Karlruhe. Alemanha, Dezembro de 1649
«(…) O Historiador tinha sobre a mesa de
leitura uma pilha de seis livros, tendo começado por folhear a obra que a
funcionária lhe havia entregue em mãos: O Tesouro Perdido de Óbidos, de
Pedro José Gonzaga Morgado. Tratava-se do mesmo autor de Lendas e factos de
Óbidos, livro de 1797. Contudo, aquele livro do Arquivo Distrital do Porto
era ainda mais antigo, uma publicação de 1760. Uma folha anexa ao exemplar,
colocada entre a capa e a guia, informava que o autor era nativo da vila de
Óbidos, tendo feito carreira em Lisboa como especialista em Literatura
Medieval. O pequeno folheto informava também que ao autor eram atribuídas duas
publicações: O Tesouro Perdido de Óbidos, Lisboa, 1760; e Lendas e
factos de Óbidos, Lisboa, 1797. Uma nota no final do folheto informava
também que era o exemplar do Arquivo Distrital do Porto o único reconhecido e
existente no país, não havendo rasto de mais exemplares e da segunda publicação
do autor. Carlos Nóbrega sentiu os pêlos eriçarem-se. Palácio Nacional de
Mafra! Era lá que parava um exemplar da segunda publicação! E estive tão perto
de o ter! Tenho que encontrar aquele homem... Se ainda for vivo, claro!. O
Historiador não pôde deixar de se surpreender com a
leviandade com que este país trata a cultura e quem a faz. Como é que um livro
daqueles pode ter sido negligenciado de tal forma?! Como pôde ficar à mercê de
qualquer um na embrulhada das obras do palácio?!. Segundo a pequena sinopse de
cada obra, o que estava presente no folheto, o primeiro livro do autor
consistia no tratamento de uma lenda da vila de forma ficcionada, a lenda
dos três alemães, tendo por base a disseminação de toda a produção oral da
época; enquanto a segunda obra, certamente escrita com outra maturidade,
note-se que se o primeiro livro tivesse sido escrito no auge dos seus trinta
anos, o segundo teria sido escrito por volta dos seus setenta, era o resultado
de uma exaustiva recolha de dados e informações de múltiplas fontes. Portanto, Lendas
e factos de Óbidos era uma crónica da urbe entre os anos 1500 e 1700, entre
os quais está a passagem pela vila dos três guardiões do manifesto
Rosacruciano, entre outros tesouros.
O
Historiador olha para o relógio. Eram na altura 11h20. Tinha uma hora e
quarenta minutos para passar em revista aqueles exemplares. Começou então pelo
volume que já estava aberto sobre a mesa, olhando de forma geral para a sala e
percebendo que mais ninguém havia chegado. A funcionária estava ocupada com o
computador, fixando o olhar para baixo. Conforme os olhos do Historiador iam
percorrendo as linhas e as páginas, as suas expressões faciais alternavam entre
a compreensão e a dúvida, apontado umas sucintas notas no seu pequeno bloco de apontamentos. Passados uns vinte minutos
abandona aquele exemplar, começando a passar, na diagonal, os olhos pelos
outros volumes que havia retirado do armário. Quando Carlos Nóbrega estava
completamente envolto na leitura de uma parte final do penúltimo livro, um
toque no ombro fá-lo dar um salto na cadeira.
Peço
imensa desculpa, Dr. Nóbrega. Vamos fechar as portas dentro de dez minutos..., informa
a funcionária, com uma certa pena por ter que interromper a leitura do
Historiador. Se pretender, ainda pode digitalizar o que quiser num máximo de
dez páginas... Eu é que peço desculpa. Não vai ser necessário digitalizar nada,
obrigado. Eu ajudo-a a arrumar as obras, disse-lhe ele, solícito. Não é
necessário, obrigada, refere a funcionária. Não, não! Faço questão! A leitura,
a boa leitura, diga-se, é algo que sempre me fez perder a noção do tempo! O
espaço deste livro continua no armário à sua espera, arrumo-lhe este e
trago-lhe já a chave... Então obrigada, Sr. Doutor, autorizou a mulher que ele
levasse a obra de volta à sua estante e ao seu lugar, enquanto ela pegara nos
outros seis volumes e os levara de novo para o armário 11. É preciso mais alguma coisa?, pergunta o homem.
Mais nada, Dr. Nóbrega. Foi
para nós um prazer tê-lo cá, e volte sempre. Muito
obrigado por tudo, foram muito amáveis. Boa tarde, então, o sorriso da mulher acabou com a sucessão de despedida e contra
despedida. Enquanto o historiador se
despedia do jovem homem da recepção, a funcionária dirige-se ao espaço anexo,
olha para o interior do armário e vislumbra no mesmo sítio a mesma castanha
lombada. Olha para a chave que o Historiador lhe entregara e coloca-a no bolso,
dirigindo-se para a primeira recepção do edifício, onde o homem ainda falava
com o recepcionista. Já
agora, o nome Bernardo Faria diz-lhes alguma coisa? Os dois funcionários olham um para o outro, numa expressão que
respondia por si que nunca tinham ouvido tal nome. Poesia? Prosa? Arte?...,
questiona a mulher. História...
História. Não... Nunca ouvimos falar, diz a funcionária pelos dois. Mais
uma vez muito obrigado. Obrigado
nós, Dr. Nóbrega. Não,
não. Obrigado eu. Disso podem ter toda a
certeza...» In
Jorge Durão, A Herança de Rosa-Cruz, O Tesouro Perdido de Óbidos, Edição do
Autor, 2013, ISBN 978-989-866-401-3.
Cortesia de JDurão/JDACT
JDACT, Jorge Durão, Óbidos, Literatura,