquele bando de crianças que se divertia a sujar a fachada das casas com uma pedra ocre! Furioso, abriu a porta sem pensar. Na sua frente, a boca aberta de uma hiena. Uma fêmea enorme, com a baba escorrendo dos beiços e os olhos vermelhos. O animal soltou um grito, semelhante a uma gargalhada do outro mundo, e saltou-lhe à garganta». In Christian Jacq, O Juiz do Egipto, A Justiça do Vizir, Bertrand Editora, 1995, ISBN 978-872-250-890-2.

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No 31. A Lei do Deserto. O Juiz do Egipto. Christian Jacq. « O pôr do Sol rosava as colinas. Àquela hora, Bravo, o cão de Paser, e Vento do Norte, o burro, deviam estar a apreciar a refeição servida por Néféret após um longo dia de trabalho»

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«(…) Os cinco conjurados encontraram-se na quinta abandonada onde era costume reunirem-se. A atmosfera era de júbilo, o plano desenrolava-se como previsto. Depois de terem violado a grande pirâmide de Quéops e roubado as maiores insígnias do poder o côvado em ouro e o testamento dos deuses, sem o qual Ramsés, o Grande, perdia toda a sua legitimidade cada dia que passava mais se aproximavam do seu objectivo. O assassinato dos veteranos que guardavam a esfinge de onde partia o corredor subterrâneo, que lhes permitira introduzirem-se na pirâmide, bem como a eliminação do juiz Paser eram incidentes menores, já esquecidos. Ainda falta o mais importante, disse um dos conjurados, Ramsés continua no poder. Não sejamos impacientes. Fala por ti. Falo por todos, precisamos de tempo para assegurarmos as fundações do nosso futuro império. Quanto mais preso Ramsés se sentir, incapaz de agir, consciente da queda, mais fácil se tornará a nossa vitória. Ele não pode revelar a ninguém que a grande pirâmide foi assaltada e que o centro de energia espiritual, do qual ele é o único responsável, já não funciona. Em breve, as suas forças enfraquecerão, ver-se-á obrigado a viver o ritual da regeneração. Quem o obrigará a isso? A tradição, os sacerdotes e ele próprio! É impossível fugir a esse dever. No fim da festa, deverá mostrar o testamento dos deuses ao povo! Ou seja, este testamento que está nas nossas mãos. Então, Ramsés ver-se-á obrigado a abdicar e entregar o trono ao seu sucessor.
Precisamente aquele que foi designado por nós. Os conjurados sentiam já o sabor da vitória. Ramsés, o Grande, reduzido a escravo, não teria alternativa. Todos os membros da conspiração seriam recompensados segundo os seus méritos e, no futuro, todos ocupariam uma posição privilegiada. O maior país do mundo pertencer-lhes-ia, modificariam as suas estruturas, alterariam o sistema e modelá-lo-iam segundo a sua visão, radicalmente oposta à de Ramsés, prisioneiro de valores decadentes. Enquanto o fruto amadurecia, eles alargavam a sua rede de relações, simpatizantes e aliados. Crimes, corrupção, violência... Nada disto os conjurados rejeitavam. Era esse o preço do poder.

O pôr do Sol rosava as colinas. Àquela hora, Bravo, o cão de Paser, e Vento do Norte, o burro, deviam estar a apreciar a refeição servida por Néféret após um longo dia de trabalho. Quantos doentes teria ela curado, quantos doentes teria ela acolhido na sua casa de Mênfis, com o escritório de Paser no térreo? Ou teria ela regressado à sua aldeia, na região de Tebas, para aí exercer a profissão de médica, longe da agitação da cidade? A coragem do juiz esmorecia. Ele, que dedicara toda a sua vida à justiça, sabia que a mesma nunca lhe seria feita. Nenhum tribunal reconheceria a sua inocência. Supondo que saía da prisão, que futuro poderia ele oferecer a Néféret? Um velho veio sentar-se ao seu lado. Magro, desdentado, com a pele crestada e enrugada, soltou um suspiro. Para mim acabou-se. Estou muito velho. O chefe tirou-me do transporte de pedras. Ocupar-me-ei da cozinha. Boa notícia, hem? Paser abanou a cabeça. Porque é que tu não estás a trabalhar?, perguntou o velho. Não me deixam. Quem é que tu roubaste? Ninguém. Para cá só vêm os grandes ladrões. Roubaram tantas vezes que nunca sairão da prisão, pois não cumpriram o juramento de não voltarem a fazê-lo. Os tribunais não brincam com a palavra dada. Achas que procedem mal? O velho cuspiu para a areia. — Isso é um caso complicado! Tu estás do lado dos juízes? Eu sou juiz. A notícia de que iria ser posto em liberdade não teria espantado mais o interlocutor de Paser. Estás a gozar? Achas que sim? Esta agora... Um juiz, um juiz de verdade! Olhava-o, inquieto e reverente. O que foi que tu fizeste?» In Christian Jacq, A Lei do Deserto, O Juiz do Egipto, 1994, Bertrand Editora, 1996, ISBN 978-972-250-866-7.

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terça-feira, 30 de outubro de 2018

A Lei do Deserto. O Juiz do Egipto. Christian Jacq. «Levantou-se um vento quente que fazia os grãos de areia rodopiar chicoteando a pele. Com um pano branco pela cabeça, Paser não ligava ao vento, recordava as etapas do inquérito»

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«O calor era tão avassalador que apenas um escorpião negro se aventurava na areia do pátio da prisão, que, perdida entre o vale do Nilo e o oásis de Khargeh, a mais de cem quilómetros para oeste da cidade santa de Carnaque, albergava os reincidentes que carregavam pesadas penas de trabalhos forçados. Quando a temperatura o permitia, os prisioneiros conversavam na pista que ligava o vale ao oásis, e era cruzada por caravanas de burros transportando mercadorias. Pela décima vez, o juiz Paser apresentou o seu pedido ao chefe do campo, um colosso sempre pronto a castigar os indisciplinados. Não suporto o regime privilegiado de que beneficio. Quero trabalhar como os outros. Esguio, bastante alto, de cabelos castanhos, face larga e alta e olhos verdes acastanhados, Paser, cujos traços haviam perdido a juventude, mantinha uma distinção que impunha respeito. Tu não és como os outros. Sou um prisioneiro.
Mas não foste condenado. Estás aqui em segredo. Para mim, tu nem existes. O registo não tem nome nem número de identificação. Mas isso não me impede de partir pedras. Volta para o teu lugar. O chefe do campo desconfiava deste juiz. Pois não tinha ele deixado o Egipto inteiro boquiaberto, ao instruir o processo do famoso general Asher, acusado pelo melhor amigo de Paser, o tenente Suti, de ter torturado e assassinado um batedor, e de colaborar com inimigos de longa data, os Beduínos e os Líbios?
O cadáver do infeliz não fora encontrado no local indicado por Suti. Os jurados, não podendo condenar o general, contentaram-se em pedir um inquérito suplementar, investigação que gorou, uma vez que Paser, caindo numa armadilha, fora acusado de assassinar o seu pai espiritual, o sábio Branir, futuro sumo-sacerdote de Carnaque. Apanhado em flagrante delito, fora preso e deportado, à margem da lei. O juiz estava sentado à escriba na areia escaldante. Não parava de pensar na mulher, Néféret. Durante muito tempo, julgara que ela nunca viria a amá-lo, depois, a felicidade chegou, forte como o sol de Verão. Uma felicidade despedaçada, um paraíso de onde fora expulso sem esperança de regressar.
Levantou-se um vento quente que fazia os grãos de areia rodopiar chicoteando a pele. Com um pano branco pela cabeça, Paser não ligava ao vento, recordava as etapas do inquérito. Pequeno magistrado de província, perdido na grande cidade de Mênfis, tivera o azar de se mostrar demasiadamente consciencioso ao examinar em pormenor uma documentação algo estranha. Descobrira o assassinato de cinco veteranos que formavam a guarda de honra da grande esfinge de Gize uma carnificina disfarçada de acidente, o roubo de uma grande quantidade de ferro celeste destinado aos templos, e uma conspiração envolvendo altas personalidades. Mas não conseguira provar de forma definitiva a culpa do general Asher e a sua intenção de destronar Ramsés, o Grande. E, quando tinha finalmente conseguido obter plenos poderes para ligar entre si os elementos dispersos, o azar batera-lhe à porta. Paser lembrava-se de todos os momentos daquela noite terrível. A mensagem anónima avisando-o de que o seu mestre Branir corria perigo, a corrida desvairada pelas ruas da cidade, a descoberta do cadáver do sábio Branir, uma agulha de madrepérola espetada no seu pescoço, a chegada do chefe da polícia, que não hesitou em considerar Paser um assassino, a sórdida cumplicidade do deão do pórtico, o mais alto magistrado de Mênfis, o seu transporte em segredo para a prisão e, quando o seu fim chegasse, uma morte solitária sem que a verdade viesse a ser conhecida. A trama fora organizada com a máxima perfeição. Com o apoio de Branir, o juiz poderia ter investigado nos templos e identificado os ladrões do ferro celeste. Mas o seu mestre tinha sido eliminado, tal como os veteranos, por misteriosos agressores cujos fins continuavam obscuros. O juiz chegara à conclusão de que entre eles figuravam uma mulher e vários homens de origem estrangeira, as suas suspeitas recaíam sobre o químico Chéchi, o dentista Qadash e a mulher do transportador Denes, homem rico, influente e desonesto, mas não tinha certeza de nada.
Paser resistia ao calor, às tempestades de areia e à comida intragável, porque queria sobreviver, apertar Néféret nos braços e ver a justiça florescer de novo. O que teria inventado o deão do pórtico, seu superior hierárquico, para explicar o seu desaparecimento? E que calúnias espalharia a seu respeito? Fugir, era uma utopia, ainda que o campo se abrisse sobre as colinas vizinhas. A pé, não iria longe. Tinham-no mandado para ali, para que ali definhasse. Quando estivesse fraco, consumido, quando tivesse perdido a última réstia de esperança, divagaria, como um pobre louco repetindo incoerências. Nem Néféret nem Suti o abandonariam. Recusariam qualquer mentira e qualquer calúnia, procurá-lo-iam por todo o Egipto. Tinha de ser optimista e deixar o tempo correr-lhe nas veias». In Christian Jacq, A Lei do Deserto, O Juiz do Egipto, 1994, Bertrand Editora, 1996, ISBN 978-972-250-866-7.

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O Juiz do Egipto. A Pirâmide Assassinada. Christian Jacq. « Quem sabe se aquele subterrâneo não os desviaria do seu objectivo? Circulavam mapas falsos a fim de enganar eventuais ladrões, seria aquele que possuíam o correcto?

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«(…) Dobrados em dois, batendo muitas vezes com a cabeça no tecto de calcário, encetaram uma marcha forçada através da passagem estreita, em direcção à parte subterrânea da grande pirâmide. Iam calados, à memória vinha-lhes aquela fábula sinistra segundo a qual um espírito partia o pescoço a quem tentasse violar o túmulo de Quéops. Quem sabe se aquele subterrâneo não os desviaria do seu objectivo? Circulavam mapas falsos a fim de enganar eventuais ladrões, seria aquele que possuíam o correcto? Chocaram com uma parede de pedra que atacaram com cinzéis, por sorte, os blocos, pouco pesados, giraram sobre si mesmos. Os conjurados penetraram numa grande câmara de terra batida, com três metros e cinquenta de altura por catorze de comprimento e oito de largura. No centro, havia um poço. A câmara baixa... Estamos na grande pirâmide! Tinham conseguido.
O corredor, esquecido há tantas gerações, conduzia da esfinge ao gigantesco monumento de Quéops cuja primeira sala se situava trinta metros abaixo da base. Aqui, nesta matriz, evocação do seio da terra-mãe, tinham sido praticados os primeiros ritos de ressurreição. Agora, tinham de descer por um poço que conduzia ao interior da massa rochosa e desembocava no corredor que começava do outro lado das três buchas de granito. O mais ágil trepou agarrando-se às saliências da rocha e apoiando-se com os pés, quando chegou lá acima, atirou a corda que levava amarrada à cintura. Um dos conjurados quase desmaiou com falta de ar, os companheiros levaram-no até à grande galeria, onde se recompôs. A imponência do local deixou-os fascinados. Que mestre de obras teria sido tão louco a ponto de construir tal dispositivo constituído por sete socalcos de pedra? Com quarenta e sete metros de comprimento e oito e meio de altura, a grande galeria, obra única pelas suas dimensões e localização mesmo no coração da pirâmide, desafiava o tempo. Os mestres de obras de Ramsés haviam afirmado que jamais arquiteto algum realizaria proeza semelhante. Um dos conjurados, intimidado, pensou em desistir, o chefe da expedição obrigou-o a continuar empurrando-o violentamente para a frente. Desistir tão perto do fim teria sido estúpido, até agora, podiam felicitar-se pelo rigor do plano traçado. Contudo, uma dúvida permanecia: teriam as grades de pedra, colocadas entre a extremidade superior da grande galeria e o início do corredor de acesso à câmara do rei, sido baixadas? Se assim não fosse, não conseguiriam contornar o obstáculo e teriam de regressar derrotados. O caminho está livre.
Ameaçadoras, as cavidades destinadas aos enormes blocos estavam vazias. Os cinco conjurados tiveram de se curvar para conseguirem entrar na câmara do rei, cujo tecto era formado por nove blocos de granito de quatrocentas toneladas cada um. Com seis metros de altura, a sala protegia o coração do império. O sarcófago do faraó repousava num chão de prata que mantinha a pureza do local. Hesitaram. Até agora, haviam-se comportado como exploradores em busca de um país desconhecido. É certo que tinham cometido três crimes e teriam de responder por eles perante o tribunal do outro mundo, mas não tinham eles agido para o bem do país e do povo ao prepararem o destronamento de um tirano? Se abrissem o sarcófago, se o despojassem dos seus tesouros, estariam a violar a eternidade, não a de um homem mumificado, mas a de um deus presente no seu corpo de luz. Cortariam o último laço com uma civilização milenar com o objectivo de fazer surgir um novo mundo que Ramsés jamais aceitaria. Tinham vontade de fugir embora experimentassem uma sensação de bem-estar. O ar chegava-lhes por dois canais escavados nas paredes norte e sul da pirâmide. Uma estranha energia emanava do lajedo insuflando-lhes uma força desconhecida. Então era assim que o faraó se regenerava, absorvendo a força nascida da pedra e da forma do edifício! O tempo esgota-se». In Christian Jacq, O Juiz do Egipto, A Pirâmide Assassinada, 1993, Bertrand Editora, 1996, ISBN 978-972-250-835-3.

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O Juiz do Egipto. A Pirâmide Assassinada. Christian Jacq. «… os homens construíam pirâmides e cultivavam pomares para os deuses, dessa bendita época em que uma simples esteira bastava para as necessidades de todos e todos eram felizes»

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«Ele é juiz numa província do Sul, ela é médica em Mênfis, a grande cidade do Norte. Paser jamais deveria ter encontrado a bela Néféret. Mas Paser é chamado a Mênfis, cidade próxima da grande pirâmide de Gize. Em conformidade com as profecias de um velho sábio, o crime espalhou-se, uma monstruosa conspiração está em curso para destronar Ramsés, o Grande. Nada a poderá deter. Nada, a não ser um grão de areia: o olhar atento de um juiz subalterno que se recusa a assinar um documento administrativo que não entende. Com a ajuda do seu amigo de infância Suti, que foge da escola de escribas para viver rodeado de mulheres e trilhar o caminho dos heróis, o juiz Paser parte em busca da verdade. No caminho encontra a bela Néféret, vítima do ódio do médico-chefe do reino. Um amor impossível, uma tentativa de golpe de Estado, crimes, o triunfo da mentira: não será este um fardo pesado demais para os ombros de um juiz subalterno?
Aconteceu o que os antepassados vaticinaram. O crime propagou-se, a violência invadiu os corações, a infelicidade assola o país, o sangue corre, o ladrão enriquece, o sorriso apagou-se, os segredos foram divulgados, as árvores arrancadas, a pirâmide violada, o mundo desceu tão baixo que um pequeno número de loucos se apoderou do trono, e os juízes são perseguidos. Mas lembrem-se do respeito à Regra, da justa sucessão dos dias, dos dias felizes em que os homens construíam pirâmides e cultivavam pomares para os deuses, dessa bendita época em que uma simples esteira bastava para as necessidades de todos e todos eram felizes.

Uma noite sem lua envolvia a grande pirâmide num manto de trevas. Uma raposa das areias introduziu-se furtivamente no cemitério dos Nobres que, no além, continuavam a venerar o faraó. O monumento onde apenas Ramsés, O Grande, entrava uma vez por ano a fim de prestar homenagem a Quéops, o seu glorioso antepassado, era vigiado por guardas, corria o boato de que a múmia do pai da pirâmide mais alta estava encerrada num sarcófago de ouro coberto de riquezas incalculáveis. Mas quem ousaria aproximar-se de tesouro tão bem guardado? Ninguém, à excepção do soberano, podia transpôr a porta de pedra e encontrar o caminho certo no labirinto do gigantesco monumento. O corpo de elite encarregado de o proteger disparava o arco sem aviso, várias flechas trespassariam o imprudente ou o curioso. O reinado de Ramsés era feliz, próspero e em paz, o Egipto resplandecia aos olhos do mundo. O faraó era o mensageiro da luz, os cortesãos serviam-no com respeito, o povo louvava o seu nome.
Os cinco conjurados saíram juntos de uma cabana de operários onde se haviam escondido durante o dia, repetiram o plano vezes sem conta para terem a certeza de não deixarem escapar nenhum pormenor. Se o concretizassem, tornar-se-iam mais cedo ou mais tarde donos do país e imprimir-lhe-iam o seu cunho. Vestidos com uma túnica de linho grosseiro, atravessaram o planalto de Gize, mas não sem lançarem olhares febris à grande pirâmide. Atacar os guardas seria uma loucura, antes deles, já outros haviam tentado apoderar-se do tesouro sem o conseguirem. Um mês antes, a grande esfinge fora libertada da camada de areia acumulada por várias tempestades. O gigante, de olhos permanentemente erguidos para o céu, era alvo de menos cuidada protecção. O seu nome de estátua viva e o terror que inspirava eram suficientes para afastar os profanos. A esfinge, faraó de corpo de leão esculpido na rocha calcária em tempos que não cabem na memória, fazia nascer o Sol e conhecia os segredos do Universo. A sua guarda de honra era formada por cinco veteranos. Dois deles, encostados à parte de fora do muro, dormiam a sono solto. Não veriam nem ouviriam nada. O mais ágil dos conjurados escalou o muro, resoluto e silencioso, estrangulou o soldado que dormia perto do flanco direito da fera de pedra, aniquilando de seguida o companheiro, que se encontrava perto do quarto dianteiro esquerdo do animal.
Os outros conjurados juntaram-se a ele. Eliminar o terceiro veterano não seria tão fácil. O chefe dos guardas estava postado frente à esteia de Tutmósis IV, erguida entre as patas dianteiras da esfinge, para lembrar aos homens que esse faraó lhe devia o seu reinado. Armado com uma lança e um punhal, o soldado defender-se-ia. Um dos conjurados despiu a túnica. Nua, avançou para o guarda. Surpreso, ele fitou a aparição. Não seria aquela mulher um dos demónios da noite que vagueavam pelas pirâmides para roubar as almas? Ela aproximou-se sorrindo. Desnorteado, o veterano levantou-se agitando a lança, o braço tremia-lhe. Ela parou. Para trás, fantasma, arreda-te daqui!  Não te vou fazer mal. Deixa-me acariciar-te. O olhar do chefe da guarda estava preso ao corpo nu, àquela mancha branca na escuridão. Hipnotizado, deu um passo em frente. Quando a corda se enrolou à volta do seu pescoço, o veterano largou a lança, caiu de joelhos, tentando em vão gritar, e desfaleceu. O caminho está livre.
Vou preparar as candeias. Os cinco conjurados, em frente à esteia, consultaram pela última vez o plano e encorajaram-se mutuamente a continuar, apesar do medo que os atormentava. Deslocaram a esteia e contemplaram o vaso selado que assinalava a localização da boca do inferno, da porta das entranhas da terra. Afinal, não era lenda! Vejamos se existe mesmo uma passagem. Por baixo do vaso estava uma laje com uma argola. Eram precisos quatro para a levantar. Um corredor estreito, muito baixo e quase a pique, mergulhava nas profundezas. Depressa, as candeias! Deitaram o óleo de pedra, muito gorduroso e fácil de inflamar em taças de dolerite. O faraó interditara o seu uso e a sua venda pois o fumo negro que resultava da combustão fazia perigar a saúde dos artesãos encarregados da decoração de templos e sepulturas, e sujava os tetos e as paredes. Os sábios afirmavam que este petróleo, como lhe chamavam os bárbaros, era uma substância nociva e perigosa, uma exsudação maligna das pedras, carregada de miasmas. Mas os conjurados não se preocuparam com isso»». In Christian Jacq, O Juiz do Egipto, A Pirâmide Assassinada, 1993, Bertrand Editora, 1996, ISBN 978-972-250-835-3.

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A Pedra da Luz. A Mulher Sábia. Christian Jacq. «Um jovem guarda correu na direção de Sobek. Chefe, chefe! Há outros a chegarem! Mais auxiliares? Não... Soldados com arcos e lanças!»

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«(…) O guarda imobilizou-se diante de um nicho escavado na parede da cerca. Existia ali uma estatueta de Maet, a patrona da aldeia. Tendo sobre a cabeça a retriz, a pena que permite às aves orientarem-se, a frágil deusa encarnava o ideal da confraria, a sua aspiração à harmonia e à rectidão, elementos indispensáveis da criação artística. Não se dizia que cumprir Maet era fazer o que Deus ama? Sobek respirava mal. O ar quente tornava-se cada vez mais opressivo, o perigo aproximava-se. Para tentar acalmar-se, contemplou a colina do Ocidente, ponto culminante da montanha tebana em forma de pirâmide. Segundo a lenda, tinham sido os primeiros talhadores de pedra da confraria que assim tinham modelado a rocha para fazer eco, no Sul, às pirâmides do Norte. Como todos, o guarda sabia que a colina sagrada abrigava uma terrível serpente fêmea, A que ama o silêncio, e que uma barreira cada vez mais difícil de franquear impedia os profanos de perturbar a sua serenidade. Os faraós tinham colocado as respectivas Moradas de Eternidade sob a sua protecção e a ela tinham os aldeões confiado as suas esperanças. A colina, com quatrocentos e cinquenta metros de altitude, ficava situada no eixo dos templos construídos pelos faraós para fazerem brilhar o ka, a energia inesgotável espalhada no universo; dispostos em leque em seu redor, prestavam-lhe uma homenagem permanente. Sobek gostava de a contemplar ao pôr do Sol, quando a penumbra cobria o deserto, os campos cultivados e o Nilo; apenas o cume permanecia iluminado, como se a noite não tivesse qualquer domínio sobre ele. Um vigia agitou os braços, outro gritou.
Sobek correu imediatamente em direcção ao primeiro fortim onde a barafunda atingia o auge; os guardas rodeavam uma dezena de condutores de burro, dominados pelo pânico, que protegiam a cabeça com as mãos para evitar as pancadas dos bastões, enquanto os animais se espalhavam em todas as direcções. Parem, ordenou Sobek, são auxiliares! Tomando consciência do seu erro, os guardas pararam de bater. Tivemos medo, chefe, desculpou-se um deles. Julgámos que queriam forçar a barragem. Como todos os dias, os auxiliares traziam água, peixe, legumes frescos, óleo e outros produtos de que os aldeões tinham necessidade. Os mais corajosos recuperaram os burros, os outros gemiam ou protestavam. O chefe Sobek teria de redigir um enorme relatório para explicar o incidente e justificar o comportamento dos seus subordinados.
Tratem dos feridos, ordenou, e mandem descarregar os burros. Quando o cortejo chegou à vista da porta principal da aldeia, esta entreabriu-se para deixar sair as esposas dos artesãos. Simultaneamente sacerdotisas de Hathor e donas de casa, recolheram os alimentos em silêncio. Antes da morte de Ramsés o Grande, aquele momento era ocasião para discutirem, se apostrofarem, rirem por qualquer coisa e altercarem, pelo menos aparentemente, para conseguirem a melhor carne, os melhores frutos ou o melhor queijo. Desde o desaparecimento do grande monarca, até mesmo as crianças permaneciam mudas e as mães não tinham vontade de brincar com elas. Acocoravam-se para executar o trabalho quotidiano por excelência, o amassar da pasta que serviria para fazer o pão e a cerveja. Quanto tempo ainda poderiam executar esses gestos simples, prelúdio da felicidade de uma refeição tomada em família? Um jovem guarda correu na direção de Sobek. Chefe, chefe! Há outros a chegarem! Mais auxiliares? Não... Soldados com arcos e lanças!

Mehi, tesoureiro-principal de Tebas, andava de um lado para o outro na sala de recepções da sua sumptuosa mansão. Financeiro ímpar e grande manipulador de números, o senhor oculto da região era também o comandante muito apreciado das forças armadas, que beneficiavam das suas benesses. O rosto redondo, os cabelos muito negros colados ao crânio, os olhos de um castanho-escuro, os lábios grossos, as mãos e os pés gorduchos, o torso largo e poderoso, seguro de si e da sua capacidade de sedução, Mehi estava obcecado por um objectivo aparentemente inacessível: apoderar-se dos imensos tesouros do Lugar de Verdade. Sabia que os artesãos produziam incríveis riquezas na Morada do Ouro e vira a Pedra de Luz que lhes servia para se iluminarem quando penetravam nas trevas de um túmulo do Vale dos Reis. Para fugir sem ser identificado, Mehi desembaraçara-se de um guarda. A carta anónima enviada a Sobek a fim de acusar de assassínio Néfer o Silencioso não produzira infelizmente os efeitos desejados, visto que a intervenção da misteriosa Mulher Sábia do Lugar de Verdade e o inquérito do tribunal tinham ilibado o artesão. Mas o comandante permanecia inatacável e a sua ascensão continuara, à custa do desaparecimento do sogro, que organizara eficientemente, e da cumplicidade da sua deliciosa esposa, Serketa, tão encantadora como um escorpião, mas ambiciosa, ávida e impiedosa como ele». In Christian Jacq, A Pedra da Luz, A Mulher Sábia, 1995(?), Bertrand Brasil, ISBN 978-852-860-772-7.
                                                                                      

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segunda-feira, 29 de outubro de 2018

A Pedra da Luz. A Mulher Sábia. Christian Jacq. «Sem a protecção do Faraó, o que seria da modesta comunidade onde trabalhavam trinta e dois artesãos, distribuídos na tripulação da direita e na tripulação da esquerda, do navio ao qual era comparada a aldeia?»

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«O perigo rondava, obsessivo. Desde a morte de Ramsés o Grande, depois de sessenta e sete anos de reinado, o Lugar de Verdade vivia mergulhado na angústia. Situado na margem ocidental de Tebas, a aldeia secreta e fechada dos artesãos, cujo papel principal consistia em escavar e decorar os túmulos dos reis e rainhas, interrogava-se sobre a sua sorte. No final dos setenta dias de mumificação do ilustre defunto, que decisões tomaria o novo faraó, Merneptah, de sessenta e cinco anos? Filho de Ramsés, passava por ser um homem autoritário, justo e severo; mas saberia fazer abortar as inevitáveis conspirações e desembaraçar-se dos intrigantes que desejavam ocupar o trono dos vivos e apoderar-se das Duas Terras, o Alto e o Baixo Egipto? Ramsés o Grande tinha sido o generoso protector do Lugar de Verdade e da confraria dos artesãos, que dependia directamente do rei e do primeiro-ministro, o vizir; possuía o seu próprio tribunal e dispunha de um fornecimento quotidiano de alimentos. Liberto de preocupações materiais, podia consagrar-se à sua obra vital para a sobrevivência espiritual do país.
Encarregado da segurança da aldeia na qual não tinha o direito de penetrar, o chefe Sobek perdera o sono. Armado com uma espada, uma lança e um arco, percorria constantemente o território colocado sob a sua responsabilidade e verificava várias vezes por dia o dispositivo de vigilância que instalara. É certo que os dois guardas da grande porta da aldeia cumpriam a sua função habitual, um das quatro horas da manhã às quatro da tarde e o outro das quatro horas da tarde às quatro horas da manhã; vigorosos, bons manejadores dos cajados, impediam os profanos de penetrar no interior do recinto onde viviam os artesãos do Lugar de Verdade e as famílias. E havia também os cinco muros, ou seja, os fortins dispostos no caminho que conduzia à aldeia. Mas essas medidas habituais não bastavam a Sobek, um grande núbio atlético cujo rosto era marcado por uma cicatriz sob o olho esquerdo; ordenara aos seus homens que estivessem permanentemente de atalaia nas colinas dos arredores, que vigiassem os caminhos que conduziam ao Ramesseum, o Templo dos Milhões de Anos de Ramsés o Grande, e os carreiros que iam dar aos Vales dos Reis e das Rainhas.
Se surgissem perturbações graves, os amotinados atacariam o Lugar de Verdade onde, segundo os rumores, os artesãos eram capazes de produzir fabulosas riquezas e mesmo de transformar cevada em ouro. Sem a protecção do Faraó, o que seria da modesta comunidade onde trabalhavam trinta e dois artesãos, distribuídos na tripulação da direita e na tripulação da esquerda, do navio ao qual era comparada a aldeia? Sobek talvez fosse o seu último defensor, mas não fugiria e resistiria até ao fim. Embora sendo do exterior, o guarda acabara por afeiçoar-se à maior parte dos habitantes que tinha o dever de proteger; sem ser ele próprio um artesão e sem conhecer os seus segredos, tinha no entanto o sentimento de participar na sua aventura e não conseguia imaginar a sua existência longe deles.
Era por isso que o afligia um outro tormento: não se ocultaria um assassino no seio da confraria e não ameaçaria a existência do mestre-de-obras Néfer o Silencioso, outrora injustamente acusado por uma carta anónima e depois ilibado do crime cometido na pessoa de um guarda? O chefe Sobek não conseguira identificar nem o culpado nem o autor da missiva e perguntava a si mesmo se não se trataria de um colega de Néfer, ciumento da sua ascensão. Mas o guarda tinha outra pista a seguir, pois desconfiava que Abri, o administrador-principal da margem oeste de Tebas, estava metido numa conspiração que ameaçava destruir o Lugar de Verdade. Infelizmente, o desaparecimento de Ramsés o Grande arriscava-se a alterar a situação a ponto de a tornar incontrolável. Como chefe da equipe da direita, Néfer tinha o dever de fazer o que é luminoso no lugar de luz, de traçar os planos e distribuir o trabalho em função das competências de cada um. E descansavam sobre os seus ombros responsabilidades ainda mais pesadas desde o recente desaparecimento de Kaha, o chefe da equipa da esquerda, ao qual sucederia o filho espiritual, Hai, sem experiência e grande admirador de Néfer, considerado como o verdadeiro chefe da confraria. Até mesmo Kenhir, o velho escriba do Túmulo, representante do poder central, o tratava com deferência; o alto funcionário encarregado de gerir correctamente a confraria que usava o nome simbólico de Grande e Nobre Túmulo dos Milhões de Anos a Ocidente de Tebas, reconhecera em Néfer um mestre-de-obras excepcional, cuja autoridade era incontestável. Mas seria Néfer o Silencioso capaz de lutar contra as forças das trevas que atacavam o Lugar de Verdade? Saberia ele, o capitão da equipa dos homens do interior, tomar consciência da gravidade do perigo e teria os meios para lhe fazer face? Preso à realização da obra segundo a regra que tinha sido aplicada pelos seus predecessores, Néfer talvez tivesse esquecido a crueldade e a avidez do mundo exterior. Bastaria a sua magia pessoal para afastar a desgraça?» In Christian Jacq, A Pedra da Luz, A Mulher Sábia, 1995(?), Bertrand Brasil, ISBN 978-852-860-772-7.

Cortesia deBertrandB/JDACT

O Faraó Negro. Christian Jacq. «Conduz à pior das mortes, a da consciência. O que tencionas fazer? Implorei a Amon que iluminasse o meu caminho e ele respondeu-me»

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«(…) Piankhi imobilizou-se em frente de um enorme leão de calcário, cujos traços eram de uma extrema delicadeza. Na Núbia, Amon gostava de tomar a forma dessa fera, porque o nome do leão em hieróglifos era mai, aquele que vê. E nem o homem que se escondia no canto de um compartimento escuro escapava ao olhar do Criador. Na base da estátua, uma inscrição: O deus que reconhece o seu fiel, Aquele cuja aproximação é doce e vem ao encontro do que a implorou. Por cima da fera de pedra, um baixo-relevo evocava a oferenda do arco. O senhor divino abrira o caminho: era necessário continuar a lutar.
O fim da tarde era de uma inefável doçura. Era o momento em que os pastores tocavam flauta, em que os escribas poisavam os pincéis, em que as donas de casa concediam finalmente repouso a si próprias, contemplando o sol poente. A faina terminava, as fadigas do dia eram esquecidas durante esses instantes mágicos que os velhos sábios consideravam a expressão da plenitude. Quando Piankhi penetrou no quarto da sua esposa principal, mergulhado na obscuridade, julgou a princípio que ela estava ausente; depois viu-a na varanda, absorvida pelo espectáculo único e sempre renovado que lhe ofereciam os últimos clarões do astro da vida. Com trinta e cinco anos, Abilé estava no auge do seu esplendor. Alta, esguia, de rosto ovalado semelhante ao de Nefertiti e pele acobreada, tinha um porte real. Piankhi afastara as pretendentes oficiais para desposar aquela filha de um sacerdote sem fortuna mas especialista dos rituais egípcios e que soubera transmitir-lhe os seus conhecimentos. O tempo não tinha qualquer efeito sobre a sumptuosa núbia. Pelo contrário, a maturidade embelezara-a e aperfeiçoara-a e as mais belas sedutoras de Napata tinham renunciado a desafiá-la. Como única indumentária, Abilé envergava uma longa camisa de linho transparente. Soltara os cabelos perfumados e deixava que os últimos fulgores do poente dançassem sobre o seu corpo de deusa. Quando a noite se estendeu sobre o reino de Piankhi, voltou-se para vestir mais qualquer coisa. Foi então que o viu. Estás aqui há muito tempo? Não ousei interromper a tua meditação. Tomou-a apaixonadamente nos braços, como se tivessem estado separados há longos meses. Mesmo que estivesse furiosa com ele, Abilé não teria conseguido resistir à sua magia. Sentir-se protegida, amada por aquele rei simultaneamente forte e sensível, enchia-a de uma alegria que as palavras não eram capazes de descrever. A caçada foi boa? A corte não terá falta de carne... Mas isso não a impedirá de murmurar. Tens receio dela? Quem negligenciar uma conspiração não merecerá reinar. Abilé poisou a face no ombro de Piankhi. Uma conspiração... É assim tão grave? Estará a rainha do Egipto mal informada? Julgava que esses rumores não tinham fundamento. Não é a opinião de Cabeça-fria. Cabeça-fria... Dás sempre ouvidos aos conselhos desse escriba? Censuras-me por isso? Abilé afastou-se de Piankhi.
Tens razão, meu amor. Cabeça-fria não te trairá. Uma das tuas esposas secundárias, alguns sacerdotes invejosos, uma dezena de cortesãos estúpidos e um ministro demasiado ambicioso... Como levá-los a sério, quando reinas há vinte anos e o mais humilde dos teus súbditos se deixaria matar por ti! A vaidade é um veneno incurável, Abilé. Conduz à pior das mortes, a da consciência. O que tencionas fazer? Implorei a Amon que iluminasse o meu caminho e ele respondeu-me». In Christian Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand Editora, 1998, ISBN 978-972-251-049-3.
                     
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O Faraó Negro. Christian Jacq. «E o pequeno santuário de Tutankhamon tinha sido piedosamente conservado, tal como as estátuas dos deuses cuja presença era garante da transmissão do espírito»

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«(…) O faraó negro ergueu os olhos para o pico do Gebel Barkal. Como vês, Cabeça-fria, esta obra sobreviver-me-á. Só o que está gravado numa pedra viva atravessará os anos. Convencido que o rei não detectara a gravidade das suas informações, o escriba julgou seu dever insistir. Não se trata de recriminações vulgares, Majestade, mas de um verdadeiro ataque contra a vossa pessoa. Para ser franco, julgo mesmo que uma das vossas esposas secundárias está metida nisto. Temos de nos preocupar com tanta mediocridade? O caso é sério, Majestade. Cabeça-fria merecia o seu nome. A sua perseverança provava que não tinha investigado superficialmente. Perder o meu trono... Será assim tão catastrófico? Para o vosso povo e para o vosso país, sim! O que se prepara para vos suceder não tem as mesmas preocupações que o vosso pai e vós mesmo. Só sonha apoderar-se do ouro da Núbia e gozar a sua fortuna.
O argumento tocou Piankhi. Importava-lhe pouco retirar-se, mas ver destruir a obra de várias gerações era-lhe insuportável. Vou ao templo. O meu pai Amon guiar-me-á. Cabeça-fria teria preferido que o monarca reunisse a corte o mais rapidamente possível e cortasse a direito com a sua autoridade habitual. Mas sabia que o soberano não voltaria atrás na sua decisão. Construído no sopé da Montanha Pura e sob a sua protecção, o templo de Amon era o orgulho do faraó negro. Longe de Tebas, tinha reconstituído o domínio do senhor dos deuses: uma álea de carneiros, incarnação de Amon, um primeiro pilone cujos dois maciços simbolizavam o Ocidente e o Oriente, um primeiro pátio de colunas onde eram recebidos os dignitários na altura das festas, um segundo pilone, uma segunda sala de colunas, depois o templo coberto, rodeado de capelas e terminando no santuário onde apenas o faraó podia penetrar para abrir de madrugada as portas do nãos que continha a estátua divina, expressão concreta do seu poder imaterial. Piankhi saudava-a, perfumava-a, renovava os tecidos que a cobriam, oferecia-lhe a essência dos alimentos e tornava a colocá-la no interior da pedra primordial, no coração do mistério da origem.
Durante a tarde, o templo estava mergulhado em silêncio. Os ritualistas limpavam os objectos de culto nos gabinetes que lhes eram reservados e as figuras divinas gravadas nas paredes dialogavam entre si. Um sacerdote de Karnak ter-se-ia julgado em casa se tivesse penetrado no domínio sagrado pacientemente construído por Piankhi e que este embelezava constantemente a fim de honrar a memória dos prestigiosos faraós que tinham trabalhado aqui, em Napata, para fazer brilhar a mensagem de Amon. No interior do templo estavam conservadas as esteias de Tutmósis m, o modelo do faraó negro, e de dois outros reis do Egipto que ele venerava, Seti i e Ramsés n. Para ele, esses três monarcas incarnavam a grandeza das Duas Terras, em harmonia com a vontade divina, e tinham exercido a função suprema com um rigor e um amor incomparáveis.
E o pequeno santuário de Tutankhamon tinha sido piedosamente conservado, tal como as estátuas dos deuses cuja presença era garante da transmissão do espírito. À medida que se avançava para o interior do templo, o espaço reduzia-se e a luz diminuía, até se concentrar no nãos cuja claridade secreta só era visível para os olhos do coração. O mistério da vida nunca seria explicado, mas podia ser vivido e partilhado». In Christian Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand Editora, 1998, ISBN 978-972-251-049-3.
                     
Cortesia de BertrandE/JDACT

A Pedra da Luz. Christian Jacq. «O que te aconteceu, Ardente? Quero desenhar e pintar. Mas tu és um camponês, filho de camponês!»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A partir das sete horas, o núbio recebia os vigias que tinham estado nos postos durante a noite. À pergunta: nada a assinalar?, eles respondiam: nada, chefe, e iam-se deitar. Mas naquela manhã, o primeiro vigia não dissimulava o seu embaraço. Há um problema, chefe. Explica-te. Um dos nossos homens morreu esta noite. Uma agressão?, inquietou-se Sobek. Parece que não... Caso contrário, teríamos detectado o culpado. Quer ver o cadáver? Sobek saiu do gabinete para examinar os restos mortais do infeliz. Crânio partido, ferimento na têmpora, constatou. Depois de uma queda daquelas, não é para admirar, afirmou o vigia. Era a sua primeira noite de guarda e conhecia mal esta zona. Escorregou no cascalho e veio pela encosta abaixo. Não é a primeira vez que acontece e não será a última. Sobek interrogou os outros vigias: nenhum tinha notado a presença de qualquer intruso. Era evidente que se tratava de um horrível acidente.
O que fazes aqui, Ardente? Devias estar na pastagem. Acabou-se, pai. O que queres dizer? Não serei o teu sucessor. Sentado numa esteira, o camponês poisou à sua frente as fibras de papiro com as quais fazia uma corda. Incrédulo, ergueu os olhos para o filho. Enlouqueceste? Ser camponês aborrece-me. Já disseste isso cem vezes... Ninguém pode passar o tempo a divertir-se! Eu não tive ideias bizarras como tu, e contentei-me em trabalhar duramente para alimentar a minha família. Tornei a tua mãe feliz, criei quatro filhos, as tuas três irmãs e tu, e tornei-me proprietário desta quinta e de um grande terreno... Não é um belo sucesso? Pela minha morte, não terás necessidades e agradecer-me-ás para o resto da tua vida. Sabes que o ano é excelente e o céu favorável? A colheita vai ser abundante mas não pagaremos muitos impostos porque o fisco concedeu-me facilidades. Não tens intenções de destruir tudo isso, pois não? Quero construir a minha vida. Esquece essas grandes frases. Achas que as vacas se alimentam com elas? Vão pastando sem mim e não terás qualquer dificuldade em arranjar-me um substituto. A angústia fez tremer a voz do agricultor. O que te aconteceu, Ardente? Quero desenhar e pintar. Mas tu és um camponês, filho de camponês! Porquê procurar o impossível? Porque é o meu destino. Toma cuidado, meu filho; arde em ti um fogo mau. Se o não apagares, destruir-te-á. Ardente esboçou um sorriso triste. Enganas-te, pai. O camponês agarrou numa cebola e trincou-a. O que desejas verdadeiramente? Entrar na confraria do Lugar de Verdade. Enlouqueceste, Ardente? Consideras-me incapaz disso? Incapaz, incapaz, eu cá não sei! Mas, de qualquer maneira, é uma loucura... E não fazes uma ideia da existência terrível desses artesãos! Estão submetidos ao segredo, privados de liberdade, obrigados a obedecer a superiores implacáveis... Os talhadores de pedra têm os braços quebrados pela fadiga, as coxas e as costas cheias de dores, morrem de esgotamento! E o que dizer dos escultores? Manejar o formão é muito mais esgotante do que cavar de sol a sol com a enxada. À noite, continuam a trabalhar à luz de lâmpadas e nunca têm dia de repouso! Pareces muito bem informado sobre o Lugar de Verdade. É o que dizem... Porque não hei de acreditar? Porque os boatos são sempre mentirosos. Não é ao meu filho que compete dar-me uma lição de moral! Ouve os meus conselhos e dar-te-ás bem. Com o teu feitio impossível, como havias de suportar um regulamento? Revoltar-te-ias desde o primeiro segundo! Sê camponês, como eu, como os teus antepassados. E acabarás por ser feliz. Com a idade, acalmar-te-ás e hás-de rir da tua revolta de adolescente». In Christian Jacq, A Pedra da Luz, Néfer, O Silencioso, Bertrand Editora, 2000, ISBN-978-972-251-135-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT

A Pedra da Luz. Christian Jacq. «Por que razão a deusa oculta na colina do Ocidente falava aos artesãos do Lugar de Verdade e permanecia muda quando ele lhe implorava que respondesse ao seu apelo?»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Perante a ideia de passar a tarde na pastagem e de regressar ajuizadamente a casa, trazendo leite e madeira seca, Ardente sentiu o coração dar-lhe um salto. Amanhã anunciava-se pior do que hoje, ainda mais baço, mais aborrecido, e o rapaz continuaria a perder a alma, como se o seu sangue se escoasse lentamente. O que lhe importava a pequena propriedade agrícola da família? O pai sonhava com trigo maduro e vacas leiteiras, os vizinhos invejavam a sua sorte, as raparigas viam já Ardente como um herdeiro próspero que, graças à sua força física, duplicaria a produção e se tornaria rico. Sonhavam em casar com um camponês bafejado pela sorte, a quem numerosos rebentos garantiriam uma velhice feliz. Milhares de seres satisfaziam-se com aquele destino, mas Ardente não. Pelo contrário, parecia-lhe mais sufocante do que as paredes de uma prisão. Esquecendo os bovídeos que se arranjariam sem ele, o rapaz avançou na direcção do deserto, sem desviar os olhos do monte que dominava o limite ocidental de Tebas, a riquíssima cidade do deus Amon onde tinha sido construída a cidade santa de Carnaque, povoada de numerosos santuários.
A oeste, os Vales dos Reis, das Rainhas e dos nobres que tinham acolhido as Moradas de Eternidade dessas ilustres personagens. E também os Templos de Milhões de Anos dos faraós, entre os quais o Ramasseum, o de Ramsés o Grande. Os artesãos, do Lugar de Verdade tinham criado aquelas maravilhas... Não se dizia que trabalhavam de mão dada com os deuses e sob a sua protecção? Tanto no coração secreto de Carnaque como no mais modesto oratório, as divindades falavam, mas quem compreendia realmente a sua mensagem? Ardente, pela sua parte, decifrava o mundo desenhando na areia, mas faltavam-lhe demasiados conhecimentos para poder progredir. Não aceitava aquela injustiça. Por que razão a deusa oculta na colina do Ocidente falava aos artesãos do Lugar de Verdade e permanecia muda quando ele lhe implorava que respondesse ao seu apelo? A colina, esmagada pelo sol, abandonava-o à sua solidão e não eram as suas jovens amantes, ávidas de prazer, que podiam compreender as suas aspirações. Para se vingar, gravou os seus contornos na areia com toda a precisão de que era capaz e depois apagou tudo com o pé raivoso, como se aniquilasse ao mesmo tempo aquela deusa muda e a sua insatisfação. Mas a colina do Ocidente permaneceu intacta, grandiosa e impenetrável. E apesar da sua pujança física, Ardente sentiu-se irrisório. Não, aquilo não podia continuar assim. Desta vez, o pai teria que lhe dar ouvidos.
Vindo da sua longínqua Núbia, Sobek entrara na polícia com a idade de dezassete anos. Alto, atlético, excelente manejador de cajado, o negro de bela aparência tinha sido notado pelos seus superiores. Um estágio na polícia do deserto permitira-lhe evidenciar as suas qualidades, pois detivera mais de vinte beduínos que se dedicavam à pilhagem, três dos quais particularmente perigosos, especializados no ataque a caravanas. A promoção de Sobek fora rápida: aos vinte e três anos acabava de ser nomeado chefe das forças de segurança encarregadas de garantir a protecção do Lugar de Verdade. Na realidade, o posto não era nada cobiçado devido às responsabilidades que pesavam sobre o seu titular, que não tinha o direito de errar. Nenhum profano devia penetrar no Vale dos Reis, nenhum curioso perturbar a serenidade da aldeia de artesãos; competia a Sobek evitar qualquer incidente, sob pena de ser imediatamente castigado pelo vizir. O núbio ocupava um pequeno gabinete num dos fortins que proibiam o acesso ao Lugar de Verdade. Embora soubesse ler e escrever, não tinha qualquer gosto pelas papeladas e pela classificação dos relatórios que deixava para os seus subordinados. Uma mesa baixa e três tamboretes formavam o essencial do mobiliário fornecido pela administração, que garantia a limpeza do local e a sua manutenção.
Sobek passava a maior parte do tempo no terreno, a percorrer as colinas que dominavam os locais interditos, mesmo quando o Sol batia com força. Conhecia cada carreiro, cada cume, cada encosta, e não deixava de as explorar. Quem fosse surpreendido em situação irregular era preso e interrogado sem piedade e depois transferido para a margem oeste onde o tribunal do vizir pronunciava uma severa condenação». InChristian Jacq, A Pedra da Luz, Néfer, O Silencioso, Bertrand Editora, 2000, ISBN-978-972-251-135-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT

domingo, 28 de outubro de 2018

A Pedra da Luz. Christian Jacq. «Deixem-me em paz, os dois. Este lugar não te pertence... Temos o direito de cá vir. Não me apetece ver-vos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Trabalhar a terra logo a seguir à cheia, semear, ceifar e colher, encher os celeiros, recear os gafanhotos, roedores e hipopótamos que devastam as culturas, irrigar, cuidar dos utensílios de lavoura, entrançar cordas durante a noite em vez de dormir, vigiar o gado e os animais de tiro, preocupar-se constantemente com as terras e não ter outro horizonte a não ser a qualidade do trigo e a boa saúde das vacas... Ardente não suportava mais aquela existência monótona. Sentado por baixo de um sicómoro, no limite entre os campos de cultura e o deserto, o rapaz aproveitava a sombra mas não conseguia adormecer nem saborear o repouso bem merecido antes de seguir para as pastagens familiares a fim de tratar dos bois. Aos dezasseis anos, Ardente, que media um metro e noventa e tinha a estatura de um colosso, não queria viver a existência de um camponês como o pai, o avô e o bisavô. Como todos os dias, vinha até àquele lugar tranquilo e, com o auxílio de um pedacinho de madeira que tinha talhado, desenhava animais na areia. Desenhar... Eis o que ele gostaria de fazer durante horas, depois dar cor e recriar um burro, um cão e mil outras criaturas! Ardente sabia observar. A sua visão entrava-lhe no coração e depois este último dava ordens à mão, que agia no entanto com absoluta liberdade para traçar os contornos de uma imagem mais viva do que a realidade quotidiana. O rapaz precisaria de papiros, de estiletes, de pigmentos... Mas o pai era agricultor e rira-lhe na cara quando o adolescente formulara as suas exigências. Havia um lugar, um único, onde Ardente poderia obter tudo aquilo que desejava: o Lugar de Verdade. Não se sabia nada do que se passava no interior dos muros da aldeia, mas lá estavam reunidos os maiores pintores e desenhadores do reino, os que eram autorizados a decorar o túmulo do Faraó.
Mas não havia qualquer hipótese para o filho de um camponês entrar naquela fabulosa confraria. No entanto, o rapaz não se podia impedir de sonhar com a felicidade daqueles que se podiam consagrar totalmente à sua vocação, esquecendo a mesquinhez do dia a dia. Então, Ardente, estás a aproveitar o bom tempo? O que acabava de assim se exprimir em tom irónico chamava-se Rustaud e tinha cerca de vinte anos. Alto, musculado, estava vestido apenas com um saiote curto de juncos entrançados. A seu lado, o seu pequeno irmão, Jarret o Gordo, de sorriso estúpido. Com quinze anos, pesava mais dez quilos do que o irmão mais velho por causa do número de bolos que engolia todos os dias. Deixem-me em paz, os dois. Este lugar não te pertence... Temos o direito de cá vir. Não me apetece ver-vos. A nós, apetece. Vais ter que te explicar. A propósito de quê? Como se não soubesses... Onde estavas na noite passada? Tomas-te por um polícia? Nati... Este nome não te diz nada? Ardente sorriu. Uma excelente recordação. Rustaud deu um passo na direcção de Ardente. Monte de lixo! Essa rapariga deve casar comigo... E tu, a noite passada, atreveste-te... Foi ela que me veio procurar. Mentes! Ardente levantou-se. Não suporto que me chamem mentiroso! Por tua causa, não casarei com uma virgem. E então? Se tiver alguma inteligência, Nati não casará contigo. Rustaud e Jarret o Gordo exibiram um chicote de cabedal. A arma era rudimentar mas perigosa. Paremos por aqui, propôs Ardente. Nati e eu passámos uns bons momentos juntos, é verdade, mas é a natureza que assim quer. Para te ser agradável, concordo em não tornar a vê-la. E, para ser franco, não sentirei a falta dela.
Vamos desfigurar-te, anunciou Rustaud. Com a tua nova cara, não seduzirás mais nenhuma rapariga. Não me importaria de dar um correctivo a dois imbecis, mas está calor e prefiro terminar a minha sesta. Jarret o Gordo lançou-se sobre Ardente com o braço direito levantado. De repente, o seu alvo apagou-se diante dele. Foi levantado, projectado no ar e caiu de cabeça para a frente de encontro ao tronco do sicómoro. Desmaiado, não se mexeu mais. Estupefacto durante um instante, Rustaud reagiu. Cortando o ar com o chicote, julgou que conseguia dilacerar o rosto de Ardente, mas o seu braço foi bloqueado pelo do jovem colosso. Um estalido sinistro pôs fim à curta luta. Com a omoplata deslocada, Rustaud largou o chicote de cabedal e fugiu a berrar. Nem uma gota de suor perlara a testa de Ardente. Habituado a bater-se desde os cinco anos, sofrera severos correctivos antes de aprender os golpes vencedores. Seguro da sua força, não gostava de provocar mas nunca recuava. A vida não dava brindes, ele também não». InChristian Jacq, A Pedra da Luz, Néfer, O Silencioso, Bertrand Editora, 2000, ISBN-978-972-251-135-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT

A Relíquia. Eça de Queirós. «E não lhe bastava reprovar o amor como cousa profana; a senhora Patrocínio Neves fazia uma carantonha, e varria-o como cousa suja»

Cortesia de wikipedia e jdact

Sobre a nudez forte da verdade. O manto diáfano da fantasia
«(…) Corri, delirante a enfiar a casaca. E este foi o começo dessa anelada liberdade que eu conquistara laboriosamente, vergando o espinhaço diante da Titi, macerando o peito diante de Jesus! Liberdade bem-vinda, agora que Eleutério Serra partira para Paris, fazer os seus fornecimentos, e deixara a Adélia só, solta, bela, mais jovial, mais fogosa! Sim, decerto, eu ganhara a confiança da Titi com os meus modos pontuais, sisudos, servis e beatos! Mas o que a levara a alargar assim, com generosidade as minhas horas de honesto recreio, fora (como ela disse confidencialmente ao Padre Casimiro) a certeza de que eu me portava com religião e não andava atrás de saias. Porque para a tia Patrocínio todas as acções humanas, passadas por fora dos portais das igrejas, consistiam em andar atrás de calças ou andar atrás de saias; e ambos estes doces impulsos naturais lhe eram igualmente odiosos! Donzela, e velha, e ressequida como um galho de sarmento; não tendo jamais provado na lívida pele senão os bigodes do comendador G. Godinho, paternais e grisalhos; resmungando incessantemente, diante de Cristo nu, essas jaculatórias das horas de piedade, soluçantes de amor divino, a Titi entranhara-se, pouco a pouco, de um rancor invejoso e amargo a todas as formas e a todas as graças do amor humano.
E não lhe bastava reprovar o amor como cousa profana; a senhora Patrocínio Neves fazia uma carantonha, e varria-o como cousa suja. Um moço grave, amando seriamente, era para ela uma porcaria! Quando sabia de uma senhora que tivera um filho, cuspia para o lado, rosnava, que nojo! E quase achava a natureza obscena por ter criado dous sexos. Rica, apreciando o conforto, nunca quisera em casa um escudeiro, para que não houvesse na cozinha, nos corredores, saias a roçar com calças. E apesar de irem embranquecendo os cabelos da Vicência, de ser decrépita e gaga a cozinheira, de não ter dentes a outra criada chamada Eusébia, andava-lhes sempre remexendo desesperadamente nos baús, e até na palha dos enxergões, a ver se descobria fotografia de homem, carta de homem, rasto de homem, cheiro de homem. Todas as recreações moças: um passeio gentil com senhoras, em burrinhos; um botão de rosa orvalhado oferecido na ponta dos dedos; uma decorosa contradança em jucundo dia de Páscoa; outras alegrias, ainda mais cândidas, pareciam à Titi perversas, cheias de sujidade, e chamava-lhes relaxações. Diante dela já os sisudos amigos da casa não ousavam mencionar dessas comoventes histórias, lidas nas gazetas, e em que transparecem motivos de amor, porque isso a escandalizava como o desbragamento de uma nudez.
Padre Pinheiro! Gritou ela um dia furiosa, com os óculos chamejantes para o desventuroso eclesiástico, ao ouvi-lo narrar de uma criada que em França atirara o filho à sentina. Padre Pinheiro! Faça favor de me respeitar... Não é lá pela latrina! É pela outra porcaria! Mas era ela própria que sem cessar aludia a desvarios e a pecados da carne, para os vituperar, com ódio; atirava então o novelo de linha para cima da mesa, espetando-lhe raivosamente as agulhas de meia, como se trespassasse ali, tornando-o para sempre frio, o vasto e inquieto coração dos homens. E quase todos os dias, com os dentes rilhados, repetia (referindo-se a mim) que se uma pessoa do seu sangue, e que comesse o seu pão, andasse atrás de saias, ou se desse a relaxações, havia de ir para a rua, escorraçado a vassoura, como um cão.
Por isso agora as minhas precauções eram tão apuradas que, para evitar me ficasse na roupa ou na pele o delicioso cheiro da Adélia, eu trazia na algibeira bocados soltos de incenso. Antes de galgar a triste escadaria da casa, penetrava subtilmente na cavalariça deserta, ao fundo do pátio; queimava no tampo de uma barrica vazia um pedaço da devota resina; e ali me demorava, expondo ao aroma purificador as abas do jaquetão e as minhas barbas viris... Depois subia; e tinha a satisfação de ver logo a Titi farejar, regalada: Jesus, que rico cheirinho a igreja! Modesto, e com um suspiro, eu murmurava: sou eu, Titi... Além disso, para melhor a persuadir da minha indiferença por saias, coloquei um dia, no soalho do corredor, como perdida uma carta com selo, certo que a religiosa Patrocínio, minha senhora e tia, a abriria logo, vorazmente. E abriu, e gostou. Era escrita por mim a um condiscípulo de Arraiolos: e dizia, em letra nobre, estas cousas edificantes: saberás que fiquei de mal com o Simões, o de filosofia, por ele me ter convidado a ir a uma casa desonesta. Não admito destas ofensas. Tu lembras-te bem como já em Coimbra eu detestava tais relaxações. E parece-me ser uma grandíssima cavalgadura aquele que, por causa de uma distracção que é fogo-viste-linguiça, se arrisca a penar, por todos os séculos e séculos, amém, nas fogueiras de Satanás, salvo seja! Ora, numa dessas refinadíssimas asneiras não é capaz de cair o teu do C. Raposo». In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.

Cortesia de ELBrasil/JDACT