A Ínclita Geração
«(…) Para distrair seus filhos e dar prazer à fidalguia do seu reino,
pensou João I em organizar em Portugal uns luzidos torneios, com basta
participação de campeões estrangeiros que por muito tempo recordassem esses
festejos como a coisa mais bela de que houvesse memória. Seria um pretexto para
armar solenemente cavaleiros os seus filhos Duarte, Pedro e Henrique. Supunha
que eles iriam ficar maravilhados com esta ideia. Enganou-se, porém. Os rapazes
queriam ganhar as suas esporas de ouro, ser armados cavaleiros, é certo, mas
não numa lide em família, sob os olhares complacentes das damas, diante do
palanquim engalanado, onde o pai, todo benevolência, cercado da corte embevecida,
lhes concederia honras, que eles só entendiam por genuinamente merecidas,
quando conquistadas com risco de sua vida ou ao preço do seu próprio sangue. Por
um ideal bem diferente do de cavalaria medieva, que ainda animava a nova
geração no primeiro quartel do século XV, a mentalidade burguesa dos
governantes de então achava-se de acordo com os filhos do monarca. E assim se
formou no seio da corte uma espécie de conjura benévola entre nobres e
burgueses contra o comodismo um tanto ingénuo de João I.
A semente do ódio
Não era muito fácil tirar-se da cabeça do antigo mestre de Avis a ideia
pueril dos torneios que ele vinha acarinhando com tanto enlevo. Os filhos, não
a aceitando de boa mente, não se sentiam, entretanto, com coragem de tentar dissuadi-lo.
Andavam desgostosos, e a sua contrariedade não passava despercebida aos conselheiros
do monarca, a quem a ideia tão-pouco seduzia. O problema que mais os preocupava,
o de dar uma tarefa de certo modo absorvente à juventude nobre, cuja idade rondava
a dos infantes, não se resolveria com festejos mais ou menos vistosos, muito agradáveis,
mas sem qualquer finalidade prática. Essas festas, em que haveria necessidade
de fazer ostentação de riqueza, apenas serviriam para desfalcar o Tesouro, que,
continuando uma velha tradição, não era dos mais desafogados. Extintos os
últimos ecos dos combates na liça, das canções dos jograis na praça pública e
das vozes maviosas dos trovadores nos paços régios, que ficaria à nação mais do
que um vácuo no erário e na alma de uma mocidade, que tanto desejava realizar-se plenamente?
Os conselheiros de espírito prático, de mentalidade acentuadamente
burguesa, esses, tinham uma ideia que se lhes afigurava muito mais vantajosa do
que os festejos com que o monarca sonhava. Parece que essa ideia brotara da
mente de João Afonso Azambuja, um dos homens que mais se esforçava, como João
das Regras e Lourenço Vicente, arcebispo de Braga, por imprimir um rumo novo à
barca do Estado, nessa época em que já se apercebiam os primeiros alvores da
Renascença. Portugal, país de modestos recursos naturais, precisava de enriquecer.
Limpo o seu território, primeiro, dos mouros, que por tantos séculos o ocuparam,
depois, dos seus vizinhos castelhanos, que em vão intentaram submetê-lo, porque
não ir bater o inimigo tradicional em
sua própria casa?
Muito em segredo, os conselheiros vinham premeditando
uma conquista, sem se atreverem a falar dela ao seu rei, que se mostrava cada
vez mais satisfeito na sua inactividade. Decidiram então aproveitar-se do
descontentamento dos infantes e, por intermédio deles, comover o coração do
pai. João Afonso Azambuja teve uma conversa particular com o infante Henrique,
então de dezoito anos, o mais novo dos três primeiros filhos de D. Filipa.
Falou-lhe numa expedição a Ceuta. Ceuta?
Esta cidade muçulmana tinha fama de fabulosamente rica e encontrava-se, por
assim dizer, a dois passos, no Norte de África. O seu comércio de produtos, que
recebia do Oriente e reexportava para a Europa, era considerável. Se fosse
possível conquistar essa praça e fortificá-la, lograr-se-ia cravar uma lança
cristã em território de infiéis e simultaneamente canalizar para Portugal o
imenso rendimento do tráfego mercantil do seu porto. Transmitida por Henrique a
ideia da expedição a Pedro e a Duarte, herdeiro do trono, os três irmãos
sentiram-se empolgados. Tal empresa não podia ajustar-se melhor às suas vagas
aspirações de acção, nem corresponder de maneira mais perfeita à ansiedade da
nobreza, que dir-se-ia angustiada na sua ociosidade. Parecia impossível nunca lhes
ter ocorrido esta ideia, que já se lhes afigurava tão simples. Conhecedores da predilecção
que o pai experimentava por seu filho Henrique, foi este incumbido pelos outros
dois irmãos de expor-lhe os seus desejos». In Mário Domingues, O Regente Pedro,
Príncipe Europeu, Empresa Nacional de Publicidade, Colecção de História de
Portugal, nº 7, Lisboa, 1964.
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