Não há portugueses maus
«Em Portugal o concreto fá-las e o geral é que (em geral) as paga.
O geral tem larguíssimas costas: as culpas dos males nacionais são todas da
sociedade, do sistema, do modelo económico, do Estado, do Governo (nunca do
ministro Fulano ou do ministro Sicrano, mas do Governo, quando não dessa
misteriosa entidade que é o Executivo, tudo seres do mais geral que, quanto a
generalidades, se pode arranjar), ou ainda do regime, da organização dos
serviços, da burocracia e de outras abstracções por aí adiante, até ao fado,
que é a mais geral e mais portuguesa forma de fazer queixas sem atirar com as
culpas para ninguém nem para coisa nenhuma. A
justiça não funciona? O juiz marcou uma dúzia de julgamentos para o
mesmo dia e para a mesma hora, sabendo que os não pode realizar a todos ao
mesmo tempo, e depois adiou-os a todos menos a um, mandando queixosos, réus,
declarantes, testemunhas, para casa e ordenando novas citações, notificações, registos,
para outro dia e outro adiamento?
A culpa não é do juiz, é da organização dos tribunais ou do sistema judiciário!
Os médicos não cumprem? O
cidadão X queixa-se da Urgência, do
Hospital Y, onde esteve a protestar durante uma hora até lhe engessarem por
engano a perna direita em vez do braço
esquerdo? A culpa é dos serviços de Saúde, não do médico nem da
enfermeira (quando muito é dos serviços de Saúde mais do jornal que dá a
notícia...).
O contribuinte A (que é como quem diz você, ou este seu criado, ou
qualquer um de nós) perdeu o tempo, a paciência e alguns contos de réis na
Repartição de Finanças B, enquanto os funcionários discutiam o golo de Madjer
em vez de lhe darem atenção, ou envolveu-se em controvérsia com o notário
Sicrano, que lhe não reconheceu o atestado porque o papel de 25 linhas era azul
bebé e não azul celeste e tinha margens mais estreitas do que as devidas? A culpa é desse estranho e
misterioso personagem que é a burocracia e não do burossáurio concreto
que o atendeu! O preço do bacalhau é
duas vezes o da tabela? A culpa não é do comerciante que o vendeu, nem
do armazenista que o vendeu ao comerciante, é da inflação! Corrupção? Perguntem ao regime! Trabalho infantil? Levante-se a sociedade! Um grande e horrível crime? Notifiquem-se o
desemprego, os filmes de violência da TV, o Governo, quem quer que seja, menos
o criminoso!
A Sociologia, a Psicologia, a Psiquiatria, a Psicanálise, a Antropologia,
a Criminologia e todas as chamadas Ciências Humanas foram transformadas num
imenso alibi português para atirar com as responsabilidades de cada um de nós (e
de alguns deles) para as costas da abstracção mais à mão de semear. Somos
todos, afinal e sem excepção, vítimas de coisas e de circunstâncias do tipo das
que não se podem meter na cadeia e das a quem não se podem pedir contas; todos
somos vítimas: o motorista que bebeu dois litros de cerveja ao almoço e atirou
com o autocarro cheio de crianças pela ribanceira, a parteira que ficou a ver a
telenovela e se esqueceu do parto, o funcionário que só com o agradecimento, dentro do envelope
é que andou com o processo, o construtor civil que recrutou os operários na
pré-primária, o litigante que resolveu o litígio com uma enxada na cabeça do
vizinho e o desempregado que arranjou emprego a assaltar bombas de gasolina com
uma espingarda de canos serrados. Porque não há portugueses maus». In
Manuel António Pina, JN, 21 de Novembro de 1987.
In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia,
1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio & Alvim, Porto, 2013, ISBN
978-972-37-1684-9.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT