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terça-feira, 30 de janeiro de 2024

No 31. A Casa do Pó. Fernando Campos. «Ajudai-me, irmão!, sinto-me puxar pela manga do hábito esta doce voz portuguesa. É uma preta dos seus quarenta anos, de alma branca como arminho segundo depreendi da sua muita virtude, confessando-a em Veneza…»

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O Breviário

«De encontro às rochas via-se a nau partida, meia submersa, toda ela pelas junturas desfeitas tangendo com o movimento das ondas, ostentando ainda num pedaço da popa o seu nome, Quirina! Restos de corpos desmembrados jaziam entre tábuas ou pendiam, presos por fragmentos de roupa esfarrapada de algum cavilhame desventrado. Acenava tristemente ao vento que amainara uma tira de vela rasgada. Mastros e vergas, desconjuntados e estilhaçados, boiavam nas águas, precariamente ligados ao tombadilho. Na praia rolavam corpos na fímbria espumosa das ondas e outros, lançados já do mar, secavam na areia nus, inchados, esquálidos, de borco ou de barriga para o ar, cheios de pútrido mosquedo, apodrecendo com um fétido e insuportável cheiro. Debicavam já abutres nos cadáveres mais afastados de gente viva e outros pousavam, rondando, nas árvores e penedias próximas, à espera do sinistro festim.

Estando nós por algum tempo olhando em silêncio aquele lastimável destroço, disse-nos o patrão da nossa nau: Senhores, é mais tempo de obrar que de olhar. Movidos desta palavra, começámos todos a acudir aos feridos, lavando chagas com vinho e fazendo com muita diligência tudo o que o cirurgião mandava, procurando roupas para a nudez, pão para a fome, palavras de conforto para o desconsolo de alma, e com a ajuda da muita gente que tinha acorrido procedeu-se pelo dia fora ao enterramento dos mortos. Era quase fim da tarde quando, tendo preparado com dois pobres lenhos uma cruz para uma das últimas sepulturas, dei comigo a olhar fixamente a cara do morto. Estava nu, mas não me foi difícil recordar a figura viva e inquieta, vestida de peles, que mimava um frade que passeia de um lado para o outro lendo o seu breviário de capas de carneira castanhas, cantos de prata e letras gravadas a ouro. Era Argirópolos.

Perante a morte, perdoei-lhe o mal que, querendo fazer-me a mim, causara a meus irmãos Pietro e Bertino e, quando a última pazada de terra foi atirada sobre o seu corpo, coloquei-lhe na cabeceira da campa o tosco crucifixo feito de lascas dos madeiros da nau destruída.

O rei de Chipre

Emmanuelisque nomen et Lusítanae gentis virtutem laudibus summis exornavit.

Exaltou com os maiores louvores o nome de Manuel e o valor da gente lusitana. (Jerónímo Osório, De Rebus Emmanuelis Gestis)

Não mais que uma alfândega e casas térreas para recolher mercadorias, um pequeno hospital e uma igreja de São Lázaro, mas o branco vivo das paredes, quase a cegar os olhos, no verde-azul de montanha e céu, ria alegremente para a baía em que se espelhava, em chapadas e laminações de cal ondulante. Havia barcos de olhos arregalados no porto e as algas voluteavam e rendilhavam marulhos salgados, espumosos, por entre cintilações de prata e ouro. Acenavam perto, rente à água, asas lentas de gaivotas, dando as boas-vindas.

Voltava à minha boa disposição e aos meus sonhos, à paz comigo próprio. Mas seria eu o mesmo? Sentia-me diferente por dentro. Quantas coisas haviam passado, marcado para sempre a minha alma!... Tínhamos chegado a Salinas, ou Salamina como dizem outros, depois de três dias em que o vento nos fizera negaças, ora arremedando soprar de feição ora virando contrário. Fomos até obrigados a parar a meio caminho, em Limison. Mas eis-nos chegados a Salinas! Grande azáfama de carregar e descarregar mercadorias, que este é o principal porto da ilha de Chipre, o mais frequentado por navios estrangeiros e onde necessariamente hão-de aportar as naus venezianas que vêm a estas partes. Aguarda-nos uma pequena multidão de pessoas quando atracamos. Saídos ao cais, dirigem-se-nos com expressão e palavras aflitas, pedindo ajuda.

Aiuto, aiuto, signori! Siamo pellegrini! Apontam-nos no porto, sem qualquer espécie de actividade, a nau dos peregrinos do ano passado, que, por desordem e pouca diligência do patrão, tinha ali invernado, com grande detrimento e prejuízo dos romeiros, no regresso da Terra Santa. Vendo-se enganados, os ricos buscaram seu remédio por onde puderam, indo-se para Veneza em outras embarcações, a queixarem-se à Senhoria da sem-razão e quebra de contrato que lhes fora feita; os pobres aqui ficaram na ilha, padecendo mil necessidades e misérias, aguardando que aquela mesma nau que os trouxera os tornasse a levar de regresso na Primavera que está ai a chegar.

Aíuto, aiuto, signori! Siamo pellegrini! Abbiamo fame e miseria! Ajudai-me, irmão!, sinto-me puxar pela manga do hábito esta doce voz portuguesa. É uma preta dos seus quarenta anos, de alma branca como arminho segundo depreendi da sua muita virtude, confessando-a em Veneza antes da sua partida para a Terra Santa. É Deus que vos envia para acudir à nossa necessidade!

Natural da Guiné, criada em Portugal, vendo-se um dia forra, não descansou enquanto não fez esta santa jornada, não pedindo de porta em porta, como muitos fazem, mas com o suor do seu rosto. Deu-se antes, alguns anos, a lavar roupa por dinheiro, até amealhar o que lhe pareceu bastar para a peregrinação. Não podia, todavia, contar com o percalço de uma tão prolongada paragem em Chipre, agravada pela total ausência do apoio a que, por contrato, os serviços da nau se haviam obrigado, e viu-se sem dinheiro sequer para comer. Mas como foi possível um tal desleixo do patrão?» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,

A Casa do Pó. Fernando Campos. « Carregavam suas alimárías, no meio da mais feroz violência, e tornavam-se para suas casas sem haver quem lhes pudesse resistir por serem muitos. Todo aquele dia, a noite seguinte e parte do outro dia…»

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O Breviário

«Para se comerem tira-se-lhes a casca, que é como a do figo mas de cor citrina. Partidos pelo meio ou de través, têm uma cruz em forma de tê. Afirmam orientais e Palestinos ser aquele o fruto proibido de que Adão comeu. Eu creio serem estas as bananas do nosso São Tomé, segundo a informação que me têm dado delas os que as viram e comeram. E para que falar dos vinhos de Chipre, tão nomeados e louvados em todo o Oriente, se a esposa nos Cantares de Salomão os louva com estas palavras: Botrus Cypri dilectus meus mihi?

Neste espaço de tempo, tomou tanta amizade connosco um mancebo grego, de nome Constantim Polachi, morador numa aldeia chamada Thimo, distante de Pafo uma grande milha, que não podia passar um dia sem nos vir ver. Convidava-nos para comer em sua casa, provia-nos de tudo o que de melhor havia na terra, sem interesse algum. Como não sabíamos o romeno nem ele o veneziano, só nos entendíamos por meio de intérprete. Esta dificuldade de entendimento arreliava Constantim, que às vezes, quando estávamos à mesa, tomava uma faca na mão e com a outra mão tirava fora a língua e arremedava cortá-la, dizendo que lhe vinha essa tentação por não ter palavras para exprimir quanta amizade nos tinha.

Três dias depois de estarmos em Pafo, regressámos à nau. O tempo mostrava-se algum tanto bonançoso e nós precisávamos de saber a determinação do patrão. Mas fomos encontrar todos metidos e enfrascados em suas vendas e mercancias, com mais vagar do que desejáramos. Amanhã, proponho eu ao meu companheiro que já se encontra deitado em seu catre, enrodilhado na sua manta, vamos visitar outro ponto da ilha? Com todo o prazer, irmão Pantaleão, responde bocejando cheio de sono e deixando resvalar as camândulas por entre os dedos. Ressonava. Eu também não tardei a adormecer. Mas o dia seguinte esforçou-se tanto o vendaval e o mar começou a empolar-se de tal maneira e a embravecer que, acordando estremunhados, cuidámos que nos iríamos perder naquele porto. A nau estava apenas com duas âncoras, mas, vendo o perigo, ordenou o piloto que lançassem mais duas, uma das quais era a que os Venezianos chamam âncora mestra, de tamanho e peso tão descomunal que é necessária toda a gente da nau para a levantar e largar. Só a usam em casos de tempestade extrema como este.

As ondas pareciam montanhas, de uma lividez esverdongada, que nos queriam tragar. Não se podia, por mais cordas que estendessem para os marinheiros se agarrarem, caminhar de um lado ao outro. Qualquer objecto mal amarrado ou acondicionado andava deslizando e marrando com o que encontrava. Sairmos da nau era coisa impossível. As duas naus francesas que no porto estavam e se dirigiam para Trípoli, na Síria, com a grande tempestade que fazia quase as não víamos nem elas a nós, pois as vagas desencontradamente ora nos alevantavam às nuvens ora nos desciam aos abismos arenosos. Andavam fora de si não só os passageiros, com doloridos gritos e lamentações, mas também marinheiros e oficiais, homens tão experimentados no mar. O que me dava mais pena era ver meu companheiro jazer em contínuos desmaios e quando tornava a si, abraçar-se a mim e pedir-me a confissão. Foi terrível a noite. Atribulados e cansados, ao romper do dia, com o vento soprando cada hora com mais ruidosa fúria, vimos surgir do esverdinhado do mar e das nuvens que nele assentavam o vulto negro e enorme de uma nau veneziana. Aproximava-se com incrível rapidez aquela negra sombra e com ela os lancinantes gritos que ao passar deixou em farrapos pelo ar, num turbilhão que parecia um inferno. Mostrava-se o mar cada vez mais enfurecido e o chuveiro era intenso. Sobrelevava o nosso próprio perigo o espanto e admiração de ver coisa tão horrenda: aquela massa enorme afastar-se a correr para ir esfrangalhar-se num estrídulo e pavoroso fragor, que estrondeou acima dos uivos do vento e do rebentar das ondas, na penedia junto de terra. Sem sabermos que cuidar nem que dizer, ficámos por momentos especados, a respiração suspensa, boquiabertos, atónitos, o coração a bater fortemente, e o nosso assombro aumentou ao vermos o mar começar a aquietar, o vento a calar, o chuveiro a cessar e o céu a aclarar. Eram quase dez horas do dia.

Presenciaram o desastre os vilões da montanha, que sempre do alto, dia e noite, têm suas vigias por causa dos corsários. Gente bárbara e cruel, logo acudiram à pressa, trazendo consigo suas bestas, e começaram desumanamente, sem nenhum temor de Deus, a roubar e carregar quanto o mar lançava fora. Querendo-lhes ir à mão os pobres homens que do naufrágio e da fúria das ondas escapavam, nus, miseráveis, meios mortos, com suas armas os ofendia como contra inimigo mortal aquela maldita canalha. Carregavam suas alimárías, no meio da mais feroz violência, e tornavam-se para suas casas sem haver quem lhes pudesse resistir por serem muitos. Todo aquele dia, a noite seguinte e parte do outro dia exerceu aquela gente tão impiedoso latrocínio, até que acudiu a justiça de Limison, cidade maior e mais importante que Pafo, que a muito custo correu com os ladrões. Também de Pafo acorria muita gente e os das naus, estando já o mar de todo sossegado, saíram em terra. Meu companheiro e eu começámos a caminhar para onde estava a nau perdida, que seria cerca de meia légua, e ao chegarmos apertou-se-nos o coração com o espectáculo lastimoso de tanto destroço, tanta gente morta e ferida espalhada pelo areal, que, de compaixão, não pudemos conter as lágrimas». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

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domingo, 28 de janeiro de 2024

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Melhor que estas fábulas patranhosas, histórias frívolas, apócrifas e sobremaneira gostosas aos ouvidos, eram os ornamentos naturais da cidade e seu termo. Hortas viçosas…»

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O Breviário

«Não tínhamos pressa. Vimos os marinheiros começarem a bulir em caixotes e sacas que traziam de Veneza e nós já sabíamos o que aquilo queria dizer: detença no porto para se proceder à venda de mercadoria. Saíram também connosco dois fidalgos gregos que se tornaram nossos particulares amigos e ainda o bispo maronita. Frei Jorge conhecia a terra e a gente dela. Sabia falar a língua grega. Foi-nos, por isso, de grande utilidade e nós a ele, por nosso lado, pois levava muito fraca e miserável a sua bolsa. Em pessoa nos buscava tudo o que havíamos mister, sem se preocupar com a sua alta dignidade, mas não é coisa de estranhar, porque naquelas partes quase todos os bispos são pobres e vivem assim. Tinha uma zanga mortal aos Gregos.

Se me fosse possível, dizia muitas vezes, ter dentro de mim todos os gregos do mundo, consentiria de boa mente que me matassem de um golpe. Porquê, frei Jorge? Porque comigo morreriam os Gregos. A sua contumácia ia ao ponto de, tendo havia anos morrido sua mãe e sido enterrada em igreja de gregos, jamais lhe lançara água benta..., para não ter de entrar nessa igreja!, exclamava de dentes cerrados. Isto ouvíamos nós dele, enquanto fazíamos compras na cidade, depois de os gregos se terem despedido em companhia de parentes e conhecidos que, com muita festa, os vieram receber. Tais são, por nossos pecados, nestes calamitosos tempos, quase todos os cristãos de Oriente, criados e alimentados no ódio cego uns aos outros.

O meu espírito começava a acalmar e a minha tristeza ia-se esbatendo com os dias e com ver novas terras, aquela cidade tão antiga, aquela gente tão diferente na maneira e nos trajes e em tudo mais, os edifícios sumptuosos das duas catedrais, uma que faz à latina e outra à grega. Não oferecem curiosidade as casas de habitação, mas há por ali sinais de grandeza e tempos prósperos: vêem-se muitas antiguidades, como casas subterrâneas lavradas na pedra viva, com câmaras e estâncias de formas variadas, feitas todas de pedra de uma só peça. Em extremo desleixadas e destruídas, causam ainda assim admiração e espanto, mostrando a toda a pessoa curiosa como devem ter sido Notáveis as ruínas do antigo templo edificado em honra de Vénus Páfia: espalhados pelo chão inçado de ervas vêem-se grandes pedaços de colunas marmóreas e outras pedras raras como jaspes verdes, vermelhos e serpentinos, de grande fineza e lavrados com muita arte em diversos estilos, coríntio, dórico, romano...

Entre outras coisas, uma extraordinária abóbada que não nos souberam dizer para que tinha servido. São muito rústicos e ignorantes os gregos destas partes, e sem letras: somente sabem o grego vulgar de que fazem uso e, se alguma pessoa mais grada pretende conhecer o grego literário e gramatical, tem de ir aprendê-lo às escolas de Itália e de França, sobretudo a Veneza. Não há em toda a Grécia uma escola de grego, salvo em Atenas, onde o grão-turco, por memória do que foi e por mostrar sua grandeza, sustenta um estudo. É esta uma das razões por que se perderam muitos documentos escritos, sagrados e profanos, e a memória de muitas antiguidades da velha Hélade.

Continuando o tempo a mostrar-se-nos contrário e tudo sendo sinais de que a nossa detença ali seria de espaço, um dia nos levaram a visitar, légua e meia de Pafo, para norte, um pequeno templo, também dedicado a Vénus Páfia, ainda inteiro. Junto dele uma muito curiosa fonte de finíssimo mármore, que presentemente se chama Fonte dos Amores. Em volta ruínas de edifícios que aparentam grande antiguidade. Contam-nos que havia muito já que o culto de Vénus tinha acabado, e ainda o lugar continuava habitado por gente sensual e desonesta, e aquela fonte era objecto de muitas superstições e embaimentos: as mulheres estéreis recorriam a ela a ver se emprenhavam; as prenhes a ela vinham para terem um bom parto; as solteiras para atraírem os homens; as viúvas para de novo arranjarem marido, para tudo aquela água tinha virtude.

Melhor que estas fábulas patranhosas, histórias frívolas, apócrifas e sobremaneira gostosas aos ouvidos, eram os ornamentos naturais da cidade e seu termo. Hortas viçosas, verdes canaviais de açúcar e pomares ubérrimos com toda a espécie de arvoredo frutífero, onde, além da fruta de espinho que nesta altura está em sua perfeição, se pode apreciar a abundância de tâmaras, grandes, formosas e extremamente gostosas, muito inhame e os palmares de musas que naqueles sítios e em todas as mais partes orientais onde as lá chamam por outro nome, o depomumparadisi. São umas árvores da altura de uma lança, se tanto, e de folhas tão grandes que duas podem cobrir um homem. Dão uns cachos enormes e compridos, com quinze ou vinte pomos ou mais, que são de muito suave doçura, a carne deles como marmelada fresca e mole, a modo de figos mas a massa mais tesa». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

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quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

A Casa do Pó. Fernando Campos. «… deixando nosso direito caminho, e tomámos porto a pouco menos de meia légua da cidade de Pafo. Lançada âncora, saíram a terra alguns passageiros naturais da ilha. Frei Zedilho e eu fizemos-lhes companhia e fomos ter à cidade»

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O Breviário

«A sua desconfiança tinha fundamento, pois que sendo preso o pescador meteram-no a tormento e ao primeiro trato confessou o que se passara, denunciando os seus três outros cúmplices. Céus! Ainda hoje tremo de horror e de compaixão a pensar nisso! Alguém havia comprado aqueles homens para matarem um tal frade franciscano que trazia na mão um breviário de couro com cantos de prata e letras de ouro. Pietro e Bertino, não sei qual dos dois pegou por inadvertência no meu breviário. Isto me salvou a vida e custou a deles, porque saindo a terra para se recrearem dos enfados do mar foram aliciados por aqueles homens a irem visitar umas furnas que eles diziam ser muito formosas e ter uma imagem de nosso padre São Francisco feita na rocha viva muito tempo antes de ele ter vindo ao mundo. Tão grande maravilha foi o suficiente para convencer a boa-fé dos dois pobres frades. Uma vez nas furnas escondidas, ataram-nos de mãos e pés, mataram-nos com pancadas e lançaram-nos ao mar, com enormes pedras para os corpos não mais poderem aparecer... Mas a justiça humana não consentia em perdoar-se tão grande crime!, e o meirinho, apontava, na costa não muito distante de nós, um morro onde se viam baloiçando sinistramente ao vento quatro corpos pendurados pelo pescoço em suas forcas. Só faltava apanhar um, que parecia ter sido o chefe, um tal Argirópolos. Mas ninguém mais lhe deitara a vista em cima!, juntei minhas lágrimas às de Signor Nicolló e durante dias não saí do meu camarote nem tomei refeição, tão deprimido andava. Não era medo, por mim. Nem nisso tinha ainda pensado, de tal maneira me obcecava a visão dos meus pobres companheiros mortos. Foi o próprio patrão que desceu a buscar-me para comer à sua mesa e quase me obrigou de sua força: Era pecado mortal o suicídio. E que coisa era senão isso que andava a fazer frei Pantaleão?

Rezasse pelas almas de meus irmãos, mas cumprisse, enquanto peregrinava neste vale de lágrimas, a minha missão com alegria. Passava longas horas esquecidas na amurada, sozinho, alheado, adormecido, vendo a quilha do barco cortando monotonamente a água. Já íamos muito longe de terra, Undia ficara para trás, passáramos Escarpanto e estávamos navegando pelo grande golfo de Satália, felizmente com vento próspero e amigável de poente, o que nos movia a de continuo darmos graças a Deus, porque, segundo nos afirmavam, é raríssimo passar-se ali, especialmente no Inverno, sem algum enfadamento dos navegantes e muitas vezes se têm perdido as naus.

Antigamente..., dizia-me um passageiro grego que se viera postar junto de mim, que bem sentia o esforço que todos faziam para me arrancarem ao meu acabrunhamento. Num barco tudo se sabe e aquela tragédia, além de contristar toda a gente, fez incidir sobre mim uma especial áurea que o suspeitado mistério que me rodeava acrescia de um vago temor e acatado respeito, este golfo era ainda mais perigoso do que ao presente porque, com as tempestades, andava aqui um dragão marinho, muito grande e espantoso, que subvertia as embarcações. Andou aqui, era agora, do outro lado de mim, a voz de frei Zedilho, que também viera fazer-me companhia para me distrair, até ao tempo de Santa Helena, mãe do imperador Constantino.

Passando ela um dia por aqui, lançou ao mar um dos cravos com que o Redentor foi pregado na cruz e desde então nunca mais o dragão apareceu. Terra à vista!, gritou do alto da gávea um marinheiro e logo de todos os lados ocorreu gente a olhar ao longe uma ténue mancha que no horizonte começava a sombrear-se. É Chipre!, dizia alguém próximo de mim. Daí a pouco via-se nitidamente o monte Tróodos, dominando com sua grande altitude aquela parte da ilha, dele escorrendo em leque inúmeros contrafortes entre que se cavavam talhados sombrios e exuberantes.

Muito perto da ilha sobreveio um vento sul muito áspero e desumano, que nos afligiu a todos e desconsolou, que nisto param de ordinário todas as coisas de vida. Mas pudemo-nos remediar, porque, navegando muito junto a terra, fomos ao longo dela, deixando nosso direito caminho, e tomámos porto a pouco menos de meia légua da cidade de Pafo. Lançada âncora, saíram a terra alguns passageiros naturais da ilha. Frei Zedilho e eu fizemos-lhes companhia e fomos ter à cidade». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

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A Casa do Pó. Fernando Campos. «Outros lhe chamavam Iráclion, do antigo nome de Herácleon..., viera procurar a justiça, desconfiado de um pescador que tinha aparecido na sua loja a vender uns breviários e outros livrinhos de religiosos latinos»

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O Breviário

«Assim, celebrámos a missa do dia no convés da nau, com muita solenidade e festa e deu-nos a bênção episcopal um sacerdote maronita chamado Jorge, arcebispo de Damasco, que embarcara connosco em Veneza. Enviara-o a Roma o patriarca dos maronitas do monte Líbano, Moisés, com o fim de assistir ao Concilio de Trento. Pio IV, porém, embora o tenha recebido com mostras de paternal amor, não acede a enviá-lo ao concílio, visto ele não saber latim e conhecer deficientemente o italiano. Pelo contrário faz o arcebispo portador de uma carta de Setembro atrás passado, para o patriarca Moisés, em que, explicando isto mesmo, afirma que será bastante que o patriarca escreva, tão depressa quando possível, uma declaração de como ele, os seus sufragâneos e o seu clero testificam e aproveitam, tal como o fez o patriarca assírio Abdisu, que recentemente estivera em Roma, os decretos emanados do Concílio Tridentino, aprovando tudo o que este aprovar e condenando tudo o que este condenar. Quer dizer, Sua Santidade, não confiando muito na cultura do seu patriarca de monte Líbano, na sua carta enviava-lhe a minuta da que ele lhe deverá escrever de seu punho.

Era eu muito familiarizado com frei Jorge, por o haver conhecido e ajudado quando estava na Cúria romana. Daí que não seja de estranhar conhecer eu todos estes pormenores, bem como o ter gasto toda essa manhã, antes da missa, a ensinar ao bispo como havia de proceder ao dar-nos sua santa bênção em latim, ao nosso modo, recomendando-lhe que se paramentasse com aquele magnífico pontifical com que Sua Santidade presenteara o seu patriarca. In nomine Patris..., repetia eu pela centésima vez. Mas ele, de ouvido duro: Mè nè Pàtros... In nomine Patris et Filii... Mè nè Fílios...

Com muita paciência lá o fui ensinando como pude e, cuidando que não havia mais que fazer, dispusemo-nos a assistir à missa. Quando esta acabou, julgando eu que ele ia aparecer de pontifical e mitra, pôs-se no altar com uma grande trufa na cabeça à maneira de turco, em lugar de mitra, e sem mais adiutorium nostrorum nos lançou a todos uma rasgada e soleníssima bênção, dizendo em alta voz: Ménós Pátras, ménós Filiós, ménós Spírítós Sanctós. Foi um fungar de risos mal contidos e algumas risotas um tanto descaradas, mas o arcebispo estava tão radiante que nada notou.

Aquele dia houve banquete a bordo, oferecido pelo patrão da nau a todos quantos nela iam e também aos patrões e pilotos das outras naus. Tinham os homens da montanha vindo ao barco, no dia anterior, vender muita caça, e frei Zedilho, sem me dar conta, fez pagar uns quatro ou cinco leitões, porque o escrivão de bordo levava ordens para pagar tudo o que nos fosse necessário até sairmos em Chipre. Mandou aquentar água para os pelar e, com um moço que na nau estava ao nosso serviço, pôs-se, desatinadamente e por festa, a degolar os inocentes. Ainda que no mar, havia quase dois meses que guardávamos jejum, por ser Advento e nossa regra assim nos obrigar. Também o guardam os Gregos e foi isso que extremamente escandalizou, pois são supersticiosos, uns quantos que vinham na nau entre os passageiros. Levantou-se um murmúrio tal e palavras tão desconcertadas que frei Zedilho, sentindo-se, desatou a chorar. Estava eu em baixo, no camarote, a ler um sermonário de São Vicente Férrer. Apesar de não ser pregador, muito o estimava, com o seu tão santíssimo o bona gens, quando o meu companheiro me aparece lavado em lágrimas

Que é isso, irmão? Com a voz embargada lá me foi contando o sucedido. Acudo eu logo acima à coberta a repreender os gregos: Mas que supersticioso desaforo e desaustinada insensatez era aquela?, disparei eu, influenciado pela eloquente leitura do sermonário. Não matavam os seus sacerdotes as pulgas e os piolhos quando lhes mordiam? Claro que sim! Então que diferença faziam as almas e os espíritos de pulgas e piolhos das dos porcos?

Interditos com uma pergunta tão simples e sem saída, não sabendo que me responder, acabaram por pedir desculpas a frei Zedilho, e retiraram-se. Irmão Zedílho, lhe disse eu, quando ficámos sós, o que não é honesto fazer-se entre católicos não será bem fazer-se entre cismáticos e demais gregos, tão preconceituosos. Mea culpa, irmão Pantaleão! Decorria o banquete com muita alegria, risos, conversa animada e boa disposição de todos, quando de terra veio um batel que trazia uns como que meirinhos ou justiças-mores do lugar. Logo procuraram o patrão e durante algum tempo falaram com ele à puridade, Um moço veio ter comigo: Que o patrão me mandava chamar. Levantei-me imediatamente e segui o moço. No seu camarote o patrão, sentado a uma mesa, tinha a cabeça entre as mãos e chorava. Os dois oficiais de justiça estavam de pé junto dele. Depois de um pequeno cumprimento de cabeça, um deles perguntou-me: Sois frei Pantaleão? Acenei que sim. Podeis mostrar-me o vosso breviário? Posso mostrar-vos, respondi, tirando do bolso o breviário em que inadvertidamente pegara - aquele que comigo trago e que, por engano, troquei com o de algum companheiro.

Como é o vosso? Tem uma encadernação invulgar de carneira castanha, cantos de prata, letras gravadas a ouro. Que sabeis dele? É livro que tenho em muita estima e bem me pesaria perdê-lo. Este?, e mostrava-mo. Meu Deus!, exclamei eu, pegando nele e tumultuando-me na cabeça não sei que pensamentos sestros e suspeitas. Onde o encontrastes? Que um livreiro da cidade de Cândia, ao norte, o mesmo nome da ilha, sabia? Outros lhe chamavam Iráclion, do antigo nome de Herácleon..., viera procurar a justiça, desconfiado de um pescador que tinha aparecido na sua loja a vender uns breviários e outros livrinhos de religiosos latinos». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

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A Casa do Pó. Fernando Campos. «Ali perto havia aldeias e montes, cujos moradores, tendo ouvido o estrondo das salvas, porventura acudiriam a saber o que era e, vendo que se dizia missa em igreja de gregos, certamente se seguiria algum escândalo!»

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O Breviário

«Certamente, aventou frei Zedilho, desencontraram-se de nós. Como viemos por outro caminho... Estão no mosteiro, de certeza. Vou ordenar que alguém vá por eles, disse o patrão. Passámos essa noite repousadamente, não nos cansando de contar a todos as maravilhas que tínhamos visitado, o que lhes causava admiração. O tempo estava muito claro e o mar bonançoso. Não obstante não faziam mostra de querer levantar vela.

Mestre Teodoro, perguntava frei Zedilho ao piloto, se temos tempo de feição, porque não levantamos âncora? Por duas razões, lhe respondeu ele. A primeira é que o patrão nunca partiria sem ter a bordo os vossos dois companheiros... Oh, meu Deus! Como me esquecia! Desculpai a pergunta. Mas se não houvesse essa razão de peso, outra haveria para não partirmos antes de lua cheia, que deve ser daqui a dois dias. Teremos de aguardar, a ver se com ela o tempo faz alguma mudança. Fazendo-a, então não havemos de partir tão cedo deste porto. Aí adiante temos de passar um golfo que não é para graças. Nele se têm perdido muitas naus.

No dia seguinte, que era véspera de Natal, quando Signor Nicolô se preparava para enviar ao mosteiro pelos dois franciscanos, apareceram, vindos de lá, dois caloiros, mandados pelo abade como lhes havíamos pedido. Traziam-nos muita fruta de espinho e outro refresco. Não estiveram no vosso mosteiro dois irmãos franciscanos?, perguntou o patrão. Que sim, que haviam estado, respondiam pensando tratar-se de mim e de frei Zedilho. Mas que tinham tomado por outro caminho a visitar antiqualhas.

O momento era de certa euforia. Trocavam-se presentes, fazendo agora nós toda a caridade possível aos dois caloiros, inclusivamente o tirar-se particular esmola para eles, dando cada um do que tinha. Ninguém notou, por isso, a confusão e o equívoco em que se estava caindo e os nossos espíritos eram serenos. Despediram-se os caloiros muito contentes e nós ficámos cheios de alegria, preparando a festa de Natal e esperando a nossa partida.

Em querendo anoitecer, ruido de cavaquinhos, violas, adufes, flautas, tambores, que sei eu, tudo de mistura, vem quebrar a monotonia a bordo e festival cortejo passeia-se por todo o convés da nau. São os patrões e oficiais das outras embarcações que também no porto estão aguardando tempo. Festejam o nascimento de Cristo, tangendo e cantando. Param de vez em quando, a combinar, muito ordeiramente, qual dos grupos vai cantar. É então possível ouvir lindas canções da natividade em francês, em italiano, em grego. Não deixa frei Zedilho os seus créditos por mãos alheias e, saindo um pouco da sua natural timidez, entoa, logo acompanhado pelos instrumentos músicos, um cantar castelhano que começa: Nacid en Belén un niño chiquitín hermoso como un serafín...

Apertam comigo para que também cante em português. Não me faço rogado, olha eu. Escolho, entre muitos hinos que sei, um muito vivo e mexido que tem o condão de pôr toda a gente a cantar: Pastores! Pastores! Vamos todos a Belém adorar o Deus-Menino que Nossa Senhora tem.

Preparamo-nos para a missa. Valha-me Deus que, enquanto me paramento, ainda com os ouvidos cheios daqueles cânticos de Natal, só me acode à lembrança aquele adágio que diz: Itali ululant, Hispani plangunt, Galli canunt, os Italianos uivam como cães quando cantam, os Espanhóis mostram chorar porque tudo são sentimentos e endoenças, mas os Franceses no seu cantar mostram prazer e alegria, coisa natural nos galos em todo o tempo e lugar...

Coube-me a mim celebrar a missa, ainda que havia de ser uma missa seca, por estarmos no mar, embora sobre âncora e porto seguro. Foi acompanhada com violas de arco, cravo e manicórdio. O mais da noite passou-se tangendo e cantando. O dia de Natal acordou festivo, as naus todas embandeiradas, a dispararem sua artilharia. O padre meu companheiro disse a missa de alva e, para a missa do dia, houve quem aventasse que se devia celebrar em terra, em uma ermidinha que estava algum tanto desviada do porto, mas os fidalgos gregos que vinham na nossa nau, o atalharam: Não o fizéssemos! Ali perto havia aldeias e montes, cujos moradores, tendo ouvido o estrondo das salvas, porventura acudiriam a saber o que era e, vendo que se dizia missa em igreja de gregos, certamente se seguiria algum escândalo!» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

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A Casa do Pó. Fernando Campos. «A uma parte desta quadra fica uma pequena entrada, como a inicial. Por ali, dizia o homem, continuava o labirinto até ao mar, do outro lado do arquipélago... E incitava-nos a prosseguir a visita»

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O Breviário

«Estávamos nisto, chegámos a uma aldeia em que só encontrámos mulheres e crianças, muito espantadas e assustadas com o nosso aparecimento. Homens nem cheiro. Os caloiros, que eram conhecidos, entraram com elas à fala. Que era feito dos seus homens? Ah! Éramos nós! E elas que ouvindo vir gente pelo caminho em altas vozes pensaram serem corsários mouros! Era uma mulher ainda nova que falava, com o filhinho muito sujo ao colo.

Então foi por isso que os homens desapareceram? Os mouros, intervinha uma outra, o que queriam era homens que metessem a remos. Mulheres? Isso só se as fossem vender muito longe a terras do grão-turco!... Mas desse tinham eles medo por mor das cruéis justiças com que os mandava castigar. As mulheres, sendo novas, dizia a primeira, fazem aquilo que sabeis e não se importam mais com elas Pouco a pouco vinham-se chegando alguns dos homens que se haviam escondido e, corridos e envergonhados, procuravam dar-nos escusa da sua fugida da mesma maneira que as mulheres o tinham feito.

Que distância é daqui ao labirinto?, perguntou um dos nossos companheiros a um daqueles homens. Aí umas quatro milhas... Eu conheço muito bem o caminho, destacava-se um outro. E oferecia-se: Se quiserdes, irei convosco. Concertada a ida e assentada a hora da partida, fizemos uma breve refeição por ser altura disso. Despedimo-nos dos caloiros. Da nossa parte pedissem ao abade se dignasse mandar uns caloiros à nau para lhe enviarmos alguma caridade em recompensa da muita que nos fez no seu mosteiro.

Quase à hora de véspera chegámos ao sítio. Era junto de uma outra aldeia maior que a primeira. Apresentaram-nos um homem já de idade que costumava ser o guia, pagando-lhe seu trabalho. Tudo contado, pusemo-nos a caminho e breve chegámos à porta do labirinto. O guia, ajudado por um mancebo que vem com ele, retira duas grandes pedras da boca por onde havemos de entrar, que é uma espécie de porta de cova. Entram ambos adiante, cada um com seu morrão aceso na mão, e nós após eles, de pés e mãos porque a entrada é apertada. Caminhamos uma grande milha por debaixo de abóbadas e abóbadas feitas da mesma rocha, sem vermos nada de notável, salvo o intrincado das diversas estâncias e o soar por elas uma fortíssima ventania sem se atinar por onde possa entrar. Chegamos finalmente a uma quadra muito espaçosa. Na parede, uma argola de bronze, tão grossa que pesará um bom quintal. Fora ali, informa-nos o nosso guia - que estivera preso o monstro Minotauro.

A uma parte desta quadra fica uma pequena entrada, como a inicial. Por ali, dizia o homem, continuava o labirinto até ao mar, do outro lado do arquipélago... E incitava-nos a prosseguir a visita. Não!, adiantei-me eu, enfadado da fábula que tudo aquilo era e de não haver nada de notar. É jornada muito comprida e já é bastante tarde. O principal está visto e eu sinto-me extremamente cansado.

Todos concordaram e tornámos a sair por onde tínhamos entrado. Eram duas ou três horas de noite quando chegámos à aldeia. Repousámos junto de uma grande fogueira que a mulher do nosso guia tinha acendido, por falta de camas, porque naquelas aldeias é tudo miséria. Logo que amanheceu, seguimos caminho em direcção à nau. Mal chegámos perto do mar e fomos vistos de bordo, meteu-se o patrão num batel e veio-nos receber, com grande alegria de todos e, satisfazendo ao nosso guia e a seu companheiro, se despediram estes de nós contentes da paga. Mas quando entrávamos no batel para regressar à nau, o patrão, que com o olhar perscrutava miudamente o nosso grupo como a contar se estávamos todos, perguntou-me e a frei Zedilho: Não vistes vossos irmãos Pietro e Bertino? - Não. Porquê? Há dois dias me pediram licença para irem a terra e ainda não tornaram. julguei que se teriam juntado a vós. Não, não os vimos. Quereis que os procuremos? O ponto é esse. Procurá-los, onde?» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

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domingo, 31 de dezembro de 2023

No 31. A Casa do Pó. Fernando Campos. «Não quereis tomar um pouco de trabalho e ir ver uma notável antiguidade que fica não muito desviada do caminho que levamos? E que antiguidade era essa? O labirinto do Minotauro. O labirinto!»

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O Breviário

«A jornada, porém, correu pacifica e com grande contentamento chegámos antes do sol-posto ao mosteiro dos caloiros, a um tiro de pedra do qual nos saiu a receber o abade rodeado de alguns dos religiosos. Com muita humildade se lançou a nossos pés pedindo-nos a bênção, como é seu costume quando se encontram com outros religiosos. Fizemos nós o mesmo pedindo-lhe a sua e abraçámo-nos uns aos outros e beijámo-nos na face, por se usar naquelas partes e em todo o Oriente, ao modo italiano. Levaram-nos, de seguida, à igreja a fazer oração. Noto então que, por distracção ou troca inconsciente, tinha trazido um breviário que não é o meu. Acabada a oração, levam-nos a uma casa a modo de hospedaria, onde os têm preparada colação com muitas tâmaras, grãos tostados e outras coisas à maneira da terra. Vendo-me em tão caritativo convite, achei ser essa uma óptima ocasião para oferecer ao abade e aos caloiros uma caixa de marmelada. Tinha-a comprado, com outra provisão, em Veneza e trazia--a metida na manga, por assim me haverem aconselhado na nau: que não fosse de mãos abanar. Provam-na, que delícia!, tornam a provar: Nunca naquelas grecianas partes, fra Pantaleone, se vira tão delicada iguaria!

Levam-nos em seguida ao pomar do mosteiro que é muito viçoso de fruta de espinho de toda a sorte, ponteando seus pomos de ouro no verde da folhagem, com cuja vista e perfume nos recriamos e tomamos alento do passado enfadamento do mar. Tornados ao mosteiro, encaminham-nos para um grande refeitório, em que haviam acendido um acolhedor fogo para quebrar o frio que, com o cair da noite, se começa a sentir.

À nossa espera uma esplêndida ceia! Sendo pobres, sua caridade não permite enxergar-se neles pobreza para connosco. À nossa mesa se senta o abade com dois caloiros velhos. Teve o cuidado, pois era Advento e sabia que, conforme nossa regra, nos guardamos nesta altura de comer carne, de mandar fazer provisão de pescado. De toda a maneira guisado nos é posto diante com as mais variadas achegas de manjares quaresmais. Numa outra mesa estão os nossos companheiros leigos, servidos de muitas espécies de carnes de que, em especial nesta quadra, é muito fértil a terra. E que bom vinho e capitoso este Cândia que nos servem e nos faz dormir a noite num repousante e restaurador sono, a mim e a frei Zedilho. É um aposento alto. Tinham-nos preparado e feito as camas, não de colchões moles e brandos, mas dos seus próprios hábitos e túnicas. Como cobertores, umas esclavinas, que são mantas brancas, grandes e feltrudas, a modo de bétnios. Fabricam-se na Esclavónia e correm por todo o Levante.

Serve-se delas a gente comum, que não tem muito de seu, mas são melhores e mais amorosas que as do nosso Alentejo, frias de Inverno e quentes de Verão.

Agasalhámo-nos, frei Zedilho e eu, o melhor que pudemos. Os companheiros gregos esses levaram a maior parte da noite a cantar e a tanger, para o que haviam trazido duas violas de arco e um alaúde. É esta gente muito inclinada à música e a passatempos, ainda que lhe falte as boas vozes do nosso Portugal.

No dia seguinte, tomada a bênção do abade, partimos do mosteiro por outro caminho, indo connosco dois caloiros para nos guiarem. Acentuou-se em mim a impressão que tivera no dia anterior de que aquela serra era uma Arrábida em ponto grande, pois a vegetação, a rescendência, a finura do ar, a leveza da água, a qualidade da caça, o azul do céu, a limpidez do mar - tudo me fazia lembrar aquela minha serra. íamos conversando destas coisas e de outras, pois não era dificil entender-nos porque toda a gente nobre das terras sujeitas a Veneza fala e compreende bem o italiano, quando um daqueles senhores gregos nos disse: Sois decerto inclinados a ver curiosidades... Não quereis tomar um pouco de trabalho e ir ver uma notável antiguidade que fica não muito desviada do caminho que levamos? E que antiguidade era essa? O labirinto do Minotauro. O labirinto! Mas que maravilha!, exclamei entusiasmado e agradecendo-lhe exuberantemente a ideia». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

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sábado, 30 de dezembro de 2023

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Maldito veneziano!, rosnou-me ao ouvido, quando já seguíamos caminho, um dos caloiros gregos que nos acompanhava. Porquê?, perguntava eu. Fossem para a sua terra!»

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O Breviário

«Mas eles acudiam muitas vezes por estes sítios, salteando o que achavam mal provido. Tornássemos com a brevidade possível, rogava-nos. Partimos da nau e já teríamos caminhado um bom tiro de arco quando dela veio correndo após nós um veneziano com quem tínhamos muita familiaridade.  Fra Pantaleone! Fra Zedilho!, gritava-nos ainda de longe, ofegante. - Aspettate! Que se passa, Francesco? Não sabia da nossa partida, disse-nos em voz baixa, tomando-nos de parte. Foi por acaso que chegou ao convés e nos viu vir. Perguntou a Signor Nicolló e, logo que soube aonde nos dirigíamos, veio ter connosco.

Mas que se passa, Francesco?, insistíamos. Per amor’ di Dio, não seguíssemos! Regressássemos à nau.. Não quiséssemos ir com aqueles gregos. Porquê, Francesco? Porquê? Grave perigo, risco de não tornar!... Perfídia! Má fé! Malícia! Torpe mentira!, gritou de súbito, muito agastado, um dos fidalgos cipriotas, que se havia aproximado e entendido alguma palavra das que Francesco nos dizia, suspeitando o que podia ser. Em companhia de tanta honra como a sua e de seus companheiros não havia que temer!...

Aproximavam-se os outros fidalgos gregos, curiosos com o ruído, querendo saber o que se passava. Francesco está-lhes a inculcar que, se forem connosco, não mais regressarão. Ah! Maldito! Como podeis dizer tal coisa! Infâmia I Per la Madonna! Quem havia de crer em tal aleivosia?, julguei necessário intervir e, virando-me para Francesco, disse-lhe: Meu bom Francesco, muito vos agradecemos, frei Zedilho e eu, o vosso zelo. Mas olhai que exagerais um tanto, porque não podeis pautar a conduta de tão nobres senhores como estes que nos acompanham pela dos salteadores da montanha. Voltai sossegado à nossa nau, que nós seguiremos nosso caminho em muito excelente companhia.

Só fiz isto por bem!, escusava-se envergonhado Francesco. Começava a dar-me conta de uma triste realidade que dizia respeito às relações de cristãos latinos com cristãos gregos. Uns e outros, esquecendo-se de que ambos professam a religião de Cristo, em vez de sentimentos de irmandade cultivam uma tal animosidade que atinge o ódio quando é o caso, como o de Cândia, de a terra de Gregos estar sob o domínio de nação latina, os Venezianos.

Maldito veneziano!, rosnou-me ao ouvido, quando já seguíamos caminho, um dos caloiros gregos que nos acompanhava. Porquê?, perguntava eu. Fossem para a sua terra! Esta é nossa! Nossa!... Contou-me que é tão grande o ódio que os Candiotos têm aos latinos, vendo-se deles sopeados e sujeitos, que muitas vezes tem acontecido, achando gregos a algum latino só e em parte que ninguém o possa testemunhar, não terem a menor hesitação e escrúpulo em o matar. Mas nós éramos latinos e eles não nos estavam mostrando ódio! Explicava-me que o ódio era a Veneza, e nós, padres da Ordem de São Francisco que eles sobremaneira prezavam, além de que tinham em muita admiração e estima Portugueses e Espanhóis, cujos feitos corriam mundo... Assim, seguindo nosso caminho, por experiência vimos não ser sem causa o aviso de Francesco, embora errado em relação aos cipriotas que nos acompanhavam. Estes senhores gregos não consentem que um só momento nos apartemos deles. Que eram paragens muito perigosas aquelas! Havia muitos ladrões e os homens selvagens como os que víramos na nau estavam acostumados a sair aos caminhos a buscar sua presa». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

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sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Que diz ele?, pergunto a um oficial de bordo que está perto e se chama Constantino. Perguntou-vos o nome, responde. Pantaleone!, exclamo eu em italiano, por me parecer mais sonoro e apreensível aos ouvidos de um bárbaro»

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O Breviário

«Outra visita temos, curiosa e invulgar. Naquelas matas espessadas que se vêem nos montes, moram nos cerros agrestes e nas brenhas densas, em grutas e covas, homens bárbaros e bestiais, tidos comummente na ilha como selvagens, pois que vivem apartados do convívio humano, jamais descem aos povoados e levam um teor de vida primitivo. Sustentam-se da caça e pelejam muitas vezes com fustas e galeotes de mouros que por ali ordinariamente acodem a roubar, de Rodes, de Escarpanto e de outros lugares vizinhos da ilha. Mostram-se contudo afáveis e dados com os venezianos, quanto ao que entendi, ou por serem estes os senhores da terra, ou porque deles necessitam quando os vêem aportar àquelas partes, ou porque lhes têm o respeito que é costume ter-se a naus tão artilhadas como as de Veneza. Nos dias que ali estivemos presenciei o cuidado e resguardo com que sai a terra a gente do serviço da nau, que quando vai buscar lenha ou água fá-lo sempre acompanhada de arcabuzeiros.

Três destes homens vêm a bordo a vender carne montesinha. Trajam samarrões sem mangas, feitos de couro cru de veado. Debaixo, uma camisa muito áspera e grosseira. Não trazem bragas, mas umas botas de pele crua de vaca, tão altas que as atacam com uma tira de couro junto da cinta. Na cabeça, de cabelos tão compridos que lhes chegam a meio das espáduas, uma espécie de carapução também de couro cru, que juntamente com lhes servir para os cobrir lhes serve ainda de arma defensiva em tempo de necessidade. Usam arco e setas, que nunca largam quando saem. Trazem perdizes, cabritos, leitões, veados. Vendem tudo tão barato que quatro perdizes custam um marcelo, que é como o nosso real de prata, e pelo mesmo preço vendem os cabritos e os leitões.

Entre estes homens vem um extremamente comunicativo e faceto, de nome Argirópolos, que com todos quer zombar e gracejar, faz todo o possível por dar fé de quanto há na nau, andando de coberta em coberta, abaixo e a cima, e, ainda que alguns o convidam a que pouse o arco e as setas, ninguém o consegue. Passando junto de mim atenta no meu breviário que, por suas capas de carneira castanha, cantos de prata lavrada e letras gravadas a ouro, oferta do superior de Évora ou, como eu desconfiava, de alguém por seu intermédio, aquando da minha ordenação, é diferente dos de todos os outros frades. Faz menção de o ter nas mãos, no que eu consinto, e profere algumas palavras que me parecem uma pergunta. Embora aprecie o espectáculo da sua viveza e graça, não o entendo. Não sei o grego falado. Mas entendem-no muitos passageiros gregos e os oficiais da nau, quase todos gregos. Esta falta têm as naus venezianas: o trazerem pilotos gregos, recrutados nas muitas terras e ilhas marítimas gregas de que têm o senhorio e cujos habitantes, numa tradição que vem dos tempos antigos, se dedicam à arte de navegar.

Que diz ele?, pergunto a um oficial de bordo que está perto e se chama Constantino. Perguntou-vos o nome, responde. Pantaleone!, exclamo eu em italiano, por me parecer mais sonoro e apreensível aos ouvidos de um bárbaro. Pantaleone!, repete ele maravilhado, rebolando os olhos risonhos e despejando uma algaravia que não entendo mas que Constantino, fazendo de língua, se apressa a traduzir: Diz que Pantaleone é nome grego e que, se vós sois todo leão, sois valente como um leão e ele gosta dos homens valentes como leões. Todos se riem muito com a laracha e eu também. Ele entretanto já me andava arremedando, passeando devagar para trás e para diante, com o breviário aberto, fingindo lê-lo, mexendo os lábios, e deitando fora muitos perdigotos. Enquanto a gargalhada é geral, chega-se a mim com um ar muito composto e entrega-me o breviário dizendo: Pantaleone! Como é que de repente me vem à ideia aquela expressão latina cretenses mendaces, os Cretenses são mentirosos? Quem me havia dito que esta gente é muito doméstica, amigável e de boa conversação no exterior, mas no seu Intimo malíssima, mentirosa e traiçoeira?...

Não se esqueceram os caloiros de no domingo seguinte nos virem buscar, pela manhã, para nos levarem consigo ao seu mosteiro. Acatamento amistoso, refeição no nosso camarote. Depois de comermos juntaram-se a nós quatro fidalgos cipriotas e cinco passageiros gregos e todos juntos, com meu companheiro frei Zedilho, pedimos licença ao patrão para irmos com os caloiros ver o mosteiro. Signor Nicoló concedeu-no-la com muita cortesia. Também de boa vontade ia connosco, se o porto estivesse seguro de corsários». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

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quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Para sul, a umas dez léguas, avista-se a sombra enevoada da ilha também chamada Cauda. Esta ilha e o Porto Seguro são sítios afamados pela passagem de Paulo de Tarso…»

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«Com a nuvem cimeira saturada de água, o cano deixou de sorver, despegou-se da superfície das águas e foi-se recolhendo pelo ar, aproximando-se de nós. Alguns, vendo aquilo chegar-se, entraram em pânico. A gritaria era atordoadora, a fuga para a escada da coberta infrene, os atropelos incontrolados, os desmaios frequentes. A coisa passou com um ruído cavo, um impetuoso torvelinho de vento e chuva que nos deixou descompostos e encharcados, mas tudo isto tão rápido que num instante pareceu acordávamos de um pesadelo, ao vermos tudo quieto, sossegado e calmo, lá muito ao longe uma sombrazinha de negra nuvem com um apêndice pendurado, que fugia, desaparecia, se esfumava. Do fenómeno restava-nos ainda uma surpresa: sobre o tabuado do convés centenas de peíxinhos prateados ainda davam ao rabo e abriam a boca na respiração da agonia. Muito nos alegrou uma tão grande e inesperada pescaria e tão sem trabalho, pois não comíamos havia três dias. Mas não estavam terminadas as nossas provações. Ia a nau a orça ao longo da ilha, logo que nos achámos com bonança procurámos porto onde recuperar e descansar, vimos boiando nas ondas alguns cadáveres de marinheiros que as vagas haviam arrastado pela borda fora durante a tempestade. Muito perturbados ficámos todos à vista deles e eu mais que ninguém ao reparar num que, mais perto do barco, estava de borco com a cara alagada na água e os braços estendidos, inchado. Vestia uma camisola de lã que eu conhecia muito bem. Pérides!, murmurei comovido.

Meu companheiro rezava e eu, como pagão, recordei o verso de Virgílio: Nudus in ignota, Palinure, iacebis arena ... Tocava a trombeta da nau. Era o patrão que mandava que nos juntássemos todos. Rezámos pelos mortos três padre-nossos e três ave-Marias, e cantámos o Salve Regina, dando graças por estarmos livres de tão graves perigos. Mas como a vida continua e era necessário refazermos as forças do corpo, daquele peixe que a tromba marítima para nós havia pescado fez-se uma saborosa caldeirada de que todos comemos gostosamente.

O Breviário

Assim outrora na alta Creta se diz que o Labirinto tinha um intrincado caminho de paredes cegas e um ancípite dolo de mil ruas; falseava os sinais de romper saída um errar sem retorno e sem emenda.

Apoiado na borda da amurada, escrevo uma breve nota: Dezanove de Dezembro. Nove horas da manhã. Tomamos porto a sul da ilha de Càndia. Critas! Critas!, bradava um marinheiro, para que os passageiros se preparassem para desembarcar. Frei Zedilho, a meu lado, observa: Estais a ver como eles dizem o nome da ilha? Critas ! Só os Gregos lhe chamam assim. Ainda hoje entre os latinos dizem Creta, se não lhe querem chamar Cânàia. Estamos a aportar num lugar de nome Cauda Leonis, que quer dizer cauda de leão, muito perto de um outro porto, o Porto Seguro, procuradíssimo dos barcos que vêm de Chipre e de Alexandría. É com grande alegria que tripulantes e passageiros vemos a terra aproximar-se e enquanto os primeiros se entregam já à faina do recolher as velas e do ruidoso levantar de âncoras, todos os outros nos amontoamos na amurada, na expectativa de podermos sair em terra firme.

Para sul, a umas dez léguas, avista-se a sombra enevoada da ilha também chamada Cauda. Esta ilha e o Porto Seguro são sítios afamados pela passagem de Paulo de Tarso, em condições de tempestade e de naufrágio. O lugar em que estamos aportando é abrigado, resguardado de um lado por umas ilhotas ou sirtes, do outro pela costa áspera, montuosa, com espessas matas de ciprestes.

A recreação e alívio do enfadamento recentemente passado são motivo mais que sobejo para todos desejarmos sair, mas quando nos preparamos para o fazer eis do nosso barco começam a salvar com alguns tiros cinco outras naus que também se encontram recolhidas no porto, duas delas francesas de Marselha e as outras três da Esclavónia. Respondem-nos estas com suas salvas e logo acode em batéis a gente, que sobe a bordo da nossa a nos ajudar. Outra espécie de ajuda recebemo-la já quase sol-posto de um mosteiro que fica a duas pequenas léguas daqui e que, ouvindo as salvas de tiros, enviou dois caloiros a trazerem ao patrão da nau refresco de pão mole, verdura e fruta de espinho, da qual há muita na ilha. São de todos nós recebidos com muito gasalhado e mostras de amizade e de que sua visitação nos é extremamente grata. Despedindo-se de nós, prometem-nos tornar ao domingo seguinte para nos levarem a visitar o mosteiro». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

 Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

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A Casa do Pó. Fernando Campos. «(Sífonas!), murmurava calmo a meu lado um oficial de bordo, ao mesmo tempo que alguns peregrinos latinos (um monstro!, um monstro!), bradavam em alta gritaria»

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«Afoitava-me eu, de vez em quando, a rastejar até à escada que dá para o convés e, embora a portinhola estivesse fechada por mor da água não entrar, espreitava pelas frestas o que ia lá fora. As ondas varriam o barco vergastando-o ruidosamente de um bordo ao outro e ora subiam tão alto que nos parecia estarmos no profundo, vendo-nos de todos os lados cercados delas como de muros, e logo se abriam até aos abismos, perturbado o nosso entendimento. Três dias com suas noites nos durou esta cruel tormenta e todo este tempo andámos pairando ao mar, fugindo da terra sem no entanto a perdermos de vista e procurando tomar porto em qualquer sítio da ilha sem o conseguirmos, porque o não havia naquela parte e a força do vento contrário, que zunia e chorava no cordame, não consentia que o fôssemos procurar a outro lado. Andando assim com tanto trabalho e perigo, esperando a misericórdia divina que continuamente ínvocávamos com todas as veras das nossas almas, ao tempo que parecia querer a tempestade abonançar quebrou-se-nos o traquete da gávea.

Causou-nos o acidente grande temor, logo acrescentado por um estranho ruído, como de um sorver gigantesco acompanhado de angustiados suspiros, silvos e uma espécie de mugido, e tanto mais estranho quanto os balanços da nau haviam sossegado. Abri a portinhola e saí ao convés, acompanhado já timidamente por alguns companheiros. Seguimos o olhar dos marinheiros, que especados tinham um ar de espanto. O céu começava a limpar-se de nuvens que corriam ao longe, desfazendo-se, mas não muito afastado do barco passava-se um extraordinário fenómeno. De uma nuvem escura e carregada que pairava nos ares saía um como fino cano de vapor que rodopiava em si mesmo e, ondulando como uma cobra pelo espaço, vinha pousar nas ondas e delas, com aquele fragoroso ruído e resfolegar, chupava a água do mar. Parecia animado de uma misteriosa vida e consciência, e o pavor que infundia era tal que muita gente começou a gritar. Um dragão ! Um dragão!, exclamavam alguns tripulantes de nação grega, enquanto os nossos franciscanos, que eram moços muito novos e inexperientes, cheios de terror, de olhos esbugalhados, abraçados uns aos outros não sabiam coisa que dizer senão: O demónio! É o demónio!

(Sífonas!), murmurava calmo a meu lado um oficial de bordo, ao mesmo tempo que alguns peregrinos latinos (um monstro!, um monstro!), bradavam em alta gritaria. O que quer que fosse, um fenómeno físico, sem dúvida, continuava a beber a grandes tragos nas ondas do oceano, a engrossar olhos vistos e, de transparente que a principio era, a tornar-se negro e a tornar mais negra a nuvem que em cima engordava. Que quer dizer sífonas?, perguntei eu ao oficial, depois de procurar com os olhos a ver se via Pérides e não o encontrando.

Sífonas quer dizer sifão, cano que chupa água. É um fenómeno atmosférico muito frequente nestes mares e de que já os antigos gregos, Aristóteles nos seus Meteoros, Arato-falavam. Chamavam-lhe antigamente (síphon). A tromba marítima!. traduzi eu, recordando leituras de recentes relatos portugueses sobre as coisas do mar. É perigoso? Por vezes é, e a embarcação pode correr grave risco. Há casos em que se tenta cortar o cano a tiro de canhão, mas quase sempre sem efeito. No caso presente parece que não vai haver novidade». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

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quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Viagem a Portugal. José Saramago. «Agradece o viajante, o sacristão continua a escrever, ninguém lhes perguntou, mas ambos estão de acordo em que está um lindo dia, e a música toca»

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De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

A Cava do Lobo Manso

«Quando o viajante acordou, ainda mal aclarava, percebeu que não fora só o marulhar da corrente do rio que o embalara. Chovia, as goteiras despejavam cataratas sobre os ladrilhos da varanda. Acostumado já a viajar com todo o tempo, encolheu o viajante os ombros debaixo dos cobertores e tornou a adormecer, sem cuidados. Foi o bem que fez. Ao levantar-se, já manhã franca, o céu está descoberto, o Sol anda a fazer arco-íris pequeninos nas gotas penduradas das folhas. É uma festa. O viajante arrepia-se só de pensar no calor que já estaria se fosse Verão. A primeira ida é ao Museu Albano Sardoeira, onde há algumas peças arqueológicas de interesse, umas tábuas quinhentistas que merecem atenção, mas, acima disso e do resto, estão os Amadeus, soberbas telas do período de 1909 a 1918, com um saber de oficina que as mostra no esplendor da última pincelada, como se o pintor, acabada a obra, tivesse saído agora mesmo para a sua casa de Manhufe onde a vindima o estava esperando. Tem mais o museu uns Elóis, uns Dacostas, uns Cargaleiros, mas é o Amadeo de Souza-Cardoso que o viajante devagar contempla, aquela prodigiosa matéria, suculenta pintura que se desforra do exotismo orientalista e medievalizante dos desenhos que, em reprodução reduzida, o viajante veio a comprar, humildemente.

Está visto que a paciência é uma grande virtude. Diga-o S. Gonçalo que no século XIII construiu a ponte antes desta e teve de esperar cinco séculos para lhe arranjarem lugar para um túmulo em que não está, mas onde não faltam as oferendas. O viajante diz isto com ares de gracejo, maneira conhecida de compensar o susto que apanhou quando, ao entrar numa capela de tecto baixíssimo, deu com a grande estátua deitada, colorida como de pessoa viva. Estava o local meio às escuras e o susto foi de estalo. Estão polidos os pés do milagroso santo, de afagos que lhe fazem e de beijos que neles depõem as bocas que vêm implorar mercês. É de acreditar que os pedidos sejam satisfeitos, pois não faltam as oferendas, pernas, braços e cabeças de cera, equilibrados sobre o túmulo, é certo que ocos, os tempos vão maus para a cera maciça, e esta bem se vê que é adulterada.

Salva-se a fé que é muita neste S. Gonçalo de Amarante que tem reputação de casar as velhas com a mesma facilidade com que Santo António, por condão das raparigas, passou à história. O viajante percorre a igreja e o claustro do que foi o convento, e, em seu coração, põe-se a amar Amarante, sabendo já que é um amor para sempre. Nem o afligem os três maus reis portugueses que na varanda estão, e o outro, espanhol, pior que todos: o João III, o Sebastião I e o Henrique cardeal, (o velho caduco) mais o primeiro dos Filipes. Amarante é tão graciosa cidade que se lhe perdoa o perverso gosto histórico. Enfim, estão lá estes reis porque foi durante os reinados deles que a construção se fez. Razão suficiente.

Torna o viajante à igreja mete por uma passagem lateral que vai dar à sacristia. Donde vem esta música rock and roll, é que não adivinha. Talvez da praça, talvez um vizinho amador. Em cidades de província, o menor ruído chega a toda a parte. O viajante dá mais dois passos e espreita. Sentado a uma secretária, um homem, escriturário ou sacristão, isso não veio a saber-se, faz lançamentos num grande livro e tem ao lado um pequeno transístor que é o responsável pela música, ali, enchendo a sacristia venerável de sons maliciosos e convulsivos. Já nada surpreende o viajante, porém quer averiguar por completo até onde vai a subversão, e então pergunta: Dá licença que passe uma vista de olhos? O sacristão levanta a cabeça, olha afavelmente e responde: Ora essa. Veja à vontade. E enquanto o viajante dá a volta à sacristia, examina os tectos pintados, as imagens de boa nota artística, um S. Gonçalo patusco e bem-disposto, vai o transístor chegando ao fim do rock e começa outro, até parece invenção, mas não é, são verdades inteiras, nem aparadas, nem acrescentadas.

Agradece o viajante, o sacristão continua a escrever, ninguém lhes perguntou, mas ambos estão de acordo em que está um lindo dia, e a música toca. Talvez daqui a bocado dêem uma valsa. Pena leva o viajante de não ter puxado uma cadeira para junto da mesa a que o sacristão trabalhava nas sua eclesiais escriturações e ficar ali na boa conversa, a saber de vidas e de gostos musicais, perde-se muito não falando com as pessoas. Porém, já fora de Amarante, trata-se de descobrir S. João de Gatão, onde é, onde não é, não faltam as indicações, estes homens que fazem a vindima empoleirados em altas escadas: Chegando aí adiante, onde há umas árvores grandes, vire à esquerda, é logo lá. Virar, vira o viajante, ou julga tê-lo feito, porque adiante outros homens dirão: Chegando aí adiante, onde há umas árvores grandes, vire à direita, é logo lá. Enfim, chegou o viajante ao seu procurado destino». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,