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Turbou-se Maria e perguntou, Isso que quer dizer, e o mendigo respondeu apenas,
Mulher, tens um filho na barriga, e esse é o único destino dos homens, começar
e acabar, acabar e começar, Como soubeste que estou grávida, Ainda a barriga
não cresceu e já os filhos brilham nos olhos das mães, Se assim é, deveria meu marido
ter visto nos meus olhos o filho que em mim gerou, Acaso não olha ele para ti
quando o olhas tu, E tu quem és, para não teres precisado de ouvi-lo da minha
boca, Sou um anjo, mas não o digas a ninguém.
Naquele
mesmo instante, as roupas resplandecentes voltaram a ser farrapos, o que era
figura de titânico gigante encolheu-se e mirrou como se o tivesse lambido uma
súbita língua de fogo, e a prodigiosa transformação foi mesmo a tempo, graças a
Deus, e logo a seguir a prudente retirada, que do portal já vinha acercando-se
José, atraído pelo rumor das vozes, mais abafadas do que o natural duma
conversação lícita, mas sobretudo pela exagerada demora da mulher, Que mais te
queria o pobre, perguntou, e Maria, sem saber que palavras suas poderia dizer,
só soube responder, Do barro ao barro, do pó ao pó, da terra à terra, nada
começa que não acabe, nada acaba que não comece, Foi isso que ele disse, Sim, e
também disse que os filhos dos homens brilham nos olhos das mulheres, Olha para
mim, Estou a olhar, Parece-me ver um brilho nos teus olhos, foram palavras de
José, e Maria respondeu, Será o teu filho. O crepúsculo tornara-se azulado, ia
tomando já a primeira cor da noite, agora via-se que de dentro da tigela
irradiava como uma luz negra que desenhava sobre o rosto de Maria feições que
nunca haviam sido dela, os olhos pareciam pertencer a alguém muito mais velho.
Estás grávida, perguntou enfim José, Sim, estou, respondeu Maria, Por que não
mo disseste antes, Ia dizer-to hoje, esperava que acabasses de comer, E então
chegou esse pedinte, Sim, De que mais falou, que o tempo deu sem dúvida para
mais, Que o Senhor me conceda todos os filhos que tu quiseres, Que tens aí na
tigela, para que dessa maneira brilhe, Terra tenho, O húmus é negro, a argila
verde, a areia branca, dos três só a areia brilha se lhe dá o sol, e agora é
noite, Sou mulher, não sei explicar, ele tomou a terra do chão e lançou-a
dentro, ao mesmo tempo disse as palavras, A terra à terra, Sim.
José
foi abrir a cancela, olhou a um lado e a outro. Já não o vejo, sumiu-se, disse,
mas Maria afastava-se tranquila em direcção à casa, sabia que o mendigo, se era
realmente quem anunciara ser, só se quisesse é que deixaria que o vissem.
Pousou a tigela no poial do forno, tirou do borralho uma brasa com que acendeu
a candeia, soprando-a até levantar uma pequena chama. José entrou, vinha com
uma expressão interrogativa, uma mirada perplexa e desconfiada que tentava
disfarçar movendo-se com vagares e solenidade de patriarca que não lhe
assentavam bem, sendo tão jovem. Discretamente, fazendo por não dar nas vistas,
foi espreitar a tigela, a terra luminosa, compondo na cara um ar de cepticismo
irónico, porém, se era uma demonstração de varonia o que pretendia, não lhe
valeu a pena, Maria tinha os olhos baixos, estava como ausente. José, com um
pauzito, remexeu a terra, intrigado por vê-la escurecer quando a movia e depois
retomar o brilho, sobre a luz constante, como mortiça, serpenteavam rápidas
cintilações, Não compreendo, decerto há um mistério nisto, ou então a terra
trazia-a já ele consigo e tu julgaste que a apanhou do chão, são embelecos de
mágico, ninguém viu nunca brilhar a terra de Nazaré. Maria não respondeu, comia
o pouco que lhe restara das lentilhas com cebola e das papas de grão-de-bico,
acompanhando-as com um pedaço de pão untado de azeite. Ao parti-lo, dissera,
como está escrito na lei, porém no tom modesto que convém à mulher, Louvado
sejas tu, Adonai, nosso Deus, rei do universo, que fazes sair o pão da terra.
Calada, comia, enquanto José, deixando discorrer os pensamentos como se
estivesse comentando na sinagoga um versículo da Tora ou a palavra dos
profetas, reconsiderava a frase que acabara de ouvir à mulher, a que ele
próprio recitara no mesmo acto de partir o pão, e tentava imaginar que cevada
seria a que nascesse e frutificasse duma terra que brilhava, que pão daria ela,
que luz levaríamos dentro de nós se dele fizéssemos alimento. Tens a certeza de
que o mendigo apanhou a terra do chão, tornou a perguntar, e Maria respondeu,
Sim, tenho a certeza, E não brilhava antes, No chão não brilhava. Tanta firmeza
teria de abalar a postura de desconfiança sistemática que deve ser a de
qualquer homem quando confrontado com os ditos e feitos das mulheres em geral e
da sua em particular, mas, para José, como para qualquer varão daqueles tempos
e lugares, era doutrina muito pertinente a que definia o mais sábio dos homens
como aquele que melhor saiba pôr-se a coberto das artes e artimanhas femininas».
In
José Saramago, O Evangelho segundo Jesus Cristo, Editorial Caminho (o Campo da
Palavra), Lisboa, 1991, ISBN 972-210-524-8.
Cortesia de Caminho/JDACT