domingo, 27 de outubro de 2013

Cátaros e Católicos numa aldeia francesa. Montaillou. 1294-1324. Emmanuel le Roy Ladurie. «Em 1334, é eleito papa de Avinhão, sob o nome de Bento XII. ‘Elegestes um burro’, teria ele dito, com a sua modéstia habitual, aos grandes eleitores»

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Fabricador de instrumentos de trabalho, de habitações, de culturas e sociedades, o homem é também agente transformador da história. Mas qual será o lugar do homem na história e o da história na vida do homem?

Prefácio
«(…) Todo o estudo histórico deve ou deveria começar por uma crítica das fontes. O nosso estudo não transgredirá essa regra. Primeiro, são indispensáveis algumas palavras para apresentat o autor, Jacques Fournier. O autor... ou, pelo menos, a personagem responsável pelas nossas fontes documenais. Fournier nasceu, ao que parece, durante a década de 1280, sem que se conheça a data precisa, em Saverdun, no norte do condado de Foix (Ariège actual). Era filho de camponês, de padeiro, ou de moleiro? As profissões deste género que os seus biógrafos atribuirão a seu pai talvez não sejam mais do que o fruto de uma imaginação sugestionada pelo apelido Fournier. Uma certeza, contudo: o nosso homem não é filho de príncipe. É de origem basante humilde. A ponto de, tendo-se tornado papa, mas consciente de mediocridade da sua linhagem, se recusar, diz-se, a dar a sobrinha em casamento a um brilhante aristocrata que a queria para esposa: esta sela, dirá ele em occitânico familiar não é digna de tal cavalo. A família tem, no entanto, mesmo antes de Jacques Fournier, alguns episódios marcantes de ascenção social: um dos tios, Arnaud Novel, é abade do mosteiro cisterciense de Fontfroide. Encoraiado por este modelo, o jovem Fournier torna-se, também ele, monge cisterciense. Sobe durante algum tempo até ao Norte: encontramo-lo como estudante, depois doutor, da Universidade de Paris. Em 1311, sucede ao seu parente: é escolhido para abade de Fontfroide. Em 1317, já conhecido pela sua erudição e pelo seu rigor, é nomeado bispo de Pamiers; distingue-se, nesta nova função, pelas suas investidas inquisitoriais contra os heréticos e outros espíritos divergentes. Na sua cidade episcopal, mantém relações cordeais com os agentes do conde de Foix e do rei de França (é, até esta altura da sua vida, pró-francês entre os Occitânicos). Em 1326, o papa. João XXII envia-lhe felicitações pelo êxito dos seus esforços na caça aos heréticos, na região de Pamiers, acompanhados por uma série de indulgências. A acção de Fournier na sua diocese, não se limitou às perseguições contra as tendências heterodoxas. Ele soube, também, tornar mais pesados os dízimos agrícolas; impôs dízimos sobre a produção dos queijos, dos rábanos e dos nabos, de que até então eles estavam dispensados.
Mas outros destinos esperavam o nosso homem. Em 1326, é nomeado bispo de Mirepoix, a leste de Pamiers. Um biógrafo poderá perguntar-se se não estaremos perante um caso de desfavor. Jacques Fournier tornou-se, de facto, odioso na sua anterior diocese, por causa das suas investidas obsessivas, maníacas e eficazes contra todo o género de suspeitos. Mas Mirepoix possui um número de paróquias maior do que Pamiers: mais do que um desfavot, trata-se, ao que parece, de uma promoção relativamente brilhante. É seguida de algumas outras, essas sim ofuscantes: em 1327, Jacques Fournier torna-se cardeal. Em 1334, é eleito papa de Avinhão, sob o nome de Bento XII. Elegestes um burro, teria ele dito, com a sua modéstia habitual, aos grandes eleitores. No entanto, este homem modesto, sob a tiara, mostra rapidamente as suas capacidades, que não são escassas. Reage contra o nepotismo. Monge ascético, tenta moralizar as abadias. Intelectual desajeitado e rude, consegue pouco em política estrangeira. Mas, no campo do dogma, sente-se à vontade. Retoma as fantasias teológicas do seu antecessor João XXII, relativas à visão beatífica após a morte. Quanto à Virgem, mostra-se maculista, por outras palavras, hostil à teoria (que mais tarde triunfará) da imaculada conceição de Maria. As suas variadas intervenções em matéria de dogma coroam uma longa caneira intelectual: ao longo da existência, polemizou fortemente, e não sem conformismo, contra os mais diversos pensadores, desde que lhe parecesse que se afastavam da ortodoxia romana. Contra Joachim de Fiore, contra Maltre Eckart, contra Occam... Construtor, Jacques Fournier inaugura na capital do condado Venaissin, a construção do palácio dos papas; para a execução dos frescos, convida o pintor Simone Martini». In Emmanuel le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan de 1294 à 1324, Editions Gallimard, 1975, Montaillou, Cátaros e Católicos numa aldeia francesa. 1294-1324, Edições 70, Lisboa.

Cortesia de Edições 70/JDACT