O Tráfico de Escravos na Época
Moderna. A pouca originalidade do tráfico
«(…) No Oriente, observa-se que, já desde os anos 800 a 1000, as expedições
árabes contra a Anatólia não visavam nem a conquista nem o estabelecimento, mas
sim a procura de prisioneiros destinados à escravidão. Um documento chinês de 1178, confirma a existência desse
comércio desde longa data numa ilha que será, possivelmente, a de Madagáscar.
Noticia a existência de uma ilha no mar
onde vivem muitos selvagens, de corpos negros e cabelo encarapinhado, que
eram atraídos com comida e capturados, para depois serem vendidos como escravos às nações árabes, onde
atingiam preços muito elevados. O mesmo relato salienta que os navios
transportavam seres humanos como carga e se compravam tanto homens como
mulheres. As repúblicas italianas e os mercadores do levante hispânico
intensificaram esse tráfico desde os finais do século XIII, até à primeira
metade do século XV. Segundo Speck, citado por Pedro d'Azevedo, os
cristãos do ocidente não sentiam qualquer repugnância por possuir escravos que
não professassem o cristianismo. Por outro lado, fazia-se com frequência a
venda de escravos cristãos aos infiéis. Ainda de acordo com esta fonte, em 1317, o papa João XXII teria acusado os
mercadores da república genovesa por roubo e venda de crianças cristãs aos
infiéis. A existência de grande quantidade de escravos, dá a ideia da
importância que então teria assumido este comércio nos portos do Mediterrâneo.
A sua grandiosidade, como algumas das áreas mais influentes, são referidas na
descrição de Speck:
Em Veneza havia em 1368 tão grande número [de escravos]
que as contendas e insubordinações delles causavam receios. Em Génova eram
também numerosos; em Pisa, Florença, Lucca e Barcelona mais raros. Os tártaros,
e também circassianos, russos, turcos, syrios, egypcios, em menos quantidade os
bulgaros, esclavonios e gregos eram transportados aos centos para os emporios
dos latinos.
Mas outras zonas foram igualmente importantes. Na foz do Don, a colónia
veneziana de Tana foi um florescente centro de comércio de escravos, vendendo-os
tanto para o Egipto e Síria, como para as regiões do Adriático e para a própria
Veneza. A quantidade de escravos na colónia era tão grande que, por mais de uma
vez, se impôs a necessidade de limitar o seu afluxo. Eram também as colónias
italianas de Caffa e Tana que distribuíam na Península Hispânica os escravos
provenientes do Mar Negro. A diferença de densidade escravista nas diversas
regiões da península era notória. Se em Aragão, por exemplo, o elemento escravo
era pouco numeroso, em Valência, Catalunha e ilhas Baleares verificava-se o
contrário. Só na Catalunha, no início de quatrocentos, o seu número excedia 4
375 e nas Baleares existiam proprietários de 10, 20, 30 e, até, mesmo, 60
escravos. A rarefação da mão-de-obra no século XIV, as exigências
manufactureiras da cana-de-açúcar e dos engenhos, os serviços domésticos e o
hábito de alugar o trabalho dos escravos levaram à exploração do imenso
reservatório centralizado no Mar Negro.
Como se acaba de ver, fazer escravos e negociar com eles, nada teve de novo
nos tempos modernos. Contrariamente ao que Guilcher sustenta, na senda de
outros autores, não cabe a Portugal a
vergonha de ter inaugurado o tráfico de escravos. Nem sequer foram os portugueses os iniciadores da escravatura negra,
como afirma H. Scherer, ou os introdutores nas colónias espanholas da América
dos primeiros negros comprados em África, como declara Schoell. Não só as
referências feitas anteriormente, mas também os exemplos apresentados por
Charles Verlinden comprovam que estas afirmações são falsas. O que aconteceu, a
partir de meados do século XV, quando os portugueses se entregaram a este
negócio ao longo da costa africana, foi o encontro com sociedades
verdadeiramente escravistas, tradicionalmente enraizadas nestas práticas, bem
como o desvio de parte desse comércio dos navios italianos para os ibéricos. E
se o número de escravos e sua importância adquiriram um tão grande valor após
os Descobrimentos, atingindo uma divulgação até aí desconhecida, foi
devido às necessidades do momento exigirem uma maior dinamização de mão-de-obra
escrava. Ela é agora, como lhe chama
Caio Prado Júnior, um recurso de
oportunidade a que os países da Europa lançaram mão, a fim de explorar
comercialmente os vastos territórios e riquezas do Novo Mundo. Mas não é
uma novidade e muito menos a contradição mental que o mesmo autor afirma, ao
vê-la como um corpo estranho que se
insinua na estrutura da civilização ocidental em que já não cabia, e onde vem
contrariar todos os padrões morais e materiais estabelecidos». ». In
Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na
Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995,
ISBN 972-8047-75-4.
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