«(…) O corpo da mulher
estremeceu tentando expulsar o trapo com uma náusea involuntária. A ceia frugal
subiu do estômago à garganta e, ao topar com o pano, voltou como um refluxo
incontrolável e inundou os seus pulmões. A pele rosada de Zelda transformara-se
numa superfície roxa por causa da falta de ar. A mulher conservava a expressão
de horror: os olhos lutavam para sair das órbitas e a boca aberta numa máscara
de pânico e desespero formavam um quadro macabro. O estranho, coberto da cabeça
aos pés por uma túnica negra, observava a pele da sua vítima com olhos
extasiados, enquanto ela resfolegava, alucinando até à convulsão. Zelda ainda
conservava um vestígio de vida, embora já não conseguisse mover-se. Então, o
agressor se apressou antes que alguém pudesse bater à porta. Com o corpo ainda
morno e palpitante, ela sentiu que o encapuzado afundava o escalpelo na base do
pescoço e fazia uma incisão vertical que ia até ao púbis. O objectivo não era
matá-la de imediato, mas, antes, esfolá-la. Zelda, in pectore, implorava a Deus que a levasse o quanto antes. O
agressor exibia uma destreza assombrosa. Segurava o escalpelo como quem segura
uma pluma. Trabalhava com uma habilidade própria dos ofícios mais delicados.
Não agia como um carniceiro. Feita a primeira incisão, começou a separar a pele
da carne com cortes subtis, desprendendo-a sem danificá-la. Foi um trabalho
rápido e preciso; retirou o couro inteiro, numa única peça, como se fosse um
casaco. Zelda morreu no exacto momento em que o agressor concluiu a sua macabra
tarefa, sem poupá-la de nenhum sofrimento. Aquela figura semelhante à névoa
estendeu a peça de couro humano e abraçou-a como quem reencontra a pessoa
amada. A cena era patética: o assassino, coberto dos pés à cabeça de tal
maneira que não deixava ver nem uma nesga de seu corpo, se agarrava ao trapo de
pele com a forma de uma mulher desabitada como se quisesse enfiar-se naquele
couro. Permaneceu assim por muito tempo, até que, finalmente, enrolou a pele,
guardou-a em uma bolsa, abriu a porta do quarto, assegurou-se de que não havia
ninguém por perto, desceu as escadas correndo e, como um fantasma, desapareceu
tão misteriosamente como aparecera.
A madrugada dissipara a neblina da noite anterior. O sol do
amanhecer penetrava pelos vitrais da catedral, em cujo interior começava a
primeira audiência do julgamento dos três maiores falsários de que o Sacro
Império Romano Germânico se recordava. Os homens haviam sido presos quando
tentavam vender livros falsos que fabricavam, com grande talento para tais
procedimentos obscuros, nas lúgubres ruínas da abadia de Santo Arbogasto, nos
arredores de Estrasburgo. Quando o cónego que presidia o tribunal deu a ordem,
os réus, um a um, foram obrigados a se sentar na cadeira curial, cujo assento
de madeira tinha um buraco no centro. O primeiro,
um homem alto, magro e de barba vasta chamado Johann Fust, levantou a falda de
sua túnica de fina seda e se sentou de tal modo que seus genitais desnudos
ficaram pendendo dentro do orifício. Outro religioso se pôs aos seus pés,
fechou os olhos, esticou o braço e levou a mão à parte inferior do assento. Com
todos os seus sentidos concentrados no tacto, sopesou as partes do acusado.
Depois de comprovar a consistência touruna dos testículos que repousavam na
concavidade de sua mão direita, o religioso virou a cabeça para os juízes e
disse em voz alta: Duos habet et bene pendentes (tem dois e pendem bem). No entanto, a inspecção não
terminou ali. O prelado, designado para esse único fim, mudou ligeiramente a
mão de lugar e percorreu com os dedos as vergonhas do réu como se ainda tivesse
alguma dúvida. Cerrou as pálpebras, franziu o cenho e, então, com expressão de
quem é experiente, concluiu: Haud preaputium, iudaeus est (não tem
prepúcio, é judeu).
Desde que Joana de Ingelheim,
também nascida em Mainz, se fizera passar por varão e chegara a ocupar o papado com o nome de Bento III, fazia-se em
toda a Rheinland-Pfalz a inspecção curial antes do início de cada formalidade.
Era imprescindível que o tribunal tivesse certeza do género dos acusados para
que o erro não se repetisse. Escondendo a humilhação, o primeiro acusado levantou-se
e, ajeitando a roupa, cedeu o lugar ao segundo, um homem enxuto, pálido e de
aspecto enfermo, de nome Petrus Schöffer. Com a mesma técnica, o clérigo se
ajoelhou, tacteou em baixo da tábua e, desta vez sem hesitar, resumiu em uma
única frase: Duos
habet et iudaeus est. Não era boa para Fust e
Schöffer a revelação das suas origens judaicas perante o tribunal da Santa
Igreja. Por último, sentou-se o terceiro, um homem de aparência singular: as
pontas de seu espesso bigode confluíam numa barba arruivada, que ia dos lábios
ao peito como torrentes de uma cascata. Tinha o semblante altivo, a testa ampla
e o olhar orgulhoso. Os olhos puxados e um gorro de pele lhe conferiam um
aspecto de alguém vindo da Mongólia. Diferentemente dos anteriores, vestia um
avental de trabalho, e tanto as suas
vestes quanto às suas mãos estavam manchadas de preto e vermelho. O sacerdote
voltou a se prostrar ao lado da cadeira curial e, depois de tocar o homem,
sentenciou sem vacilar: Duos habet et bene pendentes. O sobrenome do
réu era Gensfleish zur Laden, embora fosse mais conhecido pelo nome da casa em
que fora criado: Gutenberg, Johannes Gutenberg, o falsário mais
audacioso de todos os tempos». In Federico Andahazi, O Livro dos Prazeres Proibidos, Editora
Bertrand Brasil, 2013, ISBN 978-852-861-692-7.
Cortesia de
EBertrandB/JDACT