quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O Regente Pedro. Príncipe Europeu. Mário José Domingues. «… teve uma conversa particular com o infante Henrique, então de dezoito anos, o mais novo dos três primeiros filhos de D. Filipa. Falou-lhe numa expedição a Ceuta. Ceuta?»

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A Ínclita Geração
«(…) Para distrair seus filhos e dar prazer à fidalguia do seu reino, pensou João I em organizar em Portugal uns luzidos torneios, com basta participação de campeões estrangeiros que por muito tempo recordassem esses festejos como a coisa mais bela de que houvesse memória. Seria um pretexto para armar solenemente cavaleiros os seus filhos Duarte, Pedro e Henrique. Supunha que eles iriam ficar maravilhados com esta ideia. Enganou-se, porém. Os rapazes queriam ganhar as suas esporas de ouro, ser armados cavaleiros, é certo, mas não numa lide em família, sob os olhares complacentes das damas, diante do palanquim engalanado, onde o pai, todo benevolência, cercado da corte embevecida, lhes concederia honras, que eles só entendiam por genuinamente merecidas, quando conquistadas com risco de sua vida ou ao preço do seu próprio sangue. Por um ideal bem diferente do de cavalaria medieva, que ainda animava a nova geração no primeiro quartel do século XV, a mentalidade burguesa dos governantes de então achava-se de acordo com os filhos do monarca. E assim se formou no seio da corte uma espécie de conjura benévola entre nobres e burgueses contra o comodismo um tanto ingénuo de João I.

A semente do ódio
Não era muito fácil tirar-se da cabeça do antigo mestre de Avis a ideia pueril dos torneios que ele vinha acarinhando com tanto enlevo. Os filhos, não a aceitando de boa mente, não se sentiam, entretanto, com coragem de tentar dissuadi-lo. Andavam desgostosos, e a sua contrariedade não passava despercebida aos conselheiros do monarca, a quem a ideia tão-pouco seduzia. O problema que mais os preocupava, o de dar uma tarefa de certo modo absorvente à juventude nobre, cuja idade rondava a dos infantes, não se resolveria com festejos mais ou menos vistosos, muito agradáveis, mas sem qualquer finalidade prática. Essas festas, em que haveria necessidade de fazer ostentação de riqueza, apenas serviriam para desfalcar o Tesouro, que, continuando uma velha tradição, não era dos mais desafogados. Extintos os últimos ecos dos combates na liça, das canções dos jograis na praça pública e das vozes maviosas dos trovadores nos paços régios, que ficaria à nação mais do que um vácuo no erário e na alma de uma mocidade, que tanto desejava realizar-se plenamente?
Os conselheiros de espírito prático, de mentalidade acentuadamente burguesa, esses, tinham uma ideia que se lhes afigurava muito mais vantajosa do que os festejos com que o monarca sonhava. Parece que essa ideia brotara da mente de João Afonso Azambuja, um dos homens que mais se esforçava, como João das Regras e Lourenço Vicente, arcebispo de Braga, por imprimir um rumo novo à barca do Estado, nessa época em que já se apercebiam os primeiros alvores da Renascença. Portugal, país de modestos recursos naturais, precisava de enriquecer. Limpo o seu território, primeiro, dos mouros, que por tantos séculos o ocuparam, depois, dos seus vizinhos castelhanos, que em vão intentaram submetê-lo, porque não ir bater o inimigo tradicional em sua própria casa?
Muito em segredo, os conselheiros vinham premeditando uma conquista, sem se atreverem a falar dela ao seu rei, que se mostrava cada vez mais satisfeito na sua inactividade. Decidiram então aproveitar-se do descontentamento dos infantes e, por intermédio deles, comover o coração do pai. João Afonso Azambuja teve uma conversa particular com o infante Henrique, então de dezoito anos, o mais novo dos três primeiros filhos de D. Filipa. Falou-lhe numa expedição a Ceuta. Ceuta? Esta cidade muçulmana tinha fama de fabulosamente rica e encontrava-se, por assim dizer, a dois passos, no Norte de África. O seu comércio de produtos, que recebia do Oriente e reexportava para a Europa, era considerável. Se fosse possível conquistar essa praça e fortificá-la, lograr-se-ia cravar uma lança cristã em território de infiéis e simultaneamente canalizar para Portugal o imenso rendimento do tráfego mercantil do seu porto. Transmitida por Henrique a ideia da expedição a Pedro e a Duarte, herdeiro do trono, os três irmãos sentiram-se empolgados. Tal empresa não podia ajustar-se melhor às suas vagas aspirações de acção, nem corresponder de maneira mais perfeita à ansiedade da nobreza, que dir-se-ia angustiada na sua ociosidade. Parecia impossível nunca lhes ter ocorrido esta ideia, que já se lhes afigurava tão simples. Conhecedores da predilecção que o pai experimentava por seu filho Henrique, foi este incumbido pelos outros dois irmãos de expor-lhe os seus desejos». In Mário Domingues, O Regente Pedro, Príncipe Europeu, Empresa Nacional de Publicidade, Colecção de História de Portugal, nº 7, Lisboa, 1964.

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