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Nesse instante entrou na sala um grupo de serviçais trazendo garrafas e bandejas
que se perfilou diante da mesa e distribuiu os talheres, as frutas e os petiscos
frios do primeiro serviço. Ignazio se preparou para enfrentar um dos mais
complicados cerimoniais da corte castelhana, a ceia, composta, segundo o
costume, de mais de uma dezena de pratos. Teria preferido partilhar uma
refeição frugal com uns poucos comensais, talvez na penumbra de uma taberna.
Sentia saudade da lareira doméstica e principalmente da sua mulher, Sibilla.
Fazia meses que ele não a via, e o pensamento de tê-la deixado sozinha outra
vez lhe atormentava a consciência. Sou o pior dos maridos, disse para si mesmo,
tentando imaginar o que ela estaria fazendo na solidão de uma casa vazia, sem o
homem que jurara amá-la. Sentiu-se oprimido por um desgosto profundo e por uma ânsia
incontida de voltar para junto dela. Porém, o sentimento de culpa se foi tão rápido
quanto viera e, um segundo depois, o rosto do mercador estava impassível como sempre.
A racionalidade lhe permitia amar apenas em alguns momentos e esconder depressa
as emoções. Afastara-se de casa pela enésima vez, era certo, mas não tivera
escolha. Para esquecer de vez a melancolia, emborcou um copo de vinho
aromatizado.
Galib, enquanto isso, interrogava
Willalme a respeito de sua cidade natal, Béziers, posta a ferro e fogo pelos
cruzados porque abrigava hereges cátaros. O francês revelou que, logo depois
desse acontecimento, fugira, escapando por puro milagre. E a sua família?, perguntou
instintivamente o velho. A expressão de Willalme ficou sombria. Estão todos
mortos. Com um ar irritado, pegou uma maçã e descascou-a com gestos bruscos. Meu
pai, minha mãe, minha irmã... Todos mortos pelos cruzados durante a tomada de Béziers...
Não querendo constrangê-lo, Galib aproveitou-se da troca de pratos para mudar
de assunto. Depois das frutas e do doce de amêndoa, veio a salada de queijo com
azeitonas. Todos pareciam alegres, mas, por trás daquele véu de jovialidade, notava-se
uma tensão contida, visível nos rostos contraídos de alguns comensais. O
mercador de Toledo percebeu tudo, mas não disse nada.
Posso perguntar-lhe uma coisa,
magister? Onde entra Filippo Lusignano nesta história? Quando o conheci, não
pertencia à corte de Castela, usava o uniforme dos templários e havia
renunciado ao seu título de nobreza. Lusignano é um dos embaixadores mais
prestigiados por Fernando III, pois vem da França, explicou Galib, afastando
com repugnância um prato de carne temperada com vinagre. Apresentou-se a esta
corte há uns sete anos e até agora se comportou de maneira impecável, tanto que
a sua majestade lhe facilitou o ingresso na Ordem Militar de Calatrava e a
obtenção de uma comenda. E quem é o dominicano sentado à direita do rei? A
essas palavras, o velho teve um sobressalto, mas o mercador não se impressionou.
Já notara os olhares frequentes que Galib lançava àquela figura. É Pedro
Gonzalez Palencia, confessor pessoal de sua majestade, respondeu Galib. Fernando
III não dá um passo sem consultá-lo primeiro. Ouvi falar dele, tem fama de
profundo conhecedor das Sagradas Escrituras. Ignazio esboçou um sorriso
malicioso. Vai dizer-me porque o observa com tanta animosidade?» In Marcello Simoni, A
Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube
do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.