quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Meditação. A Vida Breve. «Pelo que toca às ideias, a razão de uma tal incredulidade é a seguinte: a meditação sobre qualquer tema, quando é positiva e autêntica, afasta inevitavelmente o meditador da opinião recebida ou já aí existente…»

Cortesia de wikipedia e jdact


«Em matéria de arte, de amor ou de ideias creio serem pouco eficazes anúncios e programas. Pelo que toca às ideias, a razão de uma tal incredulidade é a seguinte: a meditação sobre qualquer tema, quando é positiva e autêntica, afasta inevitavelmente o meditador da opinião recebida ou já aí existente, do que com mais graves razões que quanto agora suponham, merece chamar-se «opinião pública» ou «vulgaridade». Todo o esforço intelectual que com rigor o seja afasta-nos solitários da praia comum, e, por rotas recônditas que precisamente o nosso esforço descobre, conduz-nos a lugares retirados, situa-nos sobre pensamentos insólitos. São estes o resultado da nossa meditação. Pois bem: o anúncio ou programa reduz-se a antecipar esses resultados, deles arrancando previamente a via ao cabo da qual foram descobertos. (...) Um pensamento separado da rota mental que a ele conduz, insulano e escarpado, é uma abstracção no pior sentido da palavra, e, por esse motivo, é ininteligível».



JDACT

O Jornalismo em Evolução. Adriana Mello Guimarães. Nuno R. Fernandes. «Ora, tais ideias compõem uma verdadeira teoria do jornalismo, na medida em que evidenciam as principais funções da imprensa: ‘informar; interpretar; actuar e intervir’»

Cortesia de wikipedia

Resumo
Que mudanças ocorreram no jornalismo? É a pergunta que procuramos responder. Para tanto, pretendemos realizar uma análise sobre o desenvolvimento do jornalismo. A nossa análise parte do século XIX, pois foi um período de expansão da imprensa portuguesa, um legado rico, marcado por um carácter idealista e doutrinário que serviu para o estabelecimento das coordenadas ideológicas de toda uma memória colectiva até chegar ao jornalismo on-line, que proporciona rapidez para informar, mas também para desinformar.

A ascensão de uma profissão
«Ao longo do século XIX, numa época em que só a imprensa escrita existia como meio de comunicação de massa, os jornais desempenharam um papel revolucionário na vida social. Em Portugal, um artigo da Revista Universal Lisbonense registava a seguinte observação: A imprensa cinge o mundo. Dantes reinava a espada – hoje governa a pena (…) A antiga civilização estava nas guerras, a nova está na imprensa, que chama a atenção para o poder da imprensa enquanto difusora de ideias que suscita a discussão. Nesse contexto oitocentista, marcado pela exigência de uma consciência social, cabe a interrogação: qual era o conceito de jornalismo? No mundo europeu industrializado, a melhoria dos transportes, o alargamento da vida escolar e a evolução das técnicas gráficas foram determinantes para fazer do jornalismo uma actividade sustentável. A inserção da acção jornalística como factor de produção cultural na vida moderna logo se fez reflectir em Portugal: O jornalismo desempenhava na difusão das atitudes inovadoras papel de relevo, condicionado embora pelo analfabetismo generalizado e pelo baixo poder de compra dos possíveis leitores. Mas a imprensa de então é, apesar de tudo, uma realidade cultural de peso (…) só de 1869 a 1871 surgiram em todo o país, 45 novas tentativas. São, sobretudo, folhas políticas, literárias, de anúncios, religiosas, humorísticas, pedagógicas. De facto, o jornalismo oitocentista conferiu à vida do espírito uma presença social mais intensa, e marcou a mentalidade nacional de toda uma geração como um espaço de formação da opinião e da consciência do cidadão.
Nesse espaço, os literatos ocuparam, desde sempre, um lugar de destaque:
Os jornais eram, à época, importantes centros sociais. Era ali – e Eça recordá-lo-á em várias obras – que se faziam amigos, se discutia política, se ficava a par das intrigas do dia. Um periódico oitocentista era o centro do mundo. (Mónica, 2001,p.33) Ao longo dessa fase da chamada “imprensa de opinião”, as empresas jornalísticas contaram com a participação de grandes nomes da literatura e caracterizaram-se por manter, em termos de recursos humanos, uma estrutura centralizada:
O chefe da redacção era o verdadeiro espírito e a alma da publicação. O jornal, geralmente, era um homem, mais até do que um partido. (…) Era o redactor responsável com a sua personalidade, quem, dentro das coordenadas gerais, imprimia ao jornal uma vida própria. Ideologicamente, devemos lembrar que a imprensa da época é, em primeiro lugar política, em segundo lugar, literária e só acidentalmente noticiosa dos acontecimentos da vida quotidiana. No que diz respeito à circulação da informação, uma característica importante desta fase é assinalada por Tengarrinha: Em voz alta liam-se (…) os editoriais dos jornais mais importantes: de tal maneira, assim, a Imprensa e a oratória andavam intimamente ligadas. Entre os múltiplos escritores que emprestaram a sua pena a imprensa, destacamos o crítico alentejano Fialho Almeida que, conforme o espírito da época, entendia o jornalismo como uma missão pedagógica de intervenção e, sobretudo, como um meio para a circulação de ideias. Daí afirmar: Da imprensa deriva toda a espécie de incentivo e de energia fecunda e transformável que vai depois propulsar em todos os distritos gerais da actividade, moral e ciência, indústria e arte, política e religião. Na sequência deste pensamento, Fialho defende o interesse da esfera pública, o chamado espírito públicoÉ a imprensa que reforça e purifica a voz da opinião.
Outro grande escritor oitocentista, Eça de Queirós, concebia um jornalismo de projecção para o futuro, onde era necessário relacionar os factos para melhor compreender e fazer entender. Vejamos, logo no primeiro número de O Distrito de Évora, que fora posto a circular no dia 6 de Janeiro de 1867, o que Queirós afirma:
O jornalismo na sua justa e verdadeira atitude, seria a intervenção permanente do país na sua própria vida política, moral, religiosa, literária e industrial. […] É o grande dever do jornalismo fazer conhecer o estado das coisas públicas, ensinar ao povo os seus direitos e as garantias da sua segurança, estar atento às atitudes que toma a política estrangeira, protestar com justa violência contra os actos culposos, frouxos, nocivos, velar pelo poder interior da pátria, pela grandeza moral, intelectual e material em presença das outras nações, pelo progresso que fazem os espíritos, pela conservação da justiça, pelo direito, da família, do trabalho, pelo melhoramento das classes infelizes.
Ora, tais ideias compõem uma verdadeira teoria do jornalismo, na medida em que evidenciam as principais funções da imprensa: informar; interpretar; actuar e intervir. Por outro lado, cabe assinalar o surgimento de novos processos comunicacionais que deram origem à chamada fase da imprensa industrial. De facto, segundo José Tengarrinha, só entre 1865 e 1885 é que se estabeleceram em Portugal as condições propícias à transformação industrial da imprensa, o que deu ênfase à informação como preocupação e objectivo». In Adriana Mello Guimarães e Nuno R. Fernandes, O jornalismo em Evolução, Trabalho apresentado no III Seminário de I&DT, organizado pelo Centro Interdisciplinar de Investigação e Inovação do Instituto Politécnico de Portalegre, Dezembro, 2012.

Cortesia do IPP/JDACT

Notas sobre Jornalismo e História em Eça de Queirós. Adriana Mello Guimarães. «O jornalismo ensina, professa, alumia sobretudo; é ele o grande constituidor do futuro [...] A história leal, verdadeira e elevada, pela filosofia que encerra, pelos métodos políticos que esclarece…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Resumo: Breves anotações sobre a relação entre jornalismo e história na obra de Eça de Queirós como jornalista.

Era aos mass media que começava a pertencer o monopólio da história. A partir de agora, pertence-lhes. Nas nossas sociedades contemporâneas é através deles, e só através deles, que o acontecimento nos toca e não pode evitar-nos.

«A questão do conhecimento histórico na cultura de um povo, com seus desdobramentos na vida individual, tornou-se um tema recorrente na obra de importantes pensadores a partir do século XIX. No actual mundo globalizado é impossível darmos conta da existência humana em bases sustentáveis sem considerá-la em sua condicionalidade histórica. Se tomarmos como premissa a moderna compreensão de que toda a actividade humana é parte de um projecto, tudo pressupõe factores históricos: a actividade económica, política, social, artística, científica, e até mesmo a actividade filosófica. Mas a actividade jornalística aparentemente tem uma relação especial com o conhecimento histórico: o jornalismo, a partir do final do século XIX, passa a reflectir historicamente a vida dos povos em seus mais diferentes sectores de actividade. Mas qual a relação entre a história e o jornalismo? Como é que a história tem visto os media na sua actividade de promover a interacção do indivíduo com os acontecimentos da vida em sociedade?
Ora, no nosso mundo contemporâneo, hipermoderno, já se considera o jornalista como um historiador do tempo presente. De facto, existe uma espécie de partilha entre esses dois lugares de produção do saber, pois se o jornalismo conta histórias do acontecimento presente, o historiador também não cria factos, mas os descortina, fazendo-os sair da sua invisibilidade. Entre os pensadores oitocentistas que abordaram a problemática, e assinalando uma visão histórica da questão, destacamos o escritor-jornalista Eça de Queirós que, no nosso entender, nas suas crónicas para a imprensa, sentiu alguma familiaridade entre o jornalismo e a história. Afinal, importa observar que Eça viveu num mundo sob o forte impacto do surgimento das ciências do espírito, por oposição às ciências da natureza, mundo esse em que se destaca a influência do pensamento de Hegel, nomeadamente no seu estudo A razão na história, para quem a verdade está na sua história, e esta história encontra-se em transformação perpétua. Tal indicação nos parece clara, pois se, no primeiro número de O Distrito de Évora, Eça de Queirós procura um conceito de jornalismo, no segundo número ele subordina seu pensamento ao título As ciências históricas. Em Eça, as atitudes do jornalista e do historiador são partes de uma mesma intenção informativa. Ambos têm uma grande preocupação com a procura da verdade.
Para ele, as ciências históricas são a base das ciências sociais. Ou seja, para o escritor, como acaba de se tornar patente, não se pode compreender nada da realidade, não se pode conhecer fora do âmbito da história, porque tudo o que é real e existe tem história, é histórico. De acordo com esse viés, tanto o saber quanto a divulgação do saber estão subordinados à historicidade dos factos. Seria, assim, do ponto de vista da história, que o jornalista adquire uma visão global dos acontecimentos, e procura, como numa investigação, aqueles factos que são considerados os mais importantes na ordem causal. Sem o sentido da historicidade dos factos, faltaria ao jornalista esta visão global do tempo, e ele se perderia na superficialidade e no impressionismo dos factos ditos interessantes:
  • O jornalismo ensina, professa, alumia sobretudo; é ele o grande constituidor do futuro [...] A história leal, verdadeira e elevada, pela filosofia que encerra, pelos métodos políticos que esclarece, pelas tradições que destrói e que consagra, pelas individualidades cujas influências estuda e penetra, esclarece e funda a política do futuro.
Problemáticas oitocentistas que ainda hoje permanecem actuais. Além desta interdisciplinaridade, as fronteiras dessas duas áreas também se cruzam na narrativa. Afinal, nos dois campos temos também um narrador, o historiador e o jornalista, que têm empreitadas narrativas a cumprir. Tanto o jornalista como o historiador devem reunir os dados, seleccionar, constituir conexões e intersecções entre eles, elaborar um enredo, apresentar soluções para decifrar uma trama e utilizar estratégias de retórica para convencer o leitor, com vistas a oferecer uma versão o mais possível aproximada do real acontecido. Enfim, ambos trabalham sobre os factos sociais (acontecimentos) e organizam uma memória colectiva. Sobre essa sobreposição de papéis, Cádima vai mais longe e alerta:
  • No passado, o poder tinha a palavra. Hoje, a História é o discurso, e a palavra tem o poder. No limite poder-se-ia dizer que o que resta de histórico na História é o sujeito da enunciação, o historiador, e o discurso por ele produzido. Mas se há um século atrás cabia aos historiadores a legitimação do passado, hoje é o jornalista e o campo dos media que ocupam o lugar do historiador.
Cabe, ainda, destacar o seguinte: é verdade que o objecto de estudo do historiador está no passado, mas o historiador vive no presente e esse presente é construído pelos jornalistas. Hoje, não só se reconhece essa interdisciplinaridade como também se assume que divergências entre as duas disciplinas não fazem sentido:
  • Seja qual for o ponto de partida, torna-se necessário que aqueles que se preocupam com a história e a comunicação e a cultura, tema que cada dia ganha mais adeptos, levem com mais seriedade e atenção a história, e os historiadores, seja qual for o tema ou período que estudem, considerem de maneira mais cuidadosa em seus estudos a comunicação.
Enfim, para enfrentar esta a aproximação entre estas formas de conhecimento ou discursos sobre o mundo, é preciso assumir, em uma primeira instância, posturas epistemológicas que diluam fronteiras e que, em parte, relativizem a dualidade jornalismo / história ou actualidade / passado. Podemos afirmar que as duas instâncias de conhecimento, apesar de suas diferenças, realizam abordagens e interpretações que, quando entram em sintonia, se enriquecem na compreensão dos factos e nas repercussões destes na sociedade. Em suma, entendemos que estas questões revelam a riqueza de uma antiga questão. No entanto, estas preocupações podem proporcionar uma abertura dos campos de pesquisa para a utilização de novas fontes e objectos, e enriquecer o campo jornalístico». In Adriana Mello Guimarães, Notas sobre Jornalismo e História em Eça de Queirós, Escola Superior de Educação de Portalegre, Universidade de Évora, Média e Comunicação. Aprender, 2012.

Cortesia da ESEP/JDACT

Ecos de Paris. A moderna presença de Eça de Queirós no Brasil. Adriana Mello Guimarães. «… segundo Freyre, Eça de Queirós, semelhante a um novo santo sobre os seus devotos, contribui para a unificação da elite brasileira do início do século XX. Porém, parece que não foram só os brasileiros ilustrados que leram Eça»

Cortesia de netto e jdact

«(…) Julgamos ainda conveniente recordar Monteiro Lobato que, nas suas cartas ao seu amigo Godofredo Rangel, confessa a sua admiração pelo escritor Camilo Castelo Branco, e na epístola de 7 de Dezembro de 1915 faz um alerta: acho o Eça o culpado de metade do emporcalhamento da língua no Brasil, onde o lido e o imitado é só ele, ele e mais ele. E quando fala sobre estilo literário, Lobato aproveita para criticar as imitações: fugir sobretudo da maneira do Eça, a mais perigosa de todas, porque é graciosíssima e muito fácil de imitar. Cigarro lânguido, Caneta melancólica, Tinteiro filosófico. Cumpre ressaltar, entretanto, que a imagem que desse testemunho se colhe é de uma crítica madura, onde Lobato enfatiza a impropriedade do pensamento brasileiro.
De facto, a imitação e o aproveitamento indevido dos escritos alheios foram temas debatidos em larga escala no início do século XX, no Brasil. Lima Barreto (1881-1922), no seu Diário íntimo questiona se seria saudável para o Brasil a influência dos portugueses: não é o Eça, que inegavelmente quem fala português não o pode ignorar, são figuras subalternas: Fialho e menores. Ainda no que respeita à admiração de Lima Barreto por Eça de Queirós, cabe mencionar a personagem Isaías Caminha que, no início do sexto capítulo do livro Recordações do escrivão Isaías Caminha, confessa que lê, entre outros, o Eça, para descobrir o segredo de fazer romances. Interessante, ainda, é um inquérito elaborado por Gilberto Freyre que deu origem ao livro Ordem e Progresso. Trata-se de uma série de perguntas que Freyre enviou para diferentes pessoas, de norte a sul do Brasil, nascidos entre 1850 e 1900, cujos depoimentos foram recolhidos pelo autor para servir a tentativas de interpretação da nação brasileira dos séculos XIX e XX, momento crucial de consciência da identidade cultural brasileira. No que diz respeito à literatura, o resultado do estudo é claro:

Eça de Queirós, continuaremos a ver que foi tanto como Alencar e Bilac uma dessas preferências da parte dos brasileiros requintados, do Norte ao Sul do País, que, como preferências nacionais em sua extensão e em sua significação, concorrem para unificar a aristocracia intelectual do Brasil em torno dos mesmos cultos ou de iguais devoções.

Ou seja, segundo Freyre, Eça de Queirós, semelhante a um novo santo sobre os seus devotos, contribui para a unificação da elite brasileira do início do século XX. Porém, parece que não foram só os brasileiros ilustrados que leram Eça. O escritor Antonio Cândido ao tentar explicar o porquê da existência do culto queirosiano, afirma que a projecção do escritor foi vasta: Eça atingiu até os incultos, pois é destes raros escritores eminentes dotados de uma inteligibilidade que os torna acessíveis aos graus modestos de instrução. A utilização da caricatura é outro motivo apontado por Antonio Cândido para o sucesso dos escritos queirosianos no Brasil. Mas, quando Eça utiliza uma espécie de lógica fantasiosa que emprega um exagero caricatural, Cândido reconhece que este refinamento nem sempre foi compreendido pelos brasileiros.
Uma análoga explicação para o fenómeno é avançada por Eduardo Lourenço que, no texto Nós e o Brasil: ressentimento e delírio, enfatiza a incompreensão mútua das duas culturas, assinalando porém a presença ímpar do escritor no universo brasileiro: talvez o grande êxito de Eça no Brasil possa explicar-se por um humor, um brilho que o Brasil não tinha então, mas igualmente pela perspectiva satírica que foi a sua da realidade portuguesa. Outra justificação para a popularidade de Eça em terras de Vera Cruz é sustentada por Massaud Moisés, que vê no brasileiro uma aptidão nata para acolher de braços abertos tudo o que o vincule à Europa. Para finalizarmos este brevíssimo estudo, cumpre ressaltar que a investigação acerca do significado da presença de Eça de Queirós no âmbito cultural brasileiro nos remete ao carácter moderno e crítico de sua obra». In Adriana Mello Guimarães, Ecos de Paris: A moderna presença de Eça de Queirós no Brasil, Universidade de Évora, Escola Superior de Educação de Portalegre, LusoSofia press, A Belle Époque Brasileira, CLEPUL, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-8577-15-3.

Cortesia de CLEPUL/JDACT

Ecos de Paris. A moderna presença de Eça de Queirós no Brasil. Adriana Mello Guimarães. « Não era só em nossa formação literária e em nosso próprio estilo que Eça de Queirós influía. Influía em nossos projectos de andar pelo mundo, em nossos hábitos, gostos e atitudes (…)»

jdact

«(…) Quando o Brasil já era republicano, surgiu um movimento literário, denominado Padaria Espiritual (1892-1898), que congregou em Fortaleza jovens artistas (pintores, músicos e escritores). Curiosa é a tentativa do grupo em estabelecer contacto com a Geração de 70 portuguesa, tendo sido enviadas várias cartas, inclusive a Eça de Queirós. Adolfo Caminha, um dos membros, resume a admiração do grupo: Todos nós tínhamos entusiasmo pela gloriosa constelação portuguesa: recolhemo-nos para meditar frases ao Eça, ao Nobre, ao Ramalho, ao Guerra Junqueiro De facto, o culto das personagens queirosianas fomentou vários clubes e agremiações das mais diversas gerações. O diplomata e poeta Magalhães Azeredo é também protagonista de um encontro inusitado com o seu ídolo, Eça de Queirós, em 1898. Segundo o depoimento de Afonso Arinos Melo Franco, Azeredo estava na redacção da Revista Moderna quando entrou o próprio Eça, à procura de Eduardo Prado. Emocionado, o jovem Azeredo não obedeceu às ordens de segredo, e revelou a Eça que estavam a preparar um número especial em sua honra e que ele ali estava escrevendo o seu elogio ao escritor. Ora, qual não foi sua decepcionada surpresa ao verificar que Eça não se mostrou nada abalado com a revelação. (…) e comentou, com displicência, já a caminho da porta, - Está a escrever o meu elogio? Pois carregue-lhe no adjectivo. Um outro diplomata (e igualmente escritor), Ribeiro Couto foi também grande admirador de Eça: Para mim e para os rapazes do meu tempo, da minha roda, primeiro em Santos (. . . ) depois sob as arcadas do velho Convento de São Francisco, por volta de 1915, na Faculdade de Direito de São Paulo, ele foi uma grande janela aberta para o mundo vivo. Os jovens leitores brasileiros do início do século XX, por graça, atribuíam uns aos outros os nomes das personagens queirosianas e tentavam imitar os seus personagens preferidos:

Não era só em nossa formação literária e em nosso próprio estilo que Eça de Queirós influía. Influía em nossos projectos de andar pelo mundo, em nossos hábitos, gostos e atitudes (…) As paisagens, os ambientes, a humanidade, mesmos os tiques de linguagem e as atitudes das personagens do Eça, como nós dizíamos estavam incorporados no nosso quotidiano.

Massaud Moisés destacou a verdadeira eçolatria que afectou os escritores brasileiros na primeira metade do século XX: desde Aluísio Azevedo até os contemporâneos, Jorge Amado à frente. Nem mesmo Graciliano Ramos (…) resistiu ao fascínio do estilista da Póvoa do Varzim. Clarice Lispector, que negava ter sido influenciada por outros autores, foi leitora voraz do Eça. José Lins Rego é outro escritor fascinado pelo estilo queirosiano e Cyro dos Anjos, ainda na sua cidade natal, Montes Claros, leu Eça». In Adriana Mello Guimarães, Ecos de Paris: A moderna presença de Eça de Queirós no Brasil, Universidade de Évora, Escola Superior de Educação de Portalegre, LusoSofia press, A Belle Époque Brasileira, CLEPUL, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-8577-15-3.

Cortesia de CLEPUL/JDACT

Ecos de Paris. A moderna presença de Eça de Queirós no Brasil. Adriana Mello Guimarães. «… existência de um país […] que, naturalmente, parece que deveria captar, desde o primeiro momento, todas as atenções e promover entre nós as mais vivas e permanentes curiosidades»

Pormenor do vitral do Teatro Municipal de São Paulo
Cortesia de luiscunhapinheiro e jdact

Eça de Queiroz, cidadão da diáspora e do remover inquietante dos mundos (apanágio de génios e visionários), e escritor tão brasileiro quanto português o é pela pátria que a própria língua extrapola, universal.”

«O papel que Eça de Queirós desempenhou no Brasil foi analisado por vários autores. Primeiramente é curioso observar nessa relação luso-brasileira como, por um lado, ele personificou em muitos estudos o vínculo estrito com a matriz portuguesa, e, por outro lado, como prevaleceu uma inclinação para considerá-lo parte de um património comum. Mas, acima de qualquer controvérsia nesse sentido, não há dúvidas de que sempre causou forte impressão o impacto da obra queirosiana no Brasil. Como explicar esse impacto? Estudos mais recentes demonstram que não foram as narrativas de maior apuro intelectual, mais densas e complexas, como O Mandarim (1880), A Correspondência de Fradique Mendes (1900) e A Cidade e as Serras (1901) que o tornaram, de imediato, num escritor extremamente popular no Brasil, mas exactamente O Primo Basílio (1878), de composição talvez menos apurada e personagens caricaturais, de um estilo linear e carregado de sensualismo, que faz lembrar as mais bem sucedidas telenovelas brasileiras de hoje. O que queremos dizer é que o culto a Eça de Queirós no Brasil foi tão forte que os jovens da belle époque brasileira se reuniam num cenáculo, à maneira da geração portuguesa de 1870.
Não temos dúvida de que a França representava a própria ideia de modernidade tanto para Portugal como para o Brasil. De facto, Eça de Queirós, enquanto diplomata e residente em França (e também na Inglaterra), com os seus textos ficcionais e também jornalísticos, para a Gazeta de Notícias, a Revista de Portugal e para a Revista Moderna, acaba por representar uma ponte entre o Brasil e as metrópoles modernas. Quanto à presença do Brasil no imaginário queirosiano, é evidente, para nós, que ela exprime inteiramente o sentido da observação de Sampaio Bruno, acerca da existência de um país […] que, naturalmente, parece que deveria captar, desde o primeiro momento, todas as atenções e promover entre nós as mais vivas e permanentes curiosidades. Com tanta mais razão quanta a experiência histórico-cultural em comum e, principalmente, em vista do futuro, considerando-se que Eça, no final do século XIX, particularmente em Paris, foi testemunha das profundas transformações culturais empreendidas pela modernização da forma da vida europeia. Certamente, a maneira de ver o Brasil foi complexa e ambígua, mas sempre fecunda, permitindo ainda hoje uma reflexão sobre o sentido da modernização na cultura de língua portuguesa.
Inegável é que, sem conhecer o Brasil, Eça de Queirós ao actuar como correspondente para jornais no Brasil vai procurar fundar na sua experiência pessoal o traço da sua crítica. Assim, é Portugal que está sempre pelo avesso. O Brasil é uma entidade remota, vaga, esparsamente referida. A influência que o escritor exerceu sobre o meio intelectual brasileiro é muito vasta, como enfatiza Lúcia Miguel Pereira: toda a gente, falando ou escrevendo, copiava Eça, sem dar por isso. Não cabe aqui elaborar um inventário de toda a preponderância que o autor atingiu em terras brasileiras. Pretendemos, apenas, recuperar, de forma não exaustiva, alguns testemunhos que nos podem fornecer uma ideia da dimensão colossal que Eça desempenhou como ponte na história cultural luso-brasileira, sendo uma presença constante no imaginário brasílico. Dos autores brasileiros, além das conhecidas biografias elaboradas por Miguel Melo (1911), Viana Moog (1945) e Luís Viana Filho (1983), temos alguns relatos dignos de nota. Em 1902, o então prestigioso crítico José Veríssimo publicou o livro Homens e coisas estrangeiras, no qual descreve com emoção a primeira vez em que partilhou o mesmo espaço físico com Eça de Queirós. O encontro deu-se em Lisboa num sarau literário no Teatro Trindade. Alguns anos mais tarde, os dois escritores encontraram-se em Paris. No entanto, o brasileiro jamais tentou uma aproximação maior: amando-o, não quis jamais conhecê-lo pessoalmente, por essa espécie de pudor indefinível que nos afasta de pessoas admiradas e queridas em silêncio. Para louvar o influxo do carácter moderno e inovador do espírito queirosiano, Veríssimo chegou a afirmar que o Brasil não foi capaz de produzir nenhum naturalista que se lhe compare. Mais próximo do autor de Os Maias, Eduardo Prado escreveu uma homenagem ao amigo Queirós, enquanto este ainda era vivo, publicada na Revista Moderna. Nesta homenagem, Prado enfatiza a imaginação e organização de Eça, traça um perfil das ideias do escritor e revela alguns factos sobre o quotidiano em Paris. Já o poeta Olavo Bilac, que também conviveu com Eça em Paris, publicou na Gazeta de Notícias um texto necrológico de homenagem ao escritor. A convivência entre Bilac e Eça, em 1890, deu origem a uma paródia: em conjunto, os dois escritores elaboraram num serão de Inverno um texto intitulado Inês de Castro (um tema português que está presente até hoje no imaginário brasileiro). Segundo a filha de Eça, Maria d’Eça de Queiroz (e reproduzidas por Heitor Lyra n’O Brasil na obra de Eça de Queiroz), da brincadeira também participaram a cunhada (Benedita Pamplona) e a mulher (Maria Emília) do escritor lusitano». In Adriana Mello Guimarães, Ecos de Paris: A moderna presença de Eça de Queirós no Brasil, Universidade de Évora, Escola Superior de Educação de Portalegre, LusoSofia press, A Belle Époque Brasileira, CLEPUL, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-8577-15-3.

Cortesia de CLEPUL/JDACT

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

A Teologia de Leonardo Coimbra. Pinharanda Gomes. «… a íntima relação criacionista que nos autores renascentistas se oferece entre Poesia e Filosofia. A Filosofia exprime-se poeticamente, a Poesia sente filosoficamente»

jdact

«(…) Liberta dos homens de religião negativa, a Renascença Portuguesa ficava com os poetas de lirismo transcendental, esses que Leonardo escolhe em obra célebre: o paganismo de Afonso Duarte, o humanismo sereno de Lopes Vieira, o heleno de ternura cristã, Pascoaes, o sentimentalismo aquático de Augusto Casimiro, o abraço abraçado da alma popular, Corrêa d'Oliveira. A poesia funcionou como saída para uma filosofia que o discurso lógico mal continha, como águas em cascata, pelas paredes barrigudas do açude. Por isso, a íntima relação criacionista que nos autores renascentistas se oferece entre Poesia e Filosofia. A Filosofia exprime-se poeticamente, a Poesia sente filosoficamente. O singular da poesia aguilista reside neste pormenor: em constituir um núcleo vivo, de filosofemas e de teoremas, sejam eles dados, ou pelo prolóquio, ou pelo contraste que leva ao paradoxo do absurdo. A sensível náusea é mais fácil de pensar do que o inteligente absurdo. Todavia, em saudade e criação, o pensamento renascentista sempre olhou para a claridade, não obstante a figuração do enigma sófico, e do mistério religioso. A passagem da direcção de A Águia de uma personalidade singular como era Pascoaes para outra singular personalidade, como era Leonardo, jamais afectou o espírito renascentista. Em 1912, o grupo portuense propunha-se renascer e regressar às fontes originárias da vida, mas para criar uma nova vida, segundo a forma da alma portuguesa. Ao assumir o leme da revista em 1922, Leonardo manteve-a como órgão de crítica e reconstrução imediata da vida social e política e da nação, na procura de um voo mais alto. O universo da natureza, o baixo e o alto estão unidos ai, na sua mensagem. O sinal de A Águia consiste em juntar o disperso, em unir o separado: do melhor arado à mais bela e ampla hipótese metafísica, do mais ingénuo cântico de amor à mais rica interpretação religiosa da vida, do trabalho à meditação, do amor da família ao da pátria, da humanidade e de Deus nada lhes será estranho.
Nos instantes ditados pela mente, pelas mãos e pelo coração, a Renascença Portuguesa procura, ainda em 1922, tal como em 1912, os caminhos da Eternidade. O singular da sequência activa leva a admitir uma ampla influência da arquitectura do movimento nas gerações subsequentes. Programas quais os centrados em Alma Portuguesa, Integralismo Lusitano, Seara Nova, Portucale, Prometeu, 57 (e agora na portuense Nova Renascença) seriam de mais complexa interpretação sem o recurso clarificante para a cadeia renascentista. Este recurso não impõe uma filiação, já que, em mais de um caso, assistimos a uma desnaturação, mas explica o vertebralismo lusíada de gerações poetantes e pensantes, a quem foi dado viver em regime de pensamento invertebrado. Ainda quando não seguiram a ideologia, imitaram o espírito do ideal de nascer de novo. Sendo patente que, pelos menos dois orientes subsistiram para além do tempo geracional e historial do movimento, mais do que como formas pretéritas, como formas vivas de inteligência intemporal e espiritual: o Criacionismo e o Saudosismo, que, defluindo de Leonardo e de Pascoaes, são formas vivas de pensamento novo, por serem formas que valem por si mesmas, independentemente dos autores históricos que primeiro as formularam em teorese de sistema». In Pinharanda Gomes, A Teologia de Leonardo Coimbra, Guimarães Editores, Colecção Filosofia e Ensaios, Lisboa, 1985.

Cortesia de Guimarães Edt./JDACT

Elogio da Loucura. Erasmo. «E a severa Diana sempre esquecida do sexo e dedicada à caça, perdida de amores por Damião? Quisera que Momus lhes dissesse as verdades, como outrora acontecia com frequência»

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Fala a loucura
«(…) Mas para que havemos de falar dos mortais? Percorrei o céu todo; consentirei que o meu nome seja um opróbrio a quem encontre um só deus que seja apreciado fora da minha clientela. Porque é que Baco é sempre um efebo de bela cabeleira? Porque anda sempre embriagado, entre festins, danças, santos e jogos, e não tem comércio algum com Pallas? Tão pouco lhe apraz passar por sábio, que só lhe agrada ter por culto as farsas e os ludíbrios. Não se sente ofendido pelo provérbio que lhe atribui um cognome fátuo, o de mais maluco do que Morico. Provém este nome de Morico da estátua colocada à entrada do templo, estátua que os vindimadores costumam manchar com uvas e figos para seu divertimento. Quantos sarcasmos proferiu contra ele a comédia antiga! Dizia-se até: insensato deus, digno de ter nascido de uma coxa. Mas quem não preferiria ser este deus fátuo e insensato, sempre festivo, sempre juvenil, sempre portador de divertimentos e prazeres, a ser o próprio Júpiter, temível e pouco seguro para todos, ou o velho Pan que semeia o terror, ou Vulcano sujo por causa dos trabalhos da sua oficina, ou até mesmo Palas que olha de soslaio e ameaça sempre com a sua Gorgona e com a lança terrível?
Cupido nunca deixa de ser menino? Porquê? Porque é frívolo, não pensa nem faz coisa sensata. Porque é que é sempre bela a forma da Vénus áurea? Porque tem certa afinidade comigo, porque tem no rosto a cor de meu pai, e tal é a causa por que Homero a denominou Afrodite áurea. Além disso, sorri perpetuamente, se acreditarmos nos poetas, ou nos seus émulos, os escultores. Que divindade foi mais consagrada pelos romanos do que Flora, mãe de todas as volúpias? Se lermos, com atenção Homero e os outros poetas, cremos que até os deuses mais sérios caem em situações de loucura. Será necessário rememorar-vos os amores de Jove fulminante? E a severa Diana sempre esquecida do sexo e dedicada à caça, perdida de amores por Damião? Quisera que Momus lhes dissesse as verdades, como outrora acontecia com frequência; mas eles zangaram-se e precipitaram-no sobre a terra com a Discórdia.
Até, porque o que ele sabia importunava a felicidade dos deuses. Mas nenhum mortal se digna dar hospício ao exilado, nem os príncipes o admitem nos seus palácios onde a minha companheira Colácia ou seja, a Lisonja, tem o primeiro lugar; mas esta é tão amiga de Momus como o lobo do cordeiro. Desde que o exilaram, os deuses divertem-se de modo mais licencioso e mais prazenteiro. Libertos do censor, levam uma vida fácil, como diz Homero. Quando os alegra o Príapo de pau de figueira! Quanto os divertem os furtos e os ardis de Mercúrio! Vulcano, convidado pelos deuses é o bobo dos festins: excita-se o riso, ou claudicando ou dizendo coisas ridículas. E Sileno, esse velho lascivo, dança a cordaca com o pesado Polifemo enquanto as Ninfas saltam a gimnopedia. Sátiros semicaprinos representam as farsas atelanas, Pan provoca o riso geral com uma cantilena rústica e insulsa, que eles preferem às canções das Musas, principalmente quando o néctar lhes começa a subir à cabeça. Como hei-de referir-me ao que os deuses fazem depois de terem bebido copiosamente? São coisas tão estultas que eu não posso impedir-me de rir. Mais prudente é calar-me, como Harpocrates não vá algum deus coriqueu ouvir-me narrar coisas que Momus, não pôde dizer impunemente». In Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura, tradução de Álvaro Ribeiro, colecção Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1987.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT

terça-feira, 29 de outubro de 2013

A Rainha Adúltera. Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora. Marsilio Cassotti. «… descobrindo assim que a paz aconselhada pelo ‘Magnânimo’ fora fingida. Algo que, com pouca prudência, a rainha comunicou por carta ao conde de Barcelos, explicando-lhe a ‘dissimulação com que se fizera’ o acordo entre ela e o regente»

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«(…) Não é possível saber se os rumores sobre a primeira noite de casados dos jovens príncipes chegaram a Almeirim, onde a rainha Leonor e as suas filhas se encontravam em Setembro de 1440. É possível que algum cortesão tivesse comentado a importância alcançada em Castela pelo primogénito de uma linhagem lusa que tivera um papel muito destacado (por vezes trágico) a respeito dos herdeiros da coroa portuguesa.
Um bisavô de Juan Pacheco fora um dos assassinos de Inês de Castro, além de ter sido quem, em 1373, aconselhou o rei castelhano, bisavô da rainha Leonor a cercar Lisboa pelo lado do Monte Olivete para tentar desgastar a população por falta de abastecimento e fome. Em Outubro de 1440 chegou a Santarém uma comitiva castelhana para protestar contra o tratamento que os cunhados davam à rainha Leonor, e é provável que alguns dos seus membros tenham contado imediatamente aos servidores da rainha, quando a foram saudar, a sua versão sobre o ocorrido na primeira noite de casamento do príncipe Enrique. Provavelmente, D. Leonor, uma mulher para quem os rumores da corte só interessavam quando tinham que ver com questões relacionadas com os seus interesses políticos, não lhes terá dado importância. Sobretudo porque um dos embaixadores acabou por informar o regente de que a missão não vinha por vontade do rei castelhano, mas pela dos infantes de Aragão. Segundo Rui de Pina, o infante Pedro soubera, por meio dos espiões que tinha na casa de Leonor, que os selos de algumas das cartas dos embaixadores castelhanos tinham sido lacrados em Almeirim, descobrindo assim que a paz aconselhada pelo Magnânimo fora fingida. Algo que, com pouca prudência, a rainha comunicou por carta ao conde de Barcelos, explicando-lhe a dissimulação com que se fizera o acordo entre ela e o regente.
O conde de Barcelos aconselhou-a a ir para o Crato porque aí podia contar com a segurança proporcionada pela fortaleza em poder do prior, fiel partidário do falecido rei Duarte. Por outro lado, o conde prometeu que a ajudaria a regressar de lá com o apoio das suas tropas. É possível que a rainha tenha enviado ao Crato como mensageiro um parente do prior e marido de uma castelhana de linhagem Mendoza, que então ocupava o cargo de covilheira da rainha. O certo é que um neto deste casal, o humanista Damião de Góis, guarda-mor da Torre do Tombo em 1548, proporcionaria, através de uma crónica, informações sobre Joana de uma sinceridade rara na sua época e que não aparecem em nenhuma outra crónica. O prior do Crato, homem de idade avançada e grande experiência, respondeu à rainha que punha a fazenda, a honra e a vida ao seu serviço. E, no Outono de 1440, enviou um dos seus filhos naturais, primeiro a Santarém, para dar explicações ao regente, e depois a Almeirim, para beijar a mão da rainha; na realidade, para ajudá-la a preparar a fuga. Membro de uma ordem militar que exigia o celibato, este jovem começaria em Almeirim uma relação sentimental com uma servidora de D. Leonor, da qual nasceria uma filha que viria a ser donzela de Joana em Castela.
No dia estabelecido para a fuga, D. Leonor ordenou que fossem disponibilizados cavalos e apetrechos, dizendo que pensava ir prestar homenagem fúnebre ao seu marido no mosteiro da Batalha. Na noite de 31 de Outubro de 1440,véspera de Todos os Santos, a rainha administrou e recebeu no seu estrado como todas as noites e às nove retirou-se para os aposentos. Uma hora depois, escapava por uma porta secreta da muralha. Com ela fugiam la Infanta Dona Joana de mama, e sua ama que a criava, assim como um pequeno grupo de servidores, homens e mulheres, de provadíssima lealdade. Fazia parte dele o seu escrivão de puridade; a sua covilheira castelhana e uma donzela aragonesa que chegara a Portugal com Leonor quando esta se casou. Também a acompanhavam o capelão-mor da rainha e os seus jovens sobrinhos, futuros oficiais da casa da rainha Joana em Castela, e, evidentemente, Afonso Sequeira, o colaço da infanta. Nos dias seguintes, os servidores de D. Leonor que não tinham sido detidos por ordem do regente Pedro fugiram de Almeirim e reuniram-se com a sua senhora na fortaleza do Crato. Entre eles encontrava-se um jovem escudeiro da fugitiva, pertencente à linhagem de Sousa, que muitos anos mais tarde se converteria no oficial mais importante da casa da sua filha como rainha de Castela.
A rainha fora obrigada a deixar em Almeirim a infanta Leonor, por esta se encontrar doente, e a infanta Catarina. Segundo Rui de Pina, a viúva do rei Duarte enviou, a partir do Crato e para todo o reino, cartas que já levava escritas, nas quais se desculpava por ter tomado esta decisão e acusava o regente de a ter obrigado a fugir. Mas esta justificação teria o efeito contrário ao desejado. Sobretudo nos sectores populares, apoiantes do duque de Coimbra, levando-os a manifestar-se abertamente contra a rainha. De acordo com o mesmo cronista mandou logo o Regente em nome d'El-Rei caminho do Crato Diogo Fernandes d'Almeida, védor da fazenda, pedindo à Rainha, sua madre, com mui brandas razões e mui fortes seguranças que se tornasse, e que elle e os Ynfantes iriam por ella, e se não o quizesse fazer que ao menos entregasse a Ynfanta Dona Joana. Na véspera do Natal de 1440, os infantes de Portugal reuniram-se com os filhos do conde de Barcelos, numa propriedade próxima de Avis, para decidir que medida tomar a respeito de D. Leonor, que não parecia obedecer aos conselhos do seu irmão Alfonso V de Aragão nem aos do papa, que lhe escrevera várias cartas aconselhando-a a ter paciência. Depois de muito debater, acordaram solicitar formalmente à rainha que regressasse às suas terras. Em troca, prometiam-lhe que seria servida e honrada como merecia, por ser mulher e mãe de reis. Caso ela não aceitasse, o Crato seria cercado até ser tomado pela força, respeitando sempre qualquer casa ou torre onde a rainha e a infanta Joana se refugiassem». In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.

Cortesia da Esfera dos Livros/JDACT

Poesia. Poemas del Alma. Gioconda Belli. «Decir sin hablar cosas dichas desde el principio, desde el primer apareamiento de un hombre y una mujer que se descubren descubriendo el mundo»

Cortesia de wikipedia

 

Como gata boca arriba
Te quiero como gata boca arriba,
panza arriba te quiero
maullando a través de tu mirada,
de este amor-jaula
violento,
lleno de zapatos
como una noche de luna
y dos gatos enamorados
discutiendo su amor en los tejados,
amándose a gritos y llantos,
a maldiciones, lágrimas y sonrisas
(de esas que hacen temblar el cuerpo de alegría).

Te quiero como gata boca arriba
y me defiendo de huir,
de dejar esta pelea
de callejones y noches sin hablarnos,
este amor que marea,
que me llena de polen,
de fertilidad
y me anda en el día por la espalda
haciéndome cosquillas.
No me voy, no quiero irme, dejarte,
te busco agazapada,
ronroneando.
Te busco saliendo detrás del sofá,
brincando sobre tu cama,
pasándote la cola por los ojos,
te busco desperezándome en la alfombra,
poniéndome los anteojos para leer
libros de educación o del hogar
y no andar chiflada y saber manejar la casa,
poner la comida,
asear los cuartos,
amarte sin polvo y sin desorden,
amarte organizadamente,
poniéndole orden a este alboroto
de revolución y trabajo y amor
a tiempo y destiempo,
de noche, de madrugada,
en el baño,
riéndonos como gatos mansos,
lamiéndonos la cara como gatos viejos y cansados
a los pies del sofá de leer el periódico.

Te quiero como gata agradecida,
gorda de estar mimada,
te quiero como gata flaca
perseguida y llorona,
te quiero como gata, mi amor,
como gata, Gioconda,
como mujer
te quiero.

Acontecimientos
Estar como una ola
encrespada en el suave
murmullo de tu sangre.

Dormitar prendida de tus bordes
acurrrucado pelo derramado en tu hombro
sostenido en la caricia de tu mano.

Decir sin hablar
cosas dichas desde el principio,
desde el primer apareamiento de un hombre y
una mujer
que se descubren
descubriendo el mundo.

Ser este animalito dulce
que te busca con los ojos abiertos
y piensa que la vida es hermosa, intensa,
inesperadamente nueva.

Poemas de Gioconda Belli

 

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Os dias de Hoje. O Fim da Inocência. Diário Secreto de Uma Adolescente Portuguesa. Francisco Salgueiro. «Talvez nessa altura ainda estivessem bem presentes na minha memória todas as histórias que ouvia na minha família sobre o que era suposto fazer-se aos doze anos. Segundo a minha mãe, e tal como seria natural em todas as gerações…»

Cortesia de wikipédia

«(…) Sento-me aos pés da cama. No ar há um intenso cheiro a sexo. Atrás de mim, um homem de quarenta e cinco anos que acabei de fo… Olho para o espelho e pergunto-me que idade terei realmente. Sinto-me com quarenta, mas no meu cartão de cidadão está marcado dezassete. Imagino o que os meus pais dirão se souberem o que realmente se tem passado na minha vida. Para eles, eu ainda sou a menina perfeita, pura e virgem. Quando pensam no meu futuro, vêem-me a caminho do altar e de um casamento com trezentos convidados. Perdi a virgindade aos catorze. Era velha quando isso aconteceu. Pelo menos, comparando com a maior parte das minhas amigas. Desde os doze que elas gozavam comigo por ainda não ter ido para a cama com um rapaz, tal como já haviam feito.
Talvez nessa altura ainda estivessem bem presentes na minha memória todas as histórias que ouvia na minha família sobre o que era suposto fazer-se aos doze anos. Segundo a minha mãe, e tal como seria natural em todas as gerações, nessa idade ela brincava com bonecas. Mas aos doze eu comecei a ver as minhas amigas brincar com pi… Essa era a conversa que mais vezes tínhamos nos intervalos das aulas. Aos catorze perdi a virgindade, e aí senti que fazia parte do clube, que naquela altura já nem era assim tão restrito. Tinha conquistado um novo prazer. Um prazer demasiado viciante para ser desperdiçado e apenas usufruído quando fosse mais velha. Um dos nossos passatempos favoritos era olharmos para as professoras e darmos-lhes notas. A escala era de um a dez. A nota um para quem não ia para a cama há muito tempo. A dez para quem tinha mandado uma que… na noite anterior. A meio das aulas trocávamos papéis com as notas; muitas vezes éramos apanhadas, mas apenas tinham números. As professoras ficavam com uma cara muito surpreendida. Obviamente que não sabiam o que aquilo significava. Nós desatávamo-nos a rir.
Normalmente a melhor nota que lhes dávamos era um três. Nunca demos um dez a ninguém. As nossas professoras pareciam sempre tão stressadas que nenhum homem quereria estar com elas. Ao contrário de nós, para quem estava sempre tudo bem. Por isso, começámos a ter rapazes e, sobretudo, homens atrás de nós. Homens com trinta e até quarenta anos. Se calhar muitos até eram os maridos ou namorados das professoras, que não os satisfaziam. Eles, se sabiam a nossa idade, não se importavam. Mas o mais certo era não se aperceberem. Quando íamos a discotecas, produzíamo-nos tanto que parecíamos ter dezanove anos. Ao fim de segundos estávamos rodeadas por homens, muitos com idade para serem nossos pais.
Vejo a minha cara no espelho. Estou tão passada com a coca que acabei de snifar que não consigo perceber se tenho nojo ou pena de mim. Batem à porta. Não tenho tempo para responder, porque é aberta de imediato. É a Rita, a minha melhor amiga. Também tem dezassete anos. - Vem - diz-me, enquanto dá uma passa no charro que tem entre os dedos. - Estamos todos à tua espera para jogar. Com a nossa idade isso pode significar querer que vá jogar com eles às cartas ou com a PlayStation. Mas não. No andar de baixo, está prestes a começar uma rainbow party, uma festa em que vários homens vão ficar com as pi… pintadas de várias cores. Porque estou aqui nua com um estranho? Porque me sentirei tão só?» In Francisco Salgueiro, O Fim da Inocência, Diário Secreto de Uma Adolescente Portuguesa, Oficina do Livro, Lisboa, 2010, ISBN: 978 989 555 19 6.

Cortesia de Oficina do Livro/JDACT

A Rainha Adúltera. Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora. Marsilio Cassotti. «Referindo-se ao cariz sexual da influência de Pacheco sobre o futuro marido de Joana, um historiador jesuíta do século XVI escreveu: Pode suspeitar-se que grande parte desta fábula foi forjada em consideração dos reis Fernando e dona Isabel»

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«(…) Um cronista castelhano contemporâneo da rainha Joana escreveria anos mais tarde de Enrique que durante estes anos da mocidade se entregou (...) a abusos e deleites dos quais fez hábito (...), de donde lhe veio a fraqueza do seu ânimo e diminuição da sua pessoa (...). Esses deleites que a mocidade costuma exigir e que a honestidade deve negar. Em finais de Julho de 1440, o rei de Aragão enviou uma carta ao conde de Barcelos e ao prior do Crato, anunciando a chegada do jovem Diego de Saldaña, escrivão de ração da rainha, nossa irmã, e pedindo-lhes que o ouvissem como se fosse ele próprio em pessoa. É provável que este futuro servidor castelhano da rainha Joana, cabeça de uma importante linhagem da nobreza portuguesa, tenha conseguido convencer a rainha Leonor a que dissimulasse, uma vez que, pouco depois da sua chegada, Leonor negociou um acordo, fingido, segundo o cronista Rui de Pina, com o infante Pedro, por meio de um antigo escrivão do falecido rei Duarte, nesse momento secretário da rainha e que mais tarde se encarregaria de administrar os bens da infanta D. Joana.
Enquanto esta simulação tinha lugar em Almeirim, onde D. Leonor residia com as suas filhas, em Castela começaram a correr rumores sobre o que não ocorrera durante a primeira noite de casados do príncipe Enrique e da sua primeira esposa, Blanca de Navarra. Segundo uma importante crónica castelhana, Blanca ficou tal qual nasceu, com o que ficaram todos muito irritados. Outro cronista real contemporâneo da rainha Joana narraria que os esposos dormiram na mesma cama e a princesa ficou tão inteira como vinha. Para Alonso de Palencia, futuro difamador da rainha Joana, os gozos de alegria dos festejos aconteceram mas sem o verdadeiro gozo do matrimónio (...). Os cortesãos começaram imediatamente a fazer circular rimas e quadras atrevidas zombando da cópula não consumada e atribuindo maior capacidade para o coito aos homens com quem Enrique se misturava. Segundo um médico do príncipe, o futuro marido de Joana sofrera, no início da puberdade, um acidente que, para além de lhe causar a deformação do nariz, lhe provocou a perda de força. De acordo com um relatório mandado realizar quando Joana já estava casada com ele, este mesmo médico declarou que, pouco depois de Enrique fazer os doze anos, descobriu que carecia de verga potente e viril, afirmando contudo que se curara posteriormente.
Alonso de Palencia, em plena campanha difamatória contra Enrique IV e a sua segunda mulher, chegaria inclusivamente a afirmar que alguns dos seus cortesãos tinham praticado sodomia para o manter sob o seu controlo. O mais conhecido deles fora, segundo o cronista palentino, um jovem nobre castelhano, descendente de portugueses exilados em Castela. Segundo palavras textuais, o que entre eles tinha mais fama de potente era Juan Pacheco, adolescente astuto que se prestava a qualquer serviço e que não respeitava nada a não ser a sua própria ascensão no poder, ainda que tivesse de o conseguir à custa de crimes impuros. Astuto, esperto e hábil, Álvaro tinha-o escolhido desde criança para servidor de Enrique, acreditando erradamente que o jovem não se desviaria um milímetro das suas instruções. Como bem conta Palencia, Juan Pacheco fora anteriormente pajem de Álvaro de Luna, a cuja casa chegara pelo seu parentesco com a segunda esposa do condestável, uma Pimentel descendente de um importante nobre português, exilado em Castela em consequência da batalha de Aljubarrota. Durante uma reestruturação do pessoal da casa real, o valido colocara o jovem Pacheco perto do príncipe Enrique, mas numa posição muito subalterna. A inteligência e a capacidade para exercer de forma convincente a adulação tinham-lhe granjeado o favor do seu senhor, seis anos mais novo que ele. Dois dias depois da boda de Enrique, Pacheco foi nomeado alcaide da fortaleza de Logroño. Esta rápida ascensão favoreceria também a carreira do seu irmão mais novo, Pedro Girón.
Referindo-se ao cariz sexual da influência de Pacheco sobre o futuro marido de Joana, um historiador jesuíta do século XVI escreveu: Pode suspeitar-se que grande parte desta fábula foi forjada em consideração dos reis Fernando e dona Isabel, os Reis Católicos. Mas não é por isso menos certo que esta personagem exercesse sobre Enrique uma poderosa influência, baseada na sua capacidade para conhecer as debilidades do carácter do seu senhor e usá-las em seu próprio benefício; trata-se de um aspecto fundamental para entender o desenvolvimento dos acontecimentos nos quais Joana de Portugal se veria implicada em Castela». In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.

Cortesia da Esfera dos Livros/JDACT

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Os Mistérios Gnósticos da Pristis Sophia. J. Van Rickenborgh. «E sucedeu, quando o sol despontou no oriente, através do Primeiro Mistério, que existe desde o princípio, e por cuja causa se originou o Universo do qual eu mesmo acabo de chegar…»

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Considerações sobre o Livro I da Pistis Sophia
Livro I
«(…) Quando essa força luminosa desceu sobre Jesus, sucedeu que, de forma progressiva, ela o envolveu por completo. Então, ele ergueu-se e foi elevado às alturas, irradiando luz imensurável e fulgurante. Os discípulos seguiram-no com o olhar, e ninguém falou até ele alcançar o céu, mas permaneceram em profundo silêncio. Isso aconteceu no décimo quinto dia da lua, no dia da lua cheia, no mês de Tybi. Três horas depois de Jesus ter sido elevado ao céu, todas as forças do céu entraram em grande comoção e se agitaram umas contra as outras, elas e todos os seus éons e todas as suas regiões e ordens. Toda a terra, com todos os seus habitantes, foi tomada por grande estremecimento. E todas as pessoas sobre a terra e também os discípulos entraram em estado de grande inquietação, e todos pensaram que talvez o mundo estivesse desabando. Todas as forças do céu continuaram abaladas, elas e o mundo inteiro. Moviam-se umas contra as outras desde a terceira hora do décimo quinto dia do mês de Tybi até a nona hora do dia seguinte. E todos os anjos, e seus arcanjos, e todas as potestades das alturas exaltavam o interior dos interiores, de tal modo que todo o mundo ouvia suas vozes, ininterruptamente, até a nona hora do dia seguinte. Os discípulos estavam juntos, aterrorizados e em grande agitação, e temiam muito por causa do grande terremoto que acontecera, e choravam, e diziam uns aos outros: O que irá acontecer? Destruirá o Salvador todas as regiões?
Enquanto eles assim falavam e choravam juntos, os céus abriram-se na nona hora do dia seguinte, e eles viram Jesus descer, extremamente radiante, e era extraordinária a luz em que ele se achava. Porquanto resplandecia ainda mais do que na hora em que fora elevado, de tal modo que os habitantes da terra não conseguiam abarcar a luz que nele estava. Ela emitia raios de luz em profusão, e seu brilho era imensurável. Essa luz não era uniforme, mas heterogénea em tipo e natureza, sendo que uns raios eram infinitamente mais luminosos do que outros. Em sua totalidade, a luz consistia em três tipos, cada um infinitamente mais resplandecente que o anterior. O segundo, o do meio, era mais excelente que o primeiro, o mais inferior. O terceiro, o mais elevado dos três, era mais perfeito do que os outros dois. O primeiro raio, que se encontrava sob os outros dois, assemelhava-se à luz que descera sobre Jesus quando fora elevado aos céus. Contudo, apenas por sua luminosidade esse raio era igual àquele. Os três tipos de luz estavam constituídos de diferentes maneiras, cada uma mais magnífica do que a outra.
Ao verem isso, os discípulos ficaram muito aterrorizados e confusos. Jesus, o misericordioso e manso, vendo seus discípulos em tão grande agitação, disse-lhes: Tende confiança. Sou eu. Não temais. Tendo ouvido essas palavras, eles disseram: Ó Senhor, se és tu, recolhe teu esplendor luminoso para dentro de ti, para que possamos suportá-lo. Senão nossos olhos serão ofuscados; estamos aflitos, e todo o mundo também está abalado por causa da grande luz que está em ti. Em seguida, Jesus recolheu o fulgor de sua luz de volta para si. Quando isso ocorreu, os discípulos recobraram ânimo, dirigiram-se a Jesus, caíram por terra, adorando-o com grande alegria, e perguntaram-lhe: Senhor, aonde foste, ou qual foi a missão que cumpriste? E, sobretudo, porque ocorreu toda essa agitação e todo esse terremoto? Então disse-lhes Jesus, o Misericordioso: Alegrai-vos e rejubilai desta hora em diante, porque fui para a região de onde vim. A partir de agora falarei convosco com toda a franqueza, desde o princípio da verdade até a sua consumação, e falarei convosco frente a frente, sem metáforas. Doravante nada mais vos ocultarei do mistério do Alto e da essência do reino da verdade. Porque, pelo Inefável e pelo Primeiro Mistério de todos os mistérios, foi-me dado a autoridade de falar convosco sobre a verdade, desde o princípio até sua consumação e do exterior para o interior, e do interior para o exterior. Ouvi, portanto, para que eu vos conte todas as coisas. Quando, no Monte das Oliveiras, sentado um pouco distante de vós, meditava sobre a missão da incumbência para a qual eu fora enviado e que fora realizada, e que o último mistério dos vinte e quatro mistérios, o vigésimo quarto do interior para o exterior, ainda não me enviara minha veste. Esses vinte e quatro mistérios encontram-se no segundo espaço do Primeiro Mistério na ordem daquele espaço. Quando então reconheci que estava realizada a missão da incumbência para a qual eu fora enviado, e que esse mistério ainda não me enviara minha veste, que eu deixara em seu interior até que o tempo estivesse cumprido, comecei então a meditar sobre isso, quando sentei-me um tanto afastado de vós no Monte das Oliveiras.
E sucedeu, quando o sol despontou no oriente, através do Primeiro Mistério, que existe desde o princípio, e por cuja causa se originou o Universo do qual eu mesmo acabo de chegar, não na época que antecedeu minha crucificação, porém agora, por mandamento desse mistério foi-me enviada minha veste-de-luz, que me fora dada desde o princípio e eu deixara no último mistério, do interior para o exterior. Esses vinte e quatro mistérios são os que se encontram na ordem do segundo espaço do Primeiro Mistério. Deixei então esse manto de luz no último mistério até que chegasse a hora certa de vesti-lo e de começar a falar à humanidade para revelar-lhe tudo da verdade, desde seu princípio até a sua consumação; para falar-lhe do interior dos interiores até o exterior dos exteriores e do exterior dos exteriores até o interior dos interiores. Alegrai-vos, pois, rejubilai e regozijai-vos, pois vos foi concedido que eu falasse primeiro convosco da verdade, desde seu princípio até sua consumação. Porque eu, já desde o princípio vos escolhi pelo mandamento do Primeiro Mistério». In J. Van Rickenborgh, De gnostieke mysteriën van de Pistis Sophia, 1960, Rozekruis Pers, Holanda, Die gnostischen Mysterien der Pistis Sophia, 1992, Os Mistérios Gnósticos da Pistis Sophia, Lectorium Rosicrucianum, Escola Internacional da Rosacruz Áurea, Brasil, Pentagrama, Lisboa, 2012, ISBN 978-85-62923-12-6.

Cortesia de Pentagrama/JDACT

Judaísmo. Os Manuscritos de Qumrah e a Comunidade Judaica do Mar Morto. Conferência. Porto. Geraldo Coelho Dias. «Ficou, porém, atarantado porque a pedra produzira um baque, como se se tivesse partido qualquer objecto de barro. Assustado, juntou o rebanho e partiu…»


Cortesia de wikipedia

Os manuscritos de Qumrah e a Comunidade Judaica do Mar Morto
«Temos a honra e o privilégio de ter entre nós uma curiosa exposição sobre antiquíssimos manuscritos bíblicos e todo o contexto arqueológico em que se encontravam envolvidos. Na verdade, os Documentos de Qumrah, ou Manuscritos do Mar Morto, ou Rolos do Deserto de Judá, já que variados são os nomes para indicar a sensacional descoberta deste conjunto de documentos judaicos, fazem-nos dar o salto qualitativo e cronológico do século X d.C. para o século II a.C., da Idade Média para antes de Jesus Cristo. Na verdade, estes numerosos documentos manuscritos, mais de 800, e inumeráveis e complicados fragmentos, constituem verdadeira biblioteca. Por um lado, apresentam-nos documentos em hebraico, aramaico e grego; por outro lado, dada a importância e antiguidade dos manuscritos bíblicos, põem-nos diante do problema científico da fidelidade e veracidade do texto hebraico massorético, constituído bastante mais tarde; dão-nos ainda a conhecer o quadro ideológico judaico ao tempo do nascimento do Evangelho cristão, isto é, o ambiente vital em que o Cristianismo nasceu. Com os documentos de Qumrah, portanto, é todo um labirinto de problemas a afectar o mundo das ciências bíblicas e das origens do Cristianismo, que veio trazer algumas perturbadoras perguntas sobre a figura de João Baptista, cuja vida e pregação os Evangelhos cristãos situam no Deserto de Judá. Terá ele sido, afinal, um membro desta desaparecida comunidade, possivelmente essénica, que, ao fugir dos romanos aquando da primeira revolta judaica de 66-70, escondeu os seus preciosos manuscritos? O próprio Cristianismo é tocado pela questão do messianismo e pela hipotética identificação do Mestre de Justiça com Jesus Cristo. Terá mesmo Jesus sido influenciado pelas doutrinas dos essénios? Terá Jesus aprendido ou tirado deles alguma coisa?

O acaso da descoberta e a riqueza das pesquisas arqueológicas
Um mero acaso está na origem da mais sensacional e importante descoberta de documentação hebraica. Na Primavera de 1947, um pastor da tribo beduína dos Ta`âmirah, que vagueiam com seus rebanhos ao sabor da transumância entre Belém e o Mar Morto, o Mar do Sal para os hebreus, Yam HaMmelah, encontrava-se quase na embocadura do Wâdi Qumrah, um desses muitos ribeiros secos, que atravessam o deserto de Judá. Estava preocupado e aflito pelo desaparecimento duma cabra. Olhando para a parede rochosa do Wâdi, viu um buraco e atirou uma pedra, porque talvez a cabra tivesse entrado por ali. Ficou, porém, atarantado porque a pedra produzira um baque, como se se tivesse partido qualquer objecto de barro. Assustado, juntou o rebanho e partiu para o acampamento, mas, ainda assim, decido a voltar com um amigo para encontrar resposta àquele ruído estranho. Muhammad ed-Di`b (Maomé o Lobo) voltou no dia seguinte com um primo, e penetraram na gruta. Descobriram, então, uma gruta com pedaços de barro partidos e 8 jarras ou ânforas intactas, 7 das quais vazias, mas dentro da oitava acharam três rolos de couro, que levaram a um antiquário de Belém para vender. Este, pensando que estavam escritas em caracteres siríacos, levou-as a Mar Atanásio, arquimandrita do mosteiro siríaco de S. Marcos de Jerusalém. Era a descoberta em 1947 da gruta nº 1 de Qumrah (1 Q). A notícia da descoberta divulgou-se e outros beduínos começaram a fazer pesquisas por conta própria, de tal modo que em Dezembro de 1947, a Universidade Hebraica de Jerusalém, por meio do arqueólogo judeu Eliezer Sukenik, que tinha intuído a antiguidade dos documentos e a sua ligação aos essénios, comprou um maço de três manuscritos, que hoje se conservam e mostram através de réplicas no Santuário do Livro em Jerusalém.
Entretanto, em Fevereiro de 1948, Mar Atanásio mostrou os 4 rolos da 1 Q à ASOR (American School of Oriental Research) para ver se os seus técnicos podiam decifrar aquela estranha escrita. Contudo, o rebentar da guerra pela independência de Israel, obrigou-o a emigrar para os Estados Unidos, levando consigo os manuscritos, onde, em seguida, por intermédias pessoas, o novo Estado de Israel os comprou por 250 mil dólares. Após o armistício da guerra Palestino-Israelita, em Julho de 1948, com a divisão da Palestina entre Israel e a Jordânia, a parte oriental da Palestina, chamada Cisjordânia, ficou integrada no Reino Hashemita da Jordânia e, logo no começo de 1949, o Departamento de Antiguidades da Jordânia, em colaboração com a École Biblique et Archéologique Française e outras instituições científicas de Jerusalém oriental, empreendeu escavações na região de Qumrah, cujas descobertas arqueológicas, desde 1947 a 1958, foram logo estudadas e publicadas. Quando em 1951 decorria a campanha associada de escavações, os beduínos trouxeram a Jerusalém mais um lote de documentos descobertos um pouco mais abaixo nas grutas de Murabba`ât, que foram datados da 2ª Guerra Judaica, entre 132-135, a revolta de Bar Kokheba (Filho da Estrela) no tempo de imperador Adriano. Há mesmo algumas cartas autografas deste chefe de rebelião, considerado um avatar messiânico ou realização messiânica da profecia de Balaão, segundo o Livro dos Números: Eu vejo, mas não para já; contemplo-o, mas ainda não próximo. Uma estrela surge de Jacob e um ceptro se ergue de Israel.
Em Fevereiro de 1952, os beduínos Ta`âmirah descobriam a 2 Q com fragmentos semelhantes aos da 1 Q. Imediatamente se associaram em pesquisa arqueológica, sob a direcção do Pe. Roland De Vaux, OP, os vários organismos interessados na antiguidade (Direction des Antiquités de Jourdanie, École Biblique et Archéologique Française, American School of Oriental Research, Palestine Museum ou Rockefeller Museum). De facto, passaram a pente fino numa pesquisa arqueológica sistemática toda a região da zona rochosa ou falésia de Qumrah com uma extensão de 8 quilómetros passando por `Ain Fesha, a fonte de água potável da região, até às grutas Murabba´at. Exploraram também o sítio das ruínas das instalações de Qumrah ou antigo mosteiro de Qumrah, possivelmente sede dos essénios». In Geraldo Coelho Dias, Judaísmo, Os Manuscritos de Qumrah e a Comunidade Judaica do Mar Morto. Texto inédito. Conferência no Museu dos Transportes e Comunicações. Porto. Maio de 2005.

Cortesia de MTC do Porto/JDACT