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terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Amandine. Marlena de Blasi. «Conforto. E desse consolo veio a resolução. Uma dupla resolução. Primeiro, eu protegeria nossa filha, minha filha. Sim, eu a criaria no meio do luxo, mas não a perderia para a libertinagem…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Fui eu quem começou a traição? Não fosse pelo que fiz, você se teria mantido fiel a mim, Antoni? Cornear o glorioso conde Czartoryski, e logo depois de nosso casamento, eu fui escandalosa, arrogante. De nós dois, fui a primeira a trair. No entanto, você foi mais esperto que eu, montando a armadilha. Chegou a incluir o francês na sua folha de pagamentos durante algum tempo, não? Instruiu-o sobre como se aproximar, orquestrou nossos encontros, comprava os presentes que ele me dava. Sim, escandalosa e arrogante, uma perfeita trouxa eu fui. Tendo eu caído antes, você agora estava livre para viver um casamento transformado em nobre vendeta, sem que a sua maculada e rica esposa pudesse abrir a boca em protesto. Quem o culparia? Esperto como você era, fácil como eu era, a verdade é que nosso comportamento não era nada menos que o clássico em nosso meio, em que a noção de fidelidade é, há muito, um irreal disfarce, um scherzo tocado em privado e, ao menos com a mesma frequência, em público. Nem melhores nem piores que os outros, teríamos continuado a viver daquele modo, envelhecido daquele modo e transmitido o nosso atormentado legado a Andzelika como se fosse um poema. É assim que teríamos ficado. Mas você se apaixonou, Antoni.
Andzelika tinha 2 anos quando você assassinou a sua prostituta, depois enfiou a pistola na própria boca, sua linda boca, e puxou o gatilho. Você pensou em Andzelika, levou-a em consideração? Sua família sim, a sua e a minha, assim como os amigos e familiares dos pontos mais longínquos das nossas linhagens. Achei estranho como houve pouco luto por você, como o pesar de todos era por nós, por mim e Andzelika. Pobres anjos, chamavam-nos. Cuidaremos de vocês, estaremos por perto, protegeremos vocês. Conforto. E desse consolo veio a resolução. Uma dupla resolução. Primeiro, eu protegeria nossa filha, minha filha. Sim, eu a criaria no meio do luxo, mas não a perderia para a libertinagem de nossa classe. Segundo, eu me tornaria uma mulher melhor do que jamais teria sido caso você tivesse vivido. E isso eu fiz, Antoni. De facto sou mais admirável sem você. Mas, em minha terna diligência com Andzelika, em minha, podemos chamar de vigilância?, para com ela, eu falhei. Quando, apenas poucos dias após a chegada dele, ela me contou, naquela mesma voz meio sussurrada e estridente com a qual ela articulou as primeiras palavras, você se lembra de como ríamos ao ouvir uma voz desse tipo saindo daquela menina pequena como uma flor?, que se apaixonara por Droutskoy, eu olhei dentro das sóbrias e lacrimosas ameixas negras que são seus olhos e sorri, dizendo a ela, como se os seus sentimentos fossem uma doença, que aquilo ia passar.
Ela não se lembrava do amor que sentira pelo professor de violino, e depois pelo encantador garoto loiro que trabalhara na nossa cozinha durante o verão anterior? Fui insensível à eloquência da viva e delicada beleza dos seus 16 anos, ao seu poder de instigar e deleitar um garoto prestes a tornar-se homem. Sim, e insensível também à violência, à maravilha da paixão. Primeira paixão. Dela, dele. Abracei Andzelika, Antoni, beijei a sua testa e prometi-lhe uma semana ou duas em Baden-Baden, ou ela preferiria Merano? Sim, Merano, e depois alguns dias em Veneza, que tal isso para a adorada menina da mãe? Boa noite, minha querida. Boa noite, matka, mãe. Ele achou o caminho para a cama dela, ou ela para a dele. Por todas aquelas semanas, ou apenas uma vez? Nunca perguntei. Um dia, de manhã, ele tinha ido embora. Nem Stas sabia para onde fora.
Toussaint encontrou-o sem muita dificuldade, as suas perguntas iluminando a origem do rapaz. Origem medonha. Será que ele sabia? O garoto sabia quem éramos? Será que tinha sido enviado pela família para vingar a mundana meretriz que era sua irmã? Schadenfreude. Será que foi isso que o trouxe até nós? Agora está quase acabado. O garoto se foi, Toussaint cuidou disso. E agora que a criatura não deve demorar a desaparecer, Andzelika poderá continuar com a sua vida. Andzelika e eu seguiremos em frente, incólumes. Como se nada houvesse ocorrido. Como se os dois não houvessem nunca aparecido, nem o rapaz nem a criatura. Sem rastos». In Marlena de Blasi, Amandine, 2010, Editora Record, 2014, ISBN 978-850-140-017-8.

Cortesia de ERecord/JDACT

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Amandine. Marlena de Blasi. «Ou um fidalgo de sangue azul e meios limitados? Sim, você completará a nossa mesa agradavelmente por duas semanas…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Como todos de sua laia. De todos os garotos e homens para quem Andzelika podia ter-se entregado, porque ele? Que atracção venenosa é essa que liga a família dele e a minha? Duas mortes não foram o suficiente para extingui-la? Se ao menos eu tivesse compreendido quem ele era naquela primeira noite... Intensos olhos negros, a mão branca e delicada mexendo naquela cabeleira brilhante. Um desprezo bolchevique lá no fundo da sua cortesia. Posso ouvir Stas dizendo, Ciotka Valeska, tia Valeska, deixe-me apresentar o meu amigo do colégio, Piotr Droutskoy. Sim, sim, seja bem-vindo. É claro, seja bem-vindo. Seu nome não significa nada, você não significa nada. Outro cavaleiro errante, não é? Ou um fidalgo de sangue azul e meios limitados? Sim, você completará a nossa mesa agradavelmente por duas semanas. Eu deveria ter atirado nele bem ali no pátio, à luz fraca das torchières. Se eu tivesse percebido. Em vez disso, eu o acolhi. O amiguinho de Stas. Sim, sim, por favor, fique. Adam foi logo levar as coisas deles para o terceiro andar. E então ele possuiu Andzelika. O irmão da adorada libertina de Antoni possuiu minha filha. O irmão da encantadora baronesa Urszula. Urszula. Seus largos quadris ticianescos enroscados no meu marido mesmo na morte. Quantas noites teriam eles dormido assim? As expedições de caça de Antoni, os seus negócios em Praga, em Viena. Visitas às fazendas, às vilas. Sempre com ela. Sempre com Urszula. Dois disparos de uma pistola para que os dois pudessem dormir daquele jeito para sempre. Será que nunca me verei livre da visão dela, dos dois?
Toussaint estava de pé atrás de mim enquanto eu olhava da porta aquela manhã, as suas mãos como ferro sobre os meus ombros. O que foi que ele sussurrou então? Até Rudolf e sua baronesa tiveram a decência de se cobrir. Toussaint então colocou-se na minha frente, abaixou-se para pegar o kontusz de Antoni, que tinha sido atirado às lajotas de mármore do chão. Como ele adorava aquele casaco, o símbolo da sua comiseração pelos camponeses. Deixava abertas as mangas, erguia-as até bem acima das da camisa ou do casaco de couro e lá ia ele, a brisa inflando a longa peça de roupa. Toussaint cobriu-os com o casaco, a mortalha certa para um bom szlachta e a sua amada. Ainda me lembro de quando era eu a sua amada». In Marlena de Blasi, Amandine, 2010, Editora Record, 2014, ISBN 978-850-140-017-8.

Cortesia de ERecord/JDACT

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Amandine. Marlena de Blasi. «Uma menina imatura de 17 anos, que lamenta perder aquele rapaz e não se importa nada com a criança. O seu instinto maternal está amortecido…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Numa noite de Outono de 1916, numa das propriedades da nobre família Czartoryski, nos arredores de Cracóvia, o conde Antoni Czartoryski assassinou a sua amante, uma jovem baronesa. Em seguida, apontou a pistola para si próprio. Ao morrer, Czartoryski deixou a sua esposa, a condessa Valeska, e uma filha de 2 anos chamada Andzelika. Catorze anos depois, a condessa Valeska hospedou no seu palácio em Cracóvia um sobrinho da família, que trazia consigo um amigo do internato em Varsóvia para que passassem parte das férias de Verão. O amigo era um jovem barão chamado Piotr Droutskoy. Na época, nem a condessa Valeska nem o seu sobrinho sabiam que era irmão da amante de Antoni Czartoryski. A filha da condessa, Andzelika, então com 16 anos, manteve um romance secreto com Droutskoy e, como consequência, engravidou. Quando a identidade de Droutskoy foi descoberta, a condessa, tendo suportado o escárnio e a vergonha resultantes das traições do seu marido, jurou que não reconheceria como sua neta nenhuma criança com o sangue daquela, segundo ela, infame família. Andzelika, convencida de que se apaixonara perdidamente por Droutskoy, e de que ele correspondia, recusou-se a interromper a gravidez. Não querendo contrariar o delicado estado psicológico da sua filha naquele momento, a condessa Valeska pôs-se, então, a formular planos para posteriormente enviar a criança em segredo para um outro lugar, de uma vez por todas.
Quando o bebé de Andzelika, uma menina nascida com um grave problema no coração, tinha 5 meses, a condessa levou-a até um convento católico romano de uma área rural próxima à cidade de Montpellier, no sudoeste da França. Com uma grande soma de dinheiro abrindo-lhe o caminho, ali ela deixou a criança para que fosse criada sob a proteção da cúria local. Desde o nascimento da bebé, e até mesmo algum tempo antes, a condessa Valeska recorrera a extravagantes mecanismos para apagar os registos da existência da criança. Mesmo estando convencida da necessidade da sua missão, ela sofria ao cumpri-la.

Montpellier. 1931-39
Velhos plátanos se debruçam galho a galho sobre a ampla avenida, e, sob os guardasóis das amareladas folhas de Setembro, um grande e negro Packard desliza. Luzes pontilhadas, em tons cor-de-rosa e bronze, caem aqui e ali sobre três passageiros. Duas mulheres e um homem, fúnebres no seu silêncio. Uma delas traz nos braços um bebé. Um fiozinho de luz alcança o rosto da criança, fazendo dos seus olhos gemas negras rajadas de azul. A luz não a perturba, não a faz fechar os olhos ou desviá-los; a criança mantém o olhar tranquilo e pensativo, dirigindo-o directamente à mulher à sua frente, sentada no banco cinza acolchoado com a cabeça virada para a janela. Taciturno e indiferente, um chofer de uniforme negro dirige mais devagar do que deveria. O único som que se escuta é o pft, pft, pft dos pneus percorrendo o asfalto. Ela bem que podia cobrir a criatura. Por que tirou a sua touca? Por que desenrolou a manta quando estamos tão perto do convento? Devemos estar chegando. Será que devo perguntar novamente a Jean-Pierre quanto falta? E quanto falta? Meu pescoço dói por ter passado todas essas horas com a cabeça virada para não ter que ver a criatura. Já não posso deixar de notar o quanto cresceu. Nunca olhei direito para ela desde a noite em que nasceu. Onde eu estava com a cabeça naquele momento para pedir que a enfermeira a trouxesse até mim? Eu proibira Andzelika de vê-la, e, no entanto, eu mesma quis fazê-lo. Foi como ver Andzelika pela primeira vez. Estendi o braço para pegá-la assim como fizera para receber minha filha. Meus braços a desejavam como se ela fosse minha. Ela é minha. Devo pensar nela desse modo. Ela é minha, e fui eu que decidi não ficar com ela. Andzelika tem 17 anos. Uma menina imatura de 17 anos, que lamenta perder aquele rapaz e não se importa nada com a criança. O seu instinto maternal está amortecido, como se ela a tivesse gerado e carregado no ventre apenas por ele. Um presente duvidoso para aquele que fugiu tão depressa e para tão longe dela. Astuto». In Marlena de Blasi, Amandine, 2010, Editora Record, 2014, ISBN 978-850-140-017-8.

Cortesia de ERecord/JDACT