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Continua a alastrar o suborno. Aos vendidos chamava-se cristãos
«(…) Parecia que os Goverrradores só revelavam grande pressa e empenho em
cumprir a vontade das Cortes. Mas a verdadeira missão daqueles embaixadores era
outra, bem mais do interesse particular dos regentes altamente comprometidos na
sua manobra pró-castelhana. É que Cristovão Moura, já farto da timidez e da
inoperância dos Governadores seus cúmplices, propusera a seu régio amo publicar
as negociações secretas realizadas em vida do cardeal-rei. Seria um tremendo
escândalo que desvendaria aos portugueses até que ponto foram traídos pelos
seus dirigentes, entre os quais também se encontrava a maioria dos actuais
Defensores do Reino. Estes achavam-se aterrados. Não só perderiam os rendimentos
do negócio, mas também se arriscariam a perder a própria vida. Daí o mandarem
pedir particularmente ao rei católico, por intermédio desta embaixada, que os
poupasse a tanto perigo e vexame.
Claro que Filipe II manteve o segredo, não porque lhe custasse
sacrificar quem se lhe vendera, mas porque nisso estava acirna de tudo a sua
conveniência. T'alvez, pela primeira vez na sua vida, Cristóvão Moura desse a seu
amo uma sugestão desastrosa. Lá estava, porém, o frio e astuto monarca a evitar
o erro, que só o prejudicaria. Revelar que subornara dirigentes e pagara a
espiões equivaleria a perder o seu já tão débil prestígio ante o povo lusitano,
a quem ele prometia governar com humana generosidade e paternal benevolência.
Apesar da corrupção, ninguém ousava entregar o reino a Filipe II
Este breve período de mês e meio, entre a morte do cardeal-monarca e a
dissolução das Cortes, foi fértil em pequenos acontecimentos, que fervilharam como
que a denunciarem a alta ebulição a que se chegaria com o terçar das armas. O rei
católico querira preparar por todos os meios a fácil entrada dos seus
exércitos, pois estava persuadido de que não teria outra forma de apoderar-se
do apetecido trono lusitano. Não fora sem alguma hesitação que acabara por receber,
com aparente cortesia os embaixadores Manuel Melo e bispo de Coimbra que os
regentes lhe enviaram. É que, pensava ele, recebe-los na qualidade de
representantes diplomáticos equivalia a reconhecer a independência de um país
de que se considerava soberano. Significaria conceder, por inadvertência, uma
arma jurídica e política aos portugueses que se lhe opunham.
Para evitar a seu régio amo uma situação tão embaraçosa, ainda
Cristóvão Moura tentara convencer os regentes a sustar a partida da embaixada, ameaçando-os
com as iras de Filipe II. Os governadores, porém, apesar de aterrados, não o
atenderam, porque, por um lado, queriam fazer alguma coisa que persuadisse o
povo português de que estavam sinceramente decididos a defender a pátria, por
outro, porque desejavam obter do monarca espanhol a garantia de que não
divulgaria documentos que desmascarassem a sua venalidade. Já de Espanha,
mandaram-lhes dizer os enviados diplomáticos que o rei católico estava na disposição
de não os receber; os Governadores expediram-lhes ordens terminantes para que
insistissem em ser recebidos; precisavam absolutamente de obter essa efémera
vitória que passasse aos olhos do povo por um lampejo vivo da sua pureza
patriótica, lampejo que, afinal, se reduzia a um brilho fugaz de fogo-fátuo,
irradiado pela podridão da sua venalidade. Chegara-se quase a um rompimento
formal, que produziria, tanto nos embaixadores como nos regentes, o efeito de
uma catástrofe. Mas, por fim, para grande alívio dos subornados, decidiu-se
Filipe II a recebê-los, embalando-os em meras palavras de cortesia que em coisa
alguma o comprometiam. Os governadores cantaram vitória, embora soubessem que
apenas tinham obtido uma ilusão; a tal ilusão de que tanto necessitavam para deitar
poeira nos olhos da grei.
Tivera Filipe II aquela pequena transigência porque, nessa data, os
seus preparativos militares achavam-se praticamente concluídos. Se a força é
que ia ditar a lei, para que havia de preocupar-se com ninharias de etiquetas,
que só serviriam para irritar o ânimo de um povo, que ele desejava manter
sossegado, como que adormecido?
Não queria entrar em Portugal como conquistador. Ainda tivera esperança de que
os próprios governadores, sob o estímulo do ouro e o temor das ameaças de lhes
desmascararem a venalidades em que caíram como uma armadilha diabólica, o
proclamassem herdeiro da coroa. Mas, apesar de vendidos, apesar de
constantemente ameaçados pelos embaixadores castelhanos, eles não se
abalançavam a cometer acto de tanta audácia, que lhes poderia custar a vida. Mesmo
atascados na lama do suborno até as orelhas, esses portugueses venais não
chegaram à baixeza de entregar Portugal ao monarca que os enchia de ouro e
promessas. Embora muito débeis, uns restos de pudor ainda os impediam de descer
esse último degrau de ignomínia. Filipe II viu então que, se quisesse
apoderar-se do trono, teria de promover uma guerra de agressão, teria de
enveredar abertamente pelo caminho da violência, que o conduziria à perda das
razões jurídicas, embora com noventa e nove probabilidades contra uma de vencer».
In
Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição
da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.
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