Fabricador de instrumentos de
trabalho, de habitações, de culturas e sociedades, o homem é também agente
transformador da história. Mas qual será o lugar do homem na história e o da
história na vida do homem?
Prefácio
«(…) Todo o estudo histórico deve ou deveria começar por uma crítica
das fontes. O nosso estudo não transgredirá essa regra. Primeiro, são
indispensáveis algumas palavras para apresentat o autor, Jacques Fournier. O
autor... ou, pelo menos, a personagem responsável pelas nossas fontes
documenais. Fournier nasceu, ao que parece, durante a década de 1280, sem que se conheça a data precisa,
em Saverdun, no norte do condado de Foix (Ariège actual). Era filho
de camponês, de padeiro, ou de
moleiro? As profissões deste género que os seus biógrafos atribuirão a
seu pai talvez não sejam mais do que o fruto de uma imaginação sugestionada
pelo apelido Fournier. Uma certeza,
contudo: o nosso homem não é filho de
príncipe. É de origem basante humilde. A ponto de, tendo-se tornado papa,
mas consciente de mediocridade da sua linhagem, se recusar, diz-se, a dar a
sobrinha em casamento a um brilhante aristocrata que a queria para esposa: esta sela, dirá ele em occitânico
familiar não é digna de tal cavalo. A
família tem, no entanto, mesmo antes de Jacques Fournier, alguns episódios
marcantes de ascenção social: um dos tios, Arnaud Novel, é abade do mosteiro
cisterciense de Fontfroide. Encoraiado por este modelo, o jovem Fournier torna-se, também ele, monge cisterciense. Sobe durante algum tempo até ao Norte:
encontramo-lo como estudante, depois doutor, da Universidade de Paris. Em 1311, sucede ao seu parente: é
escolhido para abade de Fontfroide. Em 1317,
já conhecido pela sua erudição e pelo seu rigor, é nomeado bispo de Pamiers;
distingue-se, nesta nova função, pelas suas investidas inquisitoriais contra os
heréticos e outros espíritos divergentes. Na sua cidade episcopal, mantém relações
cordeais com os agentes do conde de Foix e do rei de França (é, até esta
altura da sua vida, pró-francês entre os Occitânicos). Em 1326, o papa. João XXII envia-lhe
felicitações pelo êxito dos seus esforços na caça aos heréticos, na região de
Pamiers, acompanhados por uma série de indulgências. A acção de Fournier na sua
diocese, não se limitou às perseguições contra as tendências heterodoxas. Ele
soube, também, tornar mais pesados os dízimos agrícolas; impôs dízimos sobre a
produção dos queijos, dos rábanos e dos nabos, de que até então eles estavam
dispensados.
Mas outros destinos esperavam o nosso homem. Em 1326, é nomeado bispo de Mirepoix, a
leste de Pamiers. Um biógrafo poderá perguntar-se se não estaremos perante um
caso de desfavor. Jacques Fournier tornou-se, de facto, odioso na sua anterior
diocese, por causa das suas investidas obsessivas, maníacas e eficazes contra todo
o género de suspeitos. Mas Mirepoix possui um número de paróquias maior do que
Pamiers: mais do que um desfavot, trata-se, ao que parece, de uma promoção relativamente
brilhante. É seguida de algumas outras, essas sim ofuscantes: em 1327, Jacques Fournier
torna-se cardeal. Em 1334, é eleito papa
de Avinhão, sob o nome de Bento XII. Elegestes um burro, teria ele dito,
com a sua modéstia habitual, aos grandes eleitores. No entanto, este homem modesto,
sob a tiara, mostra rapidamente as suas capacidades, que não são escassas.
Reage contra o nepotismo. Monge ascético, tenta moralizar as abadias. Intelectual
desajeitado e rude, consegue pouco em política estrangeira. Mas, no campo do
dogma, sente-se à vontade. Retoma as fantasias teológicas do seu antecessor João
XXII, relativas à visão beatífica após a morte. Quanto à Virgem, mostra-se maculista, por outras palavras, hostil à teoria (que mais tarde
triunfará) da imaculada conceição de Maria. As suas variadas intervenções em
matéria de dogma coroam uma longa caneira intelectual: ao longo da existência,
polemizou fortemente, e não sem conformismo, contra os mais diversos
pensadores, desde que lhe parecesse que se afastavam da ortodoxia romana.
Contra Joachim de Fiore, contra Maltre Eckart, contra Occam... Construtor,
Jacques Fournier inaugura na capital do condado Venaissin, a construção do
palácio dos papas; para a execução dos frescos, convida o pintor Simone Martini».
In
Emmanuel le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan de 1294 à 1324, Editions
Gallimard, 1975, Montaillou, Cátaros e Católicos numa aldeia francesa.
1294-1324, Edições 70, Lisboa.
Cortesia de Edições 70/JDACT