«(…) Os grands blancs, proprietários de outras plantações, consideravam-no um presumido que não duraria muito na ilha; por isso, ficaram assombrados por vê-lo com as botas enlameadas e queimado pelo sol. A antipatia era mútua. Para Valmorain, aqueles franceses transplantados para as Antilhas eram uns parolos, o oposto da sociedade que ele tinha frequentado, onde se exaltava as ideias, as ciências e as artes, e ninguém falava de dinheiro nem de escravos. Da idade da razão, em Paris, passou a afundar-se num mundo primitivo e violento, onde os vivos e os mortos andavam de mão dada. Também não fez amizade com os petits blancs, cujo único capital era a cor da pele, uns pobres diabos empeçonhados pela inveja e a maledicência, como ele dizia. Tinham vindo dos quatro pontos cardeais e não havia maneira de averiguar a pureza do seu sangue ou o seu passado. No melhor dos casos, eram comerciantes, artesãos, frades de pouca virtude, marinheiros, militares e funcionários menores, mas também havia meliantes, chulos, criminosos e corsários que utilizavam cada recanto do Caribe para as suas canalhices. Ele não tinha nada em comum com essa gente.
Entre os mulatos livres ou
affranchis existiam mais de sessenta classificações segundo a percentagem de
sangue branco, que determinava o seu nível social. Valmorain nunca conseguiu distinguir
os tons nem aprender a denominação de cada combinação das duas raças. Os
affranchis não dispunham de poder político, mas movimentavam muito dinheiro;
por isso, os brancos pobres odiavam-nos. Alguns ganhavam a vida com tráficos ilícitos,
desde o contrabando à prostituição, mas outros tinham sido educados em França e
possuíam fortuna, terras e escravos.
Acima
das subtilezas da cor, os mulatos estavam unidos pela sua aspiração comum de
passar por brancos e o seu desprezo visceral pelos negros. Os escravos, cujo número
era dez vezes maior do que o dos brancos e affranchis juntos, não contavam para
nada, nem no censo da população, nem na consciência dos colonos. Uma vez que não
lhe convinha isolar-se por completo, Toulouse Valmorain frequentava, de vez em
quando, algumas famílias de grands blancs em Le Cap, a cidade mais próxima da
sua plantação. Nessas viagens, comprava o necessário para se abastecer e, se não
o podia evitar, passava pela Assembleia Colonial para cumprimentar os seus
pares, assim não esqueceriam o seu apelido, mas não participava nas sessões.
Também aproveitava para ver comédias no teatro, assistir a festas das cocotes, as
exuberantes cortesãs francesas, espanholas e de raças misturadas que dominavam
a vida nocturna, e conviver com exploradores e cientistas que se detinham na
ilha, de passagem para outros sítios mais interessantes. Saint-Domingue não
atraía visitantes, mas às vezes chegavam alguns para estudar a Natureza ou a
economia das Antilhas, que Valmorain convidava para Saint-Lazare com a intenção
de recuperar, ainda que brevemente, o prazer da conversação elevada que tinha
ilustrado os seus tempos de Paris. Três anos depois da morte do pai, podia
mostrar-lhes a propriedade com orgulho; transformara aquele destroço de negros
doentes e canaviais secos numa das plantações mais prósperas entre as
oitocentas da ilha, multiplicara por cinco o volume de açúcar por refinar para
exportação e instalara uma destilaria onde produzia selectas barricas de um rum
muito mais fino do que o que era costume beber-se. Os seus visitantes passavam
uma ou duas semanas no rústico casarão de madeira, a empanzinar-se com a vida
de campo e a apreciar de perto a mágica invenção do açúcar. Passeavam a cavalo
por entre os densos pastos que assobiavam, ameaçadores, pela brisa, protegidos
do sol por grandes chapéus de palha e a bocejar na humidade a ferver do Caribe,
enquanto os escravos, como sombras afiadas, cortavam as plantas rente à terra
sem matar a raiz, para que houvesse outras colheitas». In Isabel Allende, A Ilha Debaixo
do Mar, 2009, Porto Editora, 2015, ISBN 978-972-001-948-6.
Cortesia de PEditora/JDACT
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