sexta-feira, 31 de março de 2023

No 31. A Ilha Debaixo do Mar. Isabel Allende. «Os seus visitantes passavam uma ou duas semanas no rústico casarão de madeira, a empanzinar-se com a vida de campo e a apreciar de perto a mágica invenção do açúcar»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Os grands blancs, proprietários de outras plantações, consideravam-no um presumido que não duraria muito na ilha; por isso, ficaram assombrados por vê-lo com as botas enlameadas e queimado pelo sol. A antipatia era mútua. Para Valmorain, aqueles franceses transplantados para as Antilhas eram uns parolos, o oposto da sociedade que ele tinha frequentado, onde se exaltava as ideias, as ciências e as artes, e ninguém falava de dinheiro nem de escravos. Da idade da razão, em Paris, passou a afundar-se num mundo primitivo e violento, onde os vivos e os mortos andavam de mão dada. Também não fez amizade com os petits blancs, cujo único capital era a cor da pele, uns pobres diabos empeçonhados pela inveja e a maledicência, como ele dizia. Tinham vindo dos quatro pontos cardeais e não havia maneira de averiguar a pureza do seu sangue ou o seu passado. No melhor dos casos, eram comerciantes, artesãos, frades de pouca virtude, marinheiros, militares e funcionários menores, mas também havia meliantes, chulos, criminosos e corsários que utilizavam cada recanto do Caribe para as suas canalhices. Ele não tinha nada em comum com essa gente.

Entre os mulatos livres ou affranchis existiam mais de sessenta classificações segundo a percentagem de sangue branco, que determinava o seu nível social. Valmorain nunca conseguiu distinguir os tons nem aprender a denominação de cada combinação das duas raças. Os affranchis não dispunham de poder político, mas movimentavam muito dinheiro; por isso, os brancos pobres odiavam-nos. Alguns ganhavam a vida com tráficos ilícitos, desde o contrabando à prostituição, mas outros tinham sido educados em França e possuíam fortuna, terras e escravos.

Acima das subtilezas da cor, os mulatos estavam unidos pela sua aspiração comum de passar por brancos e o seu desprezo visceral pelos negros. Os escravos, cujo número era dez vezes maior do que o dos brancos e affranchis juntos, não contavam para nada, nem no censo da população, nem na consciência dos colonos. Uma vez que não lhe convinha isolar-se por completo, Toulouse Valmorain frequentava, de vez em quando, algumas famílias de grands blancs em Le Cap, a cidade mais próxima da sua plantação. Nessas viagens, comprava o necessário para se abastecer e, se não o podia evitar, passava pela Assembleia Colonial para cumprimentar os seus pares, assim não esqueceriam o seu apelido, mas não participava nas sessões. Também aproveitava para ver comédias no teatro, assistir a festas das cocotes, as exuberantes cortesãs francesas, espanholas e de raças misturadas que dominavam a vida nocturna, e conviver com exploradores e cientistas que se detinham na ilha, de passagem para outros sítios mais interessantes. Saint-Domingue não atraía visitantes, mas às vezes chegavam alguns para estudar a Natureza ou a economia das Antilhas, que Valmorain convidava para Saint-Lazare com a intenção de recuperar, ainda que brevemente, o prazer da conversação elevada que tinha ilustrado os seus tempos de Paris. Três anos depois da morte do pai, podia mostrar-lhes a propriedade com orgulho; transformara aquele destroço de negros doentes e canaviais secos numa das plantações mais prósperas entre as oitocentas da ilha, multiplicara por cinco o volume de açúcar por refinar para exportação e instalara uma destilaria onde produzia selectas barricas de um rum muito mais fino do que o que era costume beber-se. Os seus visitantes passavam uma ou duas semanas no rústico casarão de madeira, a empanzinar-se com a vida de campo e a apreciar de perto a mágica invenção do açúcar. Passeavam a cavalo por entre os densos pastos que assobiavam, ameaçadores, pela brisa, protegidos do sol por grandes chapéus de palha e a bocejar na humidade a ferver do Caribe, enquanto os escravos, como sombras afiadas, cortavam as plantas rente à terra sem matar a raiz, para que houvesse outras colheitas». In Isabel Allende, A Ilha Debaixo do Mar, 2009, Porto Editora, 2015, ISBN 978-972-001-948-6.

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, Isabel Allende, Literatura, Arte, 

segunda-feira, 27 de março de 2023

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «mentira e maldade non lhis dá logar; estas son nadas e criadas e aventuradas e queren reinar. As nossas fadas iradas»

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 Cantigas de Escárnio e Maldizer

«(…) Ao agruparmos cantigas de escárnio e maldizer, não procurámos saber, antes, como os outros tinham feito. Só depois. E assim, ora coincidimos pela força dos textos, ora nos metemos por caminhos diferentes, devido a critérios e gostos diversos. Abrimos pelas sátiras de alcance ecuménico e que podem cifrar-se nesta frase dos velhos de agora: Os tempos vão maus!

Sátiras dos Tempos Maus

Joan Soárez Coelho troça cruelmente de João Fernandes, com feições de mouro, por a mulher ser amiga dum escravo. Na cantiga seguinte, insiste neste caso, mas alarga a sátira à história daquele tempo: Anda perturbado o mundo, João Fernandes. O Imperador levantou-se contra Roma, vieram os Tártaros e, agora, vemos-te com intenção de abalar para a Terra Santa. Ora, nas profecias do fim do mundo, é este um dos quinze sinais: andar o mundo baralhado e o mouro fazer-se cruzado. João Fernandes, acreditai em mim, que sou bom letrado! É sinal de já ter nascido o Anticristo.

Martin Moxa, por seu lado, também fala, dos tempos do Anticristo. Há guerras, injustiças, ambições e falta o juízo, e a mesura. Hospital ou igreja, romeiro, fidalgo ou religioso, tudo é desrespeitado, por bom que seja. Forçam as mulheres, roubam nos caminhos, não temem alcaides nem meirinhos, antes acham sempre quem os proteja. Ninguém defende os agricultores, as vinhas e as herdades ficam por cultivar, não há com que pagar as rendas e perdem-se as honras. É um serventês moral bem digno do visionarismo de Martin Moxa, sério e pensativo, embora mordaz e sarcástico. Segundo Lang, compôs ele estas poesias em tempo del-rei Sancho II. Para ele, anda o mundo cada vez pior. Descem os bons e os maus levantam-se poderosamente acima deles. Por mim, diz o poeta, non ei da mia morte pavor. O mundo caminha às avessas e tudo nele anda trocado!

Por isso, não deve fugir da morte quem viu o bem que dantes era e vê o mal de hoje. Bem-aventurados os que morrerom mentr’ era melhor! Que eles dêem graças a Deus. Os que ficarem verão coisas ainda piores: e poren tenh’eu que faz sen-razon / quen deste mundo á mui gran sabor. A este queixume, segue-se outra sátira amarga, quase uma invectiva em forma de descordo: Fico-me a olhar e tudo me dá coita e pesar. Reina a mesquinheza acima da grandeza de alma. Reinam manhosamente neste mundo a maldade e a mentira:

mentira e maldade

non lhis dá logar;

estas son nadas

e criadas

e aventuradas

e queren reinar.

As nossas fadas

iradas

foron,...» 

In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT

JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Jean-Marie d’Heur, num estudo sobre a Arte de Trovar do Cancioneiro Colocci-Brancuti, distribui as poesias deste cancioneiro por grupos distintos…»


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A Sátira nas Cantigas de Santa Maria

«(…) Nalgumas ocasiões, a sátira partia do pecador. Do pecador ou do que passava por tal. Por exemplo, ria-se um de venerarem um sapato da Virgem Maria. Se o sapato fosse verdadeiro, já devia estar podre! Pois bem: o homem caiu no chão, com um ataque, e foi a çapata que o curou. Martim Alvites, morador em Alenquer, mais fazia cantigas de escárnio do que de amor. Também ele andou mal, mas teve de se arrepender, só trovando a Santa Maria, no resto da vida. Um jogral remedador imitava tudo à perfeição. Imitou Nossa Senhora, com o Menino ao colo, e o Menino pô-lo de pescoço torcido, para aprender. Nestes casos, o riso está mais nos ouvintes. É o riso e a sátira contra os incréus. Levam castigo? Bem feito!

Temos, ainda, o mundo ambíguo dos judeus e das judiarias. Vemos alguns deles a ferir um crucifixo. Escutamos algumas judias a troçar doutra, que invocava a Mãe de Deus nas dores do parto. Porém, o cómico mais burlesco vem dum bom homem a rezar a Santa Maria, no portal da igreja. Eis senão quando, vem um grande cão, chega-se a ele e atal o adobou / que ouv’a leixar sas prezes, com gáudio e troça de dois judeus. Claro, queixou-se o homenzinho à Mãe de Deus, por assim troçarem dele os judeus, e caiu-lhes o portal em cima. Mas, desta feita, nós rimos mas é da cena do cão, a alçar a perna e a fazer o
que não devera a tão fiel cristão.

Para acabar, vamos escutar uma série de imprecações ou pragas contra os inimigos da Virgem Maria. Estamos no reino bravio da invectiva, um ramo da sátira que não é para rir: Maldito seja quen non loará / a que en si todas bondades á. É este o refrém e o maldito alterna com a bênção para quem a louvar. Vamos resumir: Maldito seja quem não disser bem daquela a quem nada falta de bom e digno! Maldito seja quem não disser bem da melhor das donas e não quiser o seu amor. No manuscrito das Cantigas de Santa Maria, temos ainda as gravuras: a mulher pelos ares, agarrada à cadeira..., a seta espetada no tabuleiro e o espanto dos que ali estão..., o homem da boca torcida a beijar a çapata maravilhosa... Mas isto são águas doutra vertente. Se um dia pudermos, delas trataremos.

Cantigas de Escárnio e Maldizer

Jean-Marie d’Heur, num estudo sobre a Arte de Trovar do Cancioneiro Colocci-Brancuti, distribui as poesias deste cancioneiro por grupos distintos e de tamanho desigual: 725 cantigas de amor; 504 cantigas de amigo; 212 cantigas de escárnio; 183 cantigas de maldizer; 32 tenções; e 23 cantigas sob o título de Varia.

O Prof. M. Rodrigues Lapa alargou a sua análise a vários cancioneiros, limitando-se às cantigas de escárnio e maldizer, a fim de reunir a vasta colectânea das Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer dos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses, com nada menos de 431 poesias deste género, na segunda edição. Porém, ao contrário de Jean-Marie d’Heur, não isola as tenções, aqui, num todo à parte. Outro era o seu fim e sabia que algumas delas são temperamentalmente iguais a outras cantigas de escárnio e maldizer, só que vêm estruturadas em diálogo mais ou menos agressivo, à maneira de certas cantigas ao desafio dos nossos dias, nas feiras e arraiais do Norte. Carolina Michaëlis Vasconcelos, em quinze artigos modestamente intitulados Randglossen zum altportugiesischen Liederbuch, publicados entre 1896 e 1905, estudou muitas cantigas de escárnio e maldizer, por vezes obscenas e grosseiras. Nestas Notas à margem do antigo Cancioneiro Português interpreta, sobretudo, as cantigas satíricas, recorrendo às fontes históricas para esclarecer certos pontos dessas poesias e dos seus autores. E, ao publicar em Halle o Cancioneiro da Ajuda, aponta os nomes dos poetas satíricos mais antigos: Joan Soares Paiva, Fernan Rodrigues Calheiros, Fernan Paes Talamancos e Martin Soárez, sendo este o fidalgo-trovador mais velho de quantos conhecemos, diz ela. E ajunta, pouco depois: foi na côrte de Alfonso X que se geraram as principaes cantigas de escarnho e maldizer, algumas das quaes se guardavam de certo bem fechadas, e foram a custo arrancadas aos esconderijos.

Ao tratar da época medieval, em Lições de Literatura Portuguesa, Rodrigues Lapa dedica páginas sugestivas, não só em torno das cantigas de escárnio e maldizer, em geral, mas também em torno das suas relações com a Provença e alguns temas principais que as agrupam. Mais perto dos nossos dias, Manuel Aguiar oferece ao leitor uma galeria de caricaturas: O nobre ou ricome; Papa, bispos e clérigos; O trovador; A soldadeira; Os supersticiosos; Os maus juízes; Os perdidos de amor; O mentiroso; Os defeitos físicos; Os tipos miúdos.

Enfim, dentre os estrangeiros, isolamos Kenneth R. Scholberg e a sua distribuição das cantigas de escárnio e maldizer. Como agrupar toda a bicharia da Arca de Noé? Em muitos ou poucos grupos? Num livro breve, temos de optar por uma coisa e, quando muito, insinuar o que fica na sombra, e é mais do que pensamos. Manuel Aguiar, em nota final, aponta uma enorme litania de tipos caricaturais, que um dia poderão sair do limbo em que os deixou: o esfomeado, o miserável, o pedinchão, o parasita, o medroso, o traidor, o fanfarrão, o pretensioso, o clérigo comilão e metido em brigas, as freiras mundanas, o coxo, o careca, a mulher gorducha, a mulher feia, a coscuvilheira, o tímido diante da sua dama, o plagiador de versos, o mau trovador, o supersticioso, o agoirento, o astrólogo, o mau médico, o juíz peitável, o amoroso lamechas, o interesseiro em casar rico, o avarento, o caloteiro, etc. Tudo, porém, tem os seus limites, e é bom que os vindouros tenham que fazer» In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT

JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,

quinta-feira, 23 de março de 2023

Walter Isaacson. Steve Jobs. «Tive muita sorte, porque quando era criança tanto meu pai como os kits Heath me fizeram acreditar que eu poderia construir qualquer coisa»

Cortesia da wikipedia e jdact

«As pessoas que são loucas o suficiente para achar que podem mudar o mundo são aquelas que o mudam». In Pense diferente, Apple, 1997

Infância. Abandonado e escolhido. A adopção

«(…) Em um determinado Verão, Paul Jobs levou Steve a Wisconsin para visitar a fazenda leiteira da família. A vida rural não o atraía, mas uma imagem ele não esqueceu: viu nascer uma bezerra e ficou pasmo quando o minúsculo animal lutou para ficar de pé e depois de minutos começou a andar. Não era algo que ela tivesse aprendido, mas era inato. Um bebé humano não poderia fazer aquilo. Achei notável, embora ninguém mais achasse. E relacionou isso com hardwares e softwares. Era como se alguma coisa no corpo do animal e no seu cérebro tivesse sido projectada para trabalhar em conjunto instantaneamente, em vez de ser aprendida. No nono ano, Jobs foi para a Homestead High, que tinha um vasto campus de edifícios de concreto de dois andares, então pintados de rosa, que atendia 2 mil alunos. Havia sido projetado por um famoso arquitecto de prisões, lembrou Jobs. Queriam que fosse indestrutível. Jobs tinha desenvolvido uma paixão por caminhar e andava quinze quadras para ir à escola todos os dias.

Ele tinha poucos amigos de sua idade, mas conheceu um pessoal mais velho que estava mergulhado na contracultura do final da década de 1960. Era uma época em que os mundos dos geeks e dos hippies estavam começando a se sobrepor. Meus amigos eram os caras realmente inteligentes. Eu me interessava por matemática, ciências e eletrónica. Eles tinham os mesmos interesses, mas também curtiam lsd e toda a viagem da contracultura. Nesse período, suas brincadeiras já envolviam elementos eletrónicos. Certa ocasião, ele instalou alto-falantes pela casa. Mas, uma vez que alto-falantes também podem ser usados como microfones, ele construiu uma sala de controle dentro de seu armário, de onde podia ouvir o que estava acontecendo nos outros cómodos. Uma noite, quando estava com seus fones ouvindo o que acontecia no quarto dos pais, seu pai o surpreendeu e, irado, exigiu que ele desmontasse o sistema. Jobs passava muitas noites visitando a garagem de Larry Lang, o engenheiro que morava na mesma rua de sua antiga casa. Lang acabou por lhe dar o microfone de carbono que o fascinara, e ele o ligou em kits Heath, aqueles conjuntos monte você mesmo para fazer transmissores de radioamador e outros mecanismos eletrónicos que eram adorados pela turma da solda de então. Os kits Heath vinham com todas as placas e peças codificadas com cores diferentes, mas o manual também explicava a teoria de como o mecanismo funcionava, lembrou Jobs. Faziam você perceber que poderia construir e entender qualquer coisa. Depois de construir um par de rádios, você via uma televisão no catálogo e dizia: Eu também posso construir isso, mesmo que não o fizesse. Tive muita sorte, porque quando era criança tanto meu pai como os kits Heath me fizeram acreditar que eu poderia construir qualquer coisa.

Lang também o introduziu no Clube do Explorador da Hewlett-Packard, um grupo de quinze ou mais estudantes que se reunia semanalmente no refeitório da empresa nas noites de terça-feira. Eles traziam um engenheiro de um dos laboratórios para falar sobre o que ele estava fazendo. Meu pai me levava de carro. Eu estava nas nuvens. A hp foi pioneira de diodos emissores de luz. Então conversávamos sobre o que fazer com eles. Como na época seu pai trabalhava para uma empresa de laser, esse tópico lhe interessava particularmente. Uma noite, Jobs encurralou um dos engenheiros de laser da hp depois de uma palestra e conseguiu fazer uma visita ao laboratório de holografia. Mas a impressão mais duradoura veio da visão dos computadores pequenos que a empresa estava desenvolvendo». In Walter Isaacson, Steve Jobs (Edição 1), tradução de Berilo Vargas, Denise Bottmann, Pedro Soares, Editora Companhia das Letras, Wikipedia, iOS Books, LegiLibro, 2011, ISBN 978-853-591-971-4.

Cortesia ECdasLetras/JDACT

JDACT, Walter Isaacson, Steve Jobs, Cultura e Conhecimento, 

quinta-feira, 16 de março de 2023

O Homem de Constantinopla. José Rodrigues Santos. «Nas semanas seguintes, a loja de Vahan no bazar de Constantinopla registou uma inusitada procura da parte de diplomatas e comerciantes ocidentais radicados na cidade…»

 

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O Homem de Constantinopla

«(…) As paredes da mansão cobriam-se de magníficas tapeçarias provenientes de Bucara, os mais finos e requintados de todos os exemplares orientais, e as salas exibiam vistosos tapetes persas de Shiraz e Isfahan. Pormenor de grande importância, eram todos de lã; naquela casa não havia lugar para os de algodão ou de pele de carneiro ou de camelo, considerados de pior qualidade. A excepção dizia respeito a um belíssimo tapete caucasiano de pele de cordeiro, de toque suave e doce, em cima do qual o pequeno Kaloust gostava de estudar. O requinte na escolha dos tapetes para aquela casa não espantava ninguém; afinal Vahan tinha começado a sua vida profissional justamente com uma pequena loja de tapetes no bazar de Trebizonda. O negócio prosperara ao ponto de lhe ter aberto as portas ao casamento com a sua prima Veron, a filha predilecta do tio Grigoris. Acontece que Grigoris mantinha correspondência assídua com os grandes bancos estrangeiros de Constantinopla, como o Banco Otomano, criado pelos Britânicos, e o Banco Imperial Otomano, que estava na mão dos Franceses, contactos que Vahan aproveitou para expandir o seu negócio para a longínqua capital.

Tapetes eram coisa que não faltava em Constantinopla, claro, mas Vahan apercebera-se de que havia um interessante nicho de mercado por explorar. Para o seu negócio em Trebizonda havia estabelecido contacto com fornecedores do Turquistão. Os tapetes dessa região do Cáucaso, fabricados com pura lã, eram muito populares na capital e na Europa, mas apenas na sua variante mervi. Ora Vahan recebia carregamentos de modelos jumud e tekké, raramente exportados e quase desconhecidos. Os seus exemplares eram verdadeiras obras de arte, todos de grande originalidade e requinte. O comerciante não ignorava que, tratando-se de novidades, constituíam um trunfo importante para o negócio já florescente; precisava apenas de o saber jogar com sabedoria.

Foi o que fez. A conselho da mulher, que nisso dos negócios não brincava, reuniu coragem e as suas economias e investiu numa loja que abriu no bazar de Constantinopla. Logo que o estabelecimento começou a funcionar, contactou os directores ingleses e franceses dos bancos com os quais o tio, agora sogro, fazia negócios. Reservou a sala de um dos mais requintados restaurantes arménios do bairro de Pera e ofereceu-lhes um almoço digno de sultões. Antecipadamente informado dos seus interesses de coleccionadores, coroou o repasto com ofertas das melhores tapeçarias jumud e tekké que adquirira no Turquistão. Os estrangeiros ficaram encantados e não calaram o assombro diante dos seus clientes ou dos amigos que encontravam nos cocktails das legações e a quem exibiam as novidades oriundas do Turquistão.

Nas semanas seguintes, a loja de Vahan no bazar de Constantinopla registou uma inusitada procura da parte de diplomatas e comerciantes ocidentais radicados na cidade, todos eles alertados pelos seus amigos dos bancos e interessados em adquirir um exemplar de tão original mercadoria. Claro que o movimento acabou por despertar a atenção do resto da clientela e, em alguns meses, a loja enchia-se também de turcos, intrigados com os tapetes que tanta curiosidade estavam a suscitar junto dos giavour, os infiéis.

Quando o seu Kaloust nasceu, em 1869, o tio-sogro abraçou Vahan e celebrou a ocasião com uma garrafa do valente conhaque arménio. Parabéns!, exultou Grigoris com a boca a tresandar a álcool. Fizeste fortuna e tornaste-te um dos homens mais ricos de Trebizonda! Este teu filho e meu neto trará grande glória à nossa família». In José Rodrigues Santos, O Homem de Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN 978-989-616-549-9.

Cortesia de EGradiva/JDACT

JDACT, José Rodrigues dos Santos, Literatura, A Arte,

O Homem de Constantinopla. José Rodrigues Santos. «O criado sentou-se sobre ele e pregou-lhe uma estalada de tal modo violenta que o director embateu com a nuca no chão. Chega! À ordem do patrão…»

 

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O Homem de Constantinopla

«(…) Abriu-a com brusquidão e invadiu o gabinete sem cerimónias, como se fosse ele o verdadeiro dono da instituição. Senhor Sarkisian!, exclamou o director com espanto, levantando os olhos dos papéis que rabiscava. Seja ... seja bem-vindo! O director era um homem magro e nervoso, com malares muito salientes e uma expressão mortiça no olhar gasto, que os óculos na ponta do nariz se esforçavam por reavivar. Estava sentado à secretária a tratar da correspondência para o patriarcado em Constantinopla. Surpreendido com a intromissão inesperada, suspendeu a caneta no ar. O senhor já viu a nota?, rugiu o intruso. Já viu a classificação do meu Kaloust? O director ergueu-se da cadeira, a atenção dividida entre o seu ilustre visitante e a criança que ele puxava pela orelha. O petiz parecia estar a ser punido, o que o deixou confuso. Mas ... mas ele teve uma nota excelente, senhor Sarkisian! Excelente! A sombra perturbada de uma dúvida súbita perpassou-lhe pelo olhar. Foi dezoito, não foi? Ele não teve dezoito? Teve, sim. O rosto do homem iluminou-se com um lampejo de alívio. Ah, bem me parecia!, bufou. Pois, foi óptimo! O olhar furibundo do seu interlocutor voltou a desconcertá-lo; manifestamente alguma coisa estava a escapar-lhe. Há ... há algum problema? O problema é o Shakhian ... ou melhor, o filho do Shakhian, rosnou Vahan. Esse miúdo teve dezanove! O meu teve dezoito! Isso significa que ele fez melhor do que o meu! Os lábios do director curvaram-se num sorriso conciliador. Oh, senhor Sarkisian!, exclamou enquanto abria as mãos num gesto para apaziguar o seu interlocutor. Por amor de Deus! Dezoito, dezanove ... o que interessa isso? São excelentes notas! Excelentes! O seu filho está de parabéns! Ele é um dos dois melhores alunos da escola! O senhor… o senhor devia estar orgulhoso dele! É o melhor a Francês, é o melhor a Aritmética! Esboçou uma ligeira careta. Está um pouco atrasado no Arménio por causa da gramática, é verdade, mas isso ... enfim, não me parece grave. Vahan Sarkisian olhou para o criado atrás dele e fez um gesto na direcção do director. Dá-lhe! O kahveci nem hesitou. Saltou da sombra do seu patrão e atirou-se ao director com o vigor de um cavalo de corrida, esmurrando-o na barriga e atirando-o ao chão. Senhor Sarkisian!, implorou o director com um gemido enquanto se encolhia aos pés da cadeira, no gesto reflexo de quem se protege. Por favor, senhor Sarkisian!

O criado sentou-se sobre ele e pregou-lhe uma estalada de tal modo violenta que o director embateu com a nuca no chão. Chega! À ordem do patrão, o kahveci levantou-se e recuou para a porta, deixando o director da escola estendido sobre a pedra fria, o cabelo desgrenhado e o rosto vermelho como uma malagueta do bazar, os óculos atirados para um canto do gabinete, a gola desfeita. Senhor Sarkisian, disse o homem, visivelmente atarantado, apalpando o chão em redor num esforço vão para localizar os óculos perdidos. O que foi que fiz? Vahan Sarkisian deu dois passos em frente e imobilizou-se diante do director, que não se atrevia a levantar-se sem receber a devida autorização. Fica o senhor avisado de que, no final do ano lectivo, o melhor aluno desta escola será o meu filho!, vociferou em tom ameaçador. E não quero classificações de favor, ouviu? Ele terá as melhores notas porque será mesmo o melhor. O melhor! Se o senhor achar que ele precisa de melhorar, fará o que considerar necessário para alcançar esse objectivo. Fiz-me entender?

O director balançou afirmativamente a cabeça sem se atrever sequer a erguer os olhos. Sim, senhor. Vahan manteve-se pregado ao chão. No final do ano quero que me entregue os testes do meu filho e do miúdo do Shakhian, disse. Irei verificar pessoalmente que as respostas do meu são as melhores. Ergueu o dedo, em gesto de aviso. Não se atreva a fazer batota! A advertência concluída, deu meia volta, voltou a pegar na orelha do filho e, puxando-a, abalou enfim do gabinete. A fama de Vahan Sarkisian era grande no millet arménio de Trebizonda, onde a etnia cristã se afirmava como dominante, e a sua casa gozava da merecida reputação de ser a residência mais rica e bem decorada de toda a cidade». In José Rodrigues Santos, O Homem de Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN 978-989-616-549-9.

Cortesia de EGradiva/JDACT

 JDACT, José Rodrigues dos Santos, Literatura, A Arte, 

Contos Escolhidos. Guy Maupassant. «A Rosa meteu-se no assunto e, debruçando-se por sobre as pernas do seu vizinho, beijou os três animais no nariz. E logo todas as mulheres os quiseram beijar também…»

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A casa Tellier

«(…) A Rafaela, com um penteado emplumado a fingir um ninho cheio de passarinhos, usava um vestido lilás, semeado de lantejoulas de ouro, uma coisa como que oriental que calhava bem com a sua cara de judia. A Rosa Pileca, de saia cor-de-rosa com amplos folhos, tinha o aspecto de uma menininha excessivamente gorda, de uma anã obesa; e as duas Chancas pareciam ter escolhido de propósito uns adornos estranhos por entre velhas cortinas de janela, as velhas cortinas com ramagens do tempo da Restauração. Mal deixaram de estar sozinhas no compartimento, as senhoras assumiram um comportamento sério, e puseram-se a falar de coisas elevadas para criarem boa opinião a seu respeito. Mas em Bolbec apareceu um sujeito de suíças loiras, com anéis e uma corrente de ouro, que arrumou na rede por cima da sua cabeça vários pacotes embrulhados em oleado. Tinha um ar trocista e de boa pessoa. Cumprimentou, sorriu e perguntou com todo o à-vontade: Estas senhoras vão mudar de quartel? A pergunta lançou no grupo uma confusão embaraçada. Por fim a Madame recuperou a presença de espírito e respondeu secamente, para vingar a honra do pelotão: O senhor podia ser mais bem educado! Ele desculpou-se: Perdão, eu queria dizer de convento. A Madame, como não encontrou nada para responder, ou talvez por achar a rectificação suficiente, fez um cumprimento digno franzindo os lábios.

Então o senhor, que estava sentado entre a Rosa Pileca e o velho camponês, pôs-se a piscar o olho aos três patos cujas cabeças espreitavam do grande cesto; e depois, quando sentiu que o seu público já estava cativado, começou a fazer festas aos animais debaixo do bico, dirigindo-lhes frases engraçadas para alegrar a companhia: Com que então deixámos o nosso charco!, quáquá!, quáquá!, quáquá!, para conhecermos o belo espeto, não é?, quáquá!, quáquá!, quáquá! Os infelizes animais reviravam o pescoço para evitar os seus afagos, faziam terríveis esforços para saírem da sua prisão de vime; e depois, de repente, os três em conjunto, soltaram um lamentoso grito de aflição: Quáquá! quáquá! quáquá! Houve então uma explosão de gargalhadas entre as mulheres. Elas debruçavam-se, empurravam-se umas às outras para espreitar; estavam loucamente interessadas nos patos; e o senhor redobrava de graciosidade, de espírito e de carícias.

A Rosa meteu-se no assunto e, debruçando-se por sobre as pernas do seu vizinho, beijou os três animais no nariz. E logo todas as mulheres os quiseram beijar também; e o senhor sentava as senhoras nos seus joelhos, fazia-as dar saltos, beliscava-as; não tardou e estava a tratá-las por tu». In Guy Maupassant, Contos Escolhidos, 1885, Edições don Quixote, Grupo Leya, 2011, ISBN 978-972-204-682-4.

Cortesia de EdonQuixote/JDACT

JDACT, Guy Maupassant, Contos, Século XIX, Escrita,  

quarta-feira, 15 de março de 2023

Contos Escolhidos. Guy Maupassant. «Com efeito, a carruagem era um deslumbramento de cores brilhantes. A Madame, toda de azul, de seda azul dos pés à cabeça, trazia por cima um xaile de falsa casimira francesa, vermelho…»

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A casa Tellier

«(…) Acontecia que a Madame tinha um irmão estabelecido como marceneiro na sua terra natal, Virville, no Eure. No tempo em que a Madame era ainda estalajadeira em Yvetot fora ela que levara à pia baptismal a filha daquele irmão, a que deu o nome de Constance, Constance Rivet, pois ela própria era Rivet pelo lado do pai. O marceneiro, que sabia que a irmã estava numa boa situação, não a perdia de vista, embora não se encontrassem muitas vezes, ambos retidos que estavam pelas respectivas ocupações e, além disso, por viverem longe um do outro. Mas, como a menina ia completar doze anos e nesse ano fazia a sua primeira comunhão, ele aproveitou a oportunidade para promover uma aproximação, e escreveu à irmã que contava com ela para a cerimónia. Os velhos pais tinham morrido e ela não podia recusar aquilo à afilhada: aceitou. O irmão, que se chamava Joseph, esperava que, valendo-se destas atenções, talvez conseguisse um testamento a favor da pequena, já que a Madame não tinha filhos.

A profissão da irmã não bulia de modo algum com os seus escrúpulos e, aliás, ninguém lá da terra sabia de nada. Ao falar dela dizia-se apenas: A senhora Tellier é uma burguesa de Fécamp, o que dava a entender que estava em condições de viver dos rendimentos. De Fécamp até Virville distavam pelo menos vinte léguas; e vinte léguas de terra são, para camponeses, mais difíceis de percorrer que o Oceano para um civilizado. O povo de Virville nunca tinha ido além de Ruão; e nada atraía as gentes de Fécamp a uma aldeola de quinhentos fogos, perdida no meio das planícies e que pertencia a outro departamento. Enfim, não se sabia de nada.

Mas, ao aproximar-se a época da comunhão, a Madame sentiu um grande embaraço. Não tinha nenhuma patroa substituta e não lhe agradava nada deixar a casa, mesmo por um dia. Todas as rivalidades entre as damas lá de cima e as lá de baixo iriam infalivelmente estalar; além disso, o Frédéric havia de embebedar-se de certeza, e quando estava bêbado importunava as pessoas por tudo e por nada. Acabou por se decidir a levar consigo toda a sua gente, excepto o criado, a quem deu férias até dali a dois dias.

Consultado o irmão, este não levantou qualquer objecção, e encarregou-se de arranjar alojamento para todo o grupo por uma noite. E assim, no sábado de manhã, o comboio expresso das oito transportava a Madame e as suas companheiras numa carruagem de segunda classe.

Até Beuzeville foram sozinhas e palraram como pegas. Mas nessa estação entrou um casal. O homem, um velho camponês que envergava uma bata azul com gola plissada, mangas largas apertadas nos pulsos e adornadas de um bordadinho branco, de cabeça coberta por um antiquado chapéu alto cujo pêlo ruço parecia eriçado, trazia numa das mãos um imenso chapéu-de-chuva verde, e na outra um grande cesto donde espreitavam as cabeças assustadas de três patos. A mulher, hirta na sua roupagem rústica, tinha cara de galinha, com um nariz afilado como um bico. Sentou-se de frente para o seu homem e deixou-se ficar sem se mexer, impressionada por se encontrar rodeada de uma tão bela companhia.

Com efeito, a carruagem era um deslumbramento de cores brilhantes. A Madame, toda de azul, de seda azul dos pés à cabeça, trazia por cima um xaile de falsa casimira francesa, vermelho, ofuscante, fulgurante. A Fernanda ofegava num vestido escocês cujo corpete, atado com todas as forças das companheiras, lhe soerguia o peito em riscos de se desmoronar numa dupla cúpula sempre agitada que parecia líquida debaixo do tecido». In Guy Maupassant, Contos Escolhidos, 1885, Edições don Quixote, Grupo Leya, 2011, ISBN 978-972-204-682-4.

Cortesia de EdonQuixote/JDACT

JDACT, Guy Maupassant, Contos, Século XIX, Escrita,

A Herança de Rosa-Cruz. Jorge Durão. «Foi para nós um prazer tê-lo cá, e volte sempre. Muito obrigado por tudo, foram muito amáveis. Boa tarde, então, o sorriso da mulher acabou com a sucessão de despedida…»

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Karlruhe. Alemanha, Dezembro de 1649

«(…) O Historiador tinha sobre a mesa de leitura uma pilha de seis livros, tendo começado por folhear a obra que a funcionária lhe havia entregue em mãos: O Tesouro Perdido de Óbidos, de Pedro José Gonzaga Morgado. Tratava-se do mesmo autor de Lendas e factos de Óbidos, livro de 1797. Contudo, aquele livro do Arquivo Distrital do Porto era ainda mais antigo, uma publicação de 1760. Uma folha anexa ao exemplar, colocada entre a capa e a guia, informava que o autor era nativo da vila de Óbidos, tendo feito carreira em Lisboa como especialista em Literatura Medieval. O pequeno folheto informava também que ao autor eram atribuídas duas publicações: O Tesouro Perdido de Óbidos, Lisboa, 1760; e Lendas e factos de Óbidos, Lisboa, 1797. Uma nota no final do folheto informava também que era o exemplar do Arquivo Distrital do Porto o único reconhecido e existente no país, não havendo rasto de mais exemplares e da segunda publicação do autor. Carlos Nóbrega sentiu os pêlos eriçarem-se. Palácio Nacional de Mafra! Era lá que parava um exemplar da segunda publicação! E estive tão perto de o ter! Tenho que encontrar aquele homem... Se ainda for vivo, claro!. O Historiador não pôde deixar de se surpreender com a leviandade com que este país trata a cultura e quem a faz. Como é que um livro daqueles pode ter sido negligenciado de tal forma?! Como pôde ficar à mercê de qualquer um na embrulhada das obras do palácio?!. Segundo a pequena sinopse de cada obra, o que estava presente no folheto, o primeiro livro do autor consistia no tratamento de uma lenda da vila de forma ficcionada, a lenda dos três alemães, tendo por base a disseminação de toda a produção oral da época; enquanto a segunda obra, certamente escrita com outra maturidade, note-se que se o primeiro livro tivesse sido escrito no auge dos seus trinta anos, o segundo teria sido escrito por volta dos seus setenta, era o resultado de uma exaustiva recolha de dados e informações de múltiplas fontes. Portanto, Lendas e factos de Óbidos era uma crónica da urbe entre os anos 1500 e 1700, entre os quais está a passagem pela vila dos três guardiões do manifesto Rosacruciano, entre outros tesouros.

O Historiador olha para o relógio. Eram na altura 11h20. Tinha uma hora e quarenta minutos para passar em revista aqueles exemplares. Começou então pelo volume que já estava aberto sobre a mesa, olhando de forma geral para a sala e percebendo que mais ninguém havia chegado. A funcionária estava ocupada com o computador, fixando o olhar para baixo. Conforme os olhos do Historiador iam percorrendo as linhas e as páginas, as suas expressões faciais alternavam entre a compreensão e a dúvida, apontado umas sucintas notas no seu pequeno bloco de apontamentos. Passados uns vinte minutos abandona aquele exemplar, começando a passar, na diagonal, os olhos pelos outros volumes que havia retirado do armário. Quando Carlos Nóbrega estava completamente envolto na leitura de uma parte final do penúltimo livro, um toque no ombro fá-lo dar um salto na cadeira.

Peço imensa desculpa, Dr. Nóbrega. Vamos fechar as portas dentro de dez minutos..., informa a funcionária, com uma certa pena por ter que interromper a leitura do Historiador. Se pretender, ainda pode digitalizar o que quiser num máximo de dez páginas... Eu é que peço desculpa. Não vai ser necessário digitalizar nada, obrigado. Eu ajudo-a a arrumar as obras, disse-lhe ele, solícito. Não é necessário, obrigada, refere a funcionária. Não, não! Faço questão! A leitura, a boa leitura, diga-se, é algo que sempre me fez perder a noção do tempo! O espaço deste livro continua no armário à sua espera, arrumo-lhe este e trago-lhe já a chave... Então obrigada, Sr. Doutor, autorizou a mulher que ele levasse a obra de volta à sua estante e ao seu lugar, enquanto ela pegara nos outros seis volumes e os levara de novo para o armário 11. É preciso mais alguma coisa?, pergunta o homem.

Mais nada, Dr. Nóbrega. Foi para nós um prazer tê-lo cá, e volte sempre. Muito obrigado por tudo, foram muito amáveis. Boa tarde, então, o sorriso da mulher acabou com a sucessão de despedida e contra despedida. Enquanto o historiador se despedia do jovem homem da recepção, a funcionária dirige-se ao espaço anexo, olha para o interior do armário e vislumbra no mesmo sítio a mesma castanha lombada. Olha para a chave que o Historiador lhe entregara e coloca-a no bolso, dirigindo-se para a primeira recepção do edifício, onde o homem ainda falava com o recepcionista. Já agora, o nome Bernardo Faria diz-lhes alguma coisa? Os dois funcionários olham um para o outro, numa expressão que respondia por si que nunca tinham ouvido tal nome. Poesia? Prosa? Arte?..., questiona a mulher. História... História. Não... Nunca ouvimos falar, diz a funcionária pelos dois. Mais uma vez muito obrigado. Obrigado nós, Dr. Nóbrega. Não, não. Obrigado eu. Disso podem ter toda a certeza...» In Jorge Durão, A Herança de Rosa-Cruz, O Tesouro Perdido de Óbidos, Edição do Autor, 2013, ISBN 978-989-866-401-3.

 Cortesia de JDurão/JDACT

JDACT, Jorge Durão, Óbidos, Literatura,

A Herança de Rosa-Cruz. Jorge Durão. «Carlos Nóbrega, antes de ir procurar no armário 11 os exemplares que lhe pudessem interessar, leva aquele livro para uma mesa onde a luz natural incidia com força, uma mesa longe do balcão…»

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Karlruhe. Alemanha, Dezembro de 1649

«(…) O agastado homem começa a penetrar na grande sala de leitura, que estava praticamente deserta, o que o homem vira com bons olhos, pois, teria o sossego necessário para as pesquisas que pretendia levar a cabo.  Muito bom dia. Posso ajudá-lo?, pergunta com simpatia a mulher de meia-idade que se encontrava no controlo daquela sala. Bom dia. Carlos Nóbrega, Historiador e bibliotecário da Biblioteca Nacional, cumprimenta o homem, puxando dos galões não por vaidade, mas na certeza que tal lhe abriria o acesso às relíquias mais bem guardadas daquela sala. Joana Castro. Muito prazer, responde a mulher. Em que posso ajudá-lo, Dr. Nóbrega? Olhe, procuro documentos, crónicas, livros que falem sobre Óbidos na perspectiva histórica. Depois, além disso, gostaria de ver alguns documentos que falem sobre a sociedade Rosa Cruz, ou o Rosacrucianismo.

Muito bem. Esteja à vontade para procurar, a mulher retira duas chaves de dentro do balcão e pede a Carlos Nóbrega que a siga. Detêm-se num armário situado diametralmente oposto à entrada da sala e ao balcão onde a mulher assentava arraiais. A sala era rectangular e com as paredes forradas a altos armários, estando, de onde em onde, um escadote estacionado. O tecto era arcado, como o tecto das igrejas, e o branco e o azul das paredes conferiam àquele ambiente uma tranquilidade compatível com a leitura e estudo. A mulher abre um grande armário com o número 11 gravado numa pequena chapa. Doutor, toda esta secção é sobre a história de Óbidos, demonstra a mulher com o movimento da mão direita. Esteja à vontade para retirar os volumes que pretender. Depois basta colocá-los em cima da mesa mais próxima do armário para que os possa voltar a arrumar segundo as suas cotas... Muito obrigado, refere o homem. Ah, trago comigo um livro da Biblioteca Nacional, a viagem de comboio propicia a leitura, informa o Historiador, mostrando parte da castanha encadernação mas sem mostrar o título ou outros pormenores.

Sim senhor, esteja à vontade, que não será acusado de roubo, riem os dois. Relativamente à sociedade Rosa Cruz, informa a mulher, começando a caminhar na sala, dirigindo-se para um espaço anexo, temos aqui uma secção onde existe um volume que, sem falar na sociedade em si, fala da sua presença no nosso país. A funcionária abre a porta do velho armário e procura o exemplar. Detém-se num livro castanho, de capa dura e grossa lombada, que retira e entrega ao Historiador. E é tudo o que temos, Dr. Nóbrega, informa a mulher. Muito obrigado. Serve perfeitamente. Não sei se o meu colega já o informou sobre as digitalizações... Sim, sim. Dez, para e-mail ou fotocópias, antecipou-se ele. Exactamente. Vou deixá-lo então à vontade, Doutor. Qualquer coisa, não hesite em me chamar.  Obrigado. Até já, então.

Carlos Nóbrega, antes de ir procurar no armário 11 os exemplares que lhe pudessem interessar, leva aquele livro para uma mesa onde a luz natural incidia com força, uma mesa longe do balcão e daquela mulher, ficando deveras surpreendido com a data de publicação e o nome do autor que vislumbrara ao fundo da grossa lombada. Bem, isto está a correr melhor do que poderia pensar!». In Jorge Durão, A Herança de Rosa-Cruz, O Tesouro Perdido de Óbidos, Edição do Autor, 2013, ISBN 978-989-866-401-3.

Cortesia de JDurão/JDACT

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terça-feira, 14 de março de 2023

A Herança de Rosa-Cruz. Jorge Durão. «Carlos Nóbrega já não andava de comboio há alguns anos. Encontrava-se no momento no interior do confortável Alfa Pendular…»

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Karlruhe. Alemanha, Dezembro de 1649

«(…) Nessa sexta-feira da chegada dos livros, depois da entrega à secretária de todos os documentos necessários e decorrentes da função de bibliotecário, o Historiador despede-se da mulher e começa a descer de forma ligeira a escadaria do edifício com o volume que havia começado a ler no saco. Dirige-se a um supermercado, a fim de comprar umas coisas em falta em casa, e ruma à Rua Ferreira Borges, onde no n.º 38, no 1.º andar, se abria uma porta a várias felizes recordações, configuradas em dezenas de fotografias do casal, tiradas em felizes momentos pelos país e estrangeiro, e à infelicidade da realidade. O sexagenário aquece um prato pré-confeccionado no micro-ondas, come de forma ligeira na cozinha, coloca a louça suja no lava-louça, arruma as compras nos devidos armários e no frigorífico, pega no seu saco e dirige-se para o seu santuário, um escritório com papéis empilhados quase até ao tecto, com sobreposições de livros que faziam lembrar os edifícios das cidades americanas, e com mais fotografias espalhadas por tudo o que era canto, para as quais o velho estudioso olhava mais vezes do que devia.

Carlos Nóbrega já não andava de comboio há alguns anos. Encontrava-se no momento no interior do confortável Alfa Pendular, olhando as árvores, as casas e os postes a passarem a alta velocidade do lado de fora da janela. Iria passar o dia na cidade do Porto, tendo em mente a remota possibilidade de encontrar, encontrando-o em pessoa ou perguntando por ele a alguém, o mercador Bernardo Faria. Dormira durante grande parte do trajecto e acordara já nas imediações da cidade. O historiador abandona o comboio e camufla um espreguiçar na plataforma da estação. Pensara em fazer a viagem ainda estava a ler madrugada dentro, materializando que se queria acordar para apanhar cedo o comboio tinha que se ir deitar. Assim fora. Estava no momento na histórica cidade do Porto e estava por isso ansioso. Queria visitar algumas igrejas e locais de interesse histórico, falar com algumas pessoas... Procurar Bernardo Faria. O Historiador começa a caminhar, levando dentro do seu saco o pesado livro que estava a ler. Eram por volta das 10h30. Aos sábados o Arquivo Distrital do Porto fechava às 13h00, e Carlos Nóbrega ainda por lá queria ver umas coisas. À saída da estação de S. Bento, apanha um táxi e demanda a corrida para o Arquivo Distrital, na Rua das Taipas. Entra no edifício e dirige-se à recepção, onde um jovem homem o atende. Bom dia, cumprimenta o Historiador. Bom dia, responde o jovem. Em que posso ajudá-lo?, pergunta de solícita forma.

Chamo-me Carlos Nóbrega, Historiador e bibliotecário da Biblioteca Nacional. Acabo de chegar de Lisboa. Será possível consultar alguns livros ou documentos que falem da vila de Óbidos? Com certeza, Dr. Nóbrega. Tenho só que registar aqui os seus dados... Portanto, Carlos Nóbrega... ia o homem escrevendo numa folha de cálculo no computador, à medida que falava. Morada, Doutor? Rua Ferreira Borges, n.º 38, 1.º frente... É suficiente, o programa já tem aqui o código postal... Aqui é tudo, Doutor. Agora dirige-se lá dentro à minha colega, a qual o ajudará a encontrar o que pretende. Ah, tem direito a dez digitalizações, as quais pode enviar para um e-mail ou levar como fotocópias, informou o jovem recepcionista. Muito obrigado. Até já, então. Ah, trago comigo um livro, diz o homem, à medida que vai mostrando a castanha encadernação. Este é mesmo da Biblioteca Nacional, não fossem depois à saída pensar que havia levado daqui algum exemplar, o jovem homem esboçou um sorriso». In Jorge Durão, A Herança de Rosa-Cruz, O Tesouro Perdido de Óbidos, Edição do Autor, 2013, ISBN 978-989-866-401-3.

Cortesia de JDurão/JDACT

JDACT, Jorge Durão, Óbidos, Literatura,

sexta-feira, 10 de março de 2023

A Sala das Perguntas Fernando Campos. «Viviam agora numa herdade junto ao Zêzere, na confluência com o Tejo, em Punhete, (Constância). Tendo encontrado a mãe de cama, o olhar a arder em febre…»

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«(…) Até ao sétimo dia da doença permaneciam junto do seu leito a rainha Leonor, a infante Isabel e o príncipe João. Desesperaram os físicos da vida de el-rei e então o guarda-mor Nuno Manuel fez recolher a rainha e a infante para uma câmara próxima e pediu ao príncipe que se retirasse para um aposento que vai sobre o armazém. Tu, disse ao jovem Damião, com silencioso espanto de todos os clérigos e senhores que aguardavam na antecâmara, ficarás à cabeceira de el-rei e terás o cuidado de o chamar aos acidentes que lhe dão por intervalos. Assim o fez o jovem por três vezes, a que de todas el-rei acudiu, e querendo-o chamar a quarta, que era já no noveno dia. foi-lhe defeso pelos senhores que estavam na câmara. Quatro horas depois do meio-dia surgiram os verdadeiros sinais da morte, tão perfeita a memória que em alta e clara voz dizia os versículos dos salmos com os religiosos que ao redor da cama rezavam. Desgarrou-se-lhe a alma da carne às nove horas da noite, aos treze dias de Dezembro do ano de mil e quinhentos e vinte e um, dia da bem-aventurada Santa Luzia, em idade de cinquenta e dois anos, seis meses e treze dias, dos quais reinou os vinte e seis, um mês e dezanove dias.

Seis dias depois do passamento o príncipe João era alçado rei, segundo as costumadas praxes. No ano seguinte o jovem Damião é mandado pelo novo rei para a Flandres. Parte do Tejo na armada de Pedro Afonso de Aguiar.

Muitos dias enrolou o tempo em seu fuso. Maria do Céu morreu e Ana Macedo começou a sentir-se cansada, a doença a bater-lhe à porta, sem forças para aguentar o peso daquele segredo. Conheceu que também ela iria em breve prestar contas ao Criador. O marido ausente na corte, chegava-lhe de Coimbra o filho Luís Vaz, levado a cabo junto do tio frei Bento, chanceler da Universidade, o seu curso de escolar. Viviam agora numa herdade junto ao Zêzere, na confluência com o Tejo, em Punhete, (Constância). Tendo encontrado a mãe de cama, o olhar a arder em febre, olheiras roxas, a voz sumida, o rapaz alarmou-se: Vou chamar o físico. Não. Espera. Não saias agora de ao pé de mim. Luís sentou-se na beira da cama com a mão de Ana entre as suas: Como escaldas, minha mãe! Sorriu-lhe a mãe: Assim estou bem. Vai fechar aquela porta, que tenho de falar-te. Luís levantou-se e fechou a porta.

Cola o teu ouvido à minha boca. O que te vou dizer nem o ar o pode ouvir… e Ana Macedo confiou o segredo ao filho, fazendo-o jurar que o não comunicaria a ninguém. e não tardou a desfalecer.

Correu o filho a buscar os socorros do médico e, de caminho, os do  padre. E tanto as mezinhas como o sagrado viático tiveram a virtude de curar a senhora, que havia de percorrer ainda muita vicissiyude da vida». In Fernando Campos, A Sala das Perguntas, Difel 82, 1998, ISBN 972-290-437-X.

Cortesia de Difel/JDACT

 JDACT, Fernando Campos, Literatura, História, O Saber, Cultura,

quinta-feira, 9 de março de 2023

O Lago Azul. Fernando Campos. «… serem modificados os editos contra os heréticos e seja abolida a inquisição e os castigos que, por motivos religiosos, ela nos inflige, diz e entrega a petição à duquesa»

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«(…) Ce ne sont que des gueux. Os conselheiros sorriem. O dito não tardará a correr nas minhas asas. Ao fundo do salão do trono, o mordomo anuncia: O conde de Brederode e sua delegação. Avança o conde e, diante da regente, faz vénia de joelho em terra, tal como os dois fidalgos que o acompanham. Madame, não está em causa a nossa lealdade e obediência a Sua Majestade o rei Felipe e a Vossa Alteza, que antes de mais asseguramos. Que vos traz pois, conde de Brederode? Solicitar-vos convoqueis os Estados Gerais a fim de serem modificados os editos contra os heréticos e seja abolida a inquisição e os castigos que, por motivos religiosos, ela nos inflige, diz e entrega a petição à duquesa.

Deixai ficar o documento, conde. Registamos com agrado a expressão da vossa lealdade a el-rei. Em tempo oportuno ser-vos-á dada resposta. A delegação retira-se e, cá fora, na grande praça, junta-se aos outros cavaleiros. Alguém aproxima o cavalo do de Brederode e segreda-lhe ao ouvido. Gueux? Ele disse isso? Nous ne sommes que des gueux? ,exclama o conde e, dando de esporas, inicia a cavalgada de regresso, o semblante carregado, já o apodo passava de boca a orelha uns aos outros.

Em Kulemburg, rue des Petits-Carmes, no Sablon, em casa de Brederode, comer e beber. Ouro nem prata fulgem sobre a mesa, senão escudelas de mendigo. Havia chegado a resposta da regente. Trouxera-a um dos conselheiros de estado, o conde Lamoral de Egmont: Então, conde?, pergunta Brederode. Margarita de Parma promete enviar a Felipe a petição e entrementes moderar os decretos contra os hereges. Pretende ganhar tempo, amigos, diz Henrique de Brederode, levantando-se. Pegai em vossa taça, senhor conde de Egmont. Brindareis connosco? Vira-se para os convivas, ergue a escudela e exclama: Vivam os maltrapilhos!

Vivam!, secundam todos mais o conde de Egmont e o conde de Hornes que também aqui se encontra. Cor de cinza será o saco dos nossos trajos, insígnias o alforge e a escudela». In Fernando Campos, O Lago Azul, Difel, 2007, ISBN 978-972-290-874-0.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, 18º Rei de Portugal, dom António Prior do Crato, Genebra, Conhecimento, Literatura, História,

Manifesto Universal. Ricardo Salgueiro Roque. «Optar por um mal e pelo mal é uma escolha que, quando consciente, se faz com mediocridade, seja por que motivo for. A acção boa ou má é sempre produto de uma decisão que se tomou»

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O Bem Universal

«O Bem Universal é o bem que é comum a todos, para todos. O bem que é considerado absolutamente bom por toda a Humanidade, é também o bem que nos é natural à nascença, empírico, aquele do qual nascemos impregnados na pureza do estado imaculado, o Bem Universal não só é o bem que devemos à Humanidade como é o bem que nos é devido por ela, o Bem Universal é o bem irrefutável em estado absoluto e completo. Quando nascemos, nascemos bons e assim permanecemos, puros enquanto não somos mal influenciados ou contaminados por um mundo exterior potencialmente corrupto. O que acabou de nascer não conhece nem o mal nem a maldade, mas parece desde logo conhecer o bem e o amor pelos seus.

O bem, a força do seu impulso, surge no Humano como algo de natural, espontâneo, muito mais forte do que o impulso negativo do mal. Salvo raras excepções, especialmente aquelas em que as pessoas sofrem de patologias do foro psicológico. Todos os Humanos iniciam as suas vidas iguais entre si, como folhas em branco onde ainda nada foi escrito. A vida é estar vivo e sempre uma excelente oportunidade para se ser bom. O Bem Universal faz parte do senso comum, está embutido nele, se atentos notaremos que a grande maioria das crianças, sobretudo os mais novos, os menos tocados pelo mundo, não raras vezes são também os mais puros, naturalmente bons e inocentes, não conhecem ainda a maldade e existe neles uma inclinação natural para o bem. O Bem Universal é empírico e até naqueles que praticam o mal o Bem Universal está presente, gravado no fundo de todas as consciências, escrito no nosso ADN. Demasiadas vezes escolhemos fazer vista grossa e olhar para o lado, ignorando-o como se não estivesse lá, rejeitando-o conscientemente e por livre-arbítrio. A capacidade de distinguir o bem do mal é natural na maioria das pessoas, o problema é que muitos, apesar de saberem o que é o mal, escolhem praticá-lo, gravando, guardando, acumulando dentro de si e repercutindo nos outros cada má acção.

Optar por um mal e pelo mal é uma escolha que, quando consciente, se faz com mediocridade, seja por que motivo for. A acção boa ou má é sempre produto de uma decisão que se tomou. A responsabilidade da acção individual é sempre de cada um, nunca de Deus ou de outros, com excepção daqueles que são obrigados às más acções por coacção, obrigação, chantagem ou falta de outra alternativa. Será sempre possível a todos, por decisão própria, recusarem-se a fazer ou a praticar o mal mesmo na pior das circunstâncias e sob o risco das penas mais duras e injustas. O Humano é capaz do melhor e do pior sendo que o pior é de cariz absolutamente demoníaco e perverso. Parece existir uma ideia de justiça divina, superior, metafísica e transcendente, presente em quase todas as crenças, que quase sempre diz que aqueles que exercem o mal e a violência sobre outros conhecerão a justiça de Deus, dos Deuses ou do Divino, nesta vida ou na próxima, outros há que a essa justiça dão o nome de Karma e há ainda os que falam em ironia do destino. Uma coisa sabemos com toda a certeza, é que nas entre linhas, tanto a história das nossas vidas como da Humanidade está cheia de pequenas e grandes ironias». In Ricardo Salgueiro Roque, Manifesto Universal, Sítio dos Livros, 2021, ISBN 978-989-902-820-3.

Cortesia de SdosLivros/JDACT

 JDACT, Ricardo Salgueiro Roque, Filosofia, Literatura, Conhecimento,

terça-feira, 7 de março de 2023

O Lago Azul. Fernando Campos. «Porque consenti eu em dar-lhes audiência?, inquieta-se temerosa, em seu salão, a duquesa de Parma, rodeada dos conselheiros. Divididos coração e espírito, entre piedade e obediência…»

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«(…) Estrujo a tempestade, estrondeio nuvens prenhas de negrume, fuzilo relâmpagos, fendo os céus e ribombo timbales, tambores, tímpanos, o cascalhar da trovoada pelas quebradas. Rujo, uivo, silvo, zimbro, bramo a floresta, matraqueio árvores estilhaçadas, dedilho harpas de pinhais, alaúdes de choupos, salteiros e sistros de carvalhedos. Bravejo as fúrias dos mares, refervo o cachão das vagas de encontro aos rochedos, espadano escumas enraivecidas, ressoo trompas de cavernas e furnas, trompetes, clarinetes, fagotes, flautas de canaviais e olmeiros, oboés, cornamusas, olifantes… Mors stupebit et natura... a própria Morte se espantará... Ululo os ecos dos vales, soluço, aio, choro a seda dos meus arcos pelos violoncelos e violinos do cordame dos navios, nos búzios das velas dos moinhos, rufo as varas da chuva por telhados e ruas... Desfaleço a fúria. Num urro final grito o meu Dies irae... \

Em seu gabinete de Bruxelas, Guilherme de Orange acaba de ler o papel que tem em mãos e levanta os olhos para Heinrich van Brederode. Johann e Philips Marnix van Sint-Aldegonde e os jovens fidalgos moços que os acompanham: Este texto de compromisso entre católicos e calvinistas, para entreajuda contra os desmandos de Granvelle e da Inquisição (maldita), agrada-me sobremaneira. Receio, no entanto, vá provocar o assanho do rei. Vede, senhor estatúder, que são centenas as adesões de fidalgos de ambas as crenças, opõe Brederode. Senhor conde, serão mais centenas de cabeças que rolarão no cadafalso. Que sugeris então, príncipe? Prudência. Mas... Resumi o texto a uma petição que seja solenemente entregue por vós à regente Margarida.

Tem Vossa Alteza razão, aceita Johann Marnix. Convocaremos as centenas de coligados e cavalgaremos para o palácio da duquesa. Eu tratarei de solicitar audiência, diz Brederode um pouco desalentado.

Gelosias espreitam curiosas: Que tropel é este na calçada, senhora Cornélia? Ah, mademoiselle Schwartze, não faço ideia. Praí a revolução que começou, diz a senhora Huygens. Em meio da estropeada faíscam em baixo ferraduras das montadas, e gentinha começa a encher as ruas de Bruxelas a aclamar os valentes, encabeçados por Heinrich de Brederode. Obra de duzentos fidalgos. Encaminham-se para o palácio da regente Margarita, meia-irmã do rei Felipe de España.

Porque consenti eu em dar-lhes audiência?, inquieta-se temerosa, em seu salão, a duquesa de Parma, rodeada dos conselheiros. Divididos coração e espírito, entre piedade e obediência ao rei meu irmão... El-rei, Madame, diz o cardeal Perrenot de Granvelle, 'exige severo castigo dos hereges. Não tem pendor para a violência o lencinho de rendas de Mechelen que Margarita leva aos olhos. Margherita, Margareta, Margarida… querida pérola…  margarita ad pullos... pobre duquesa!.. Nada receeis, Madame, diz o conde de Berlaymont. Não passam de maltrapilhos». In Fernando Campos, O Lago Azul, Difel, 2007, ISBN 978-972-290-874-0.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, 18º Rei de Portugal, dom António Prior do Crato, Genebra, Conhecimento, Literatura, História,