Cortesia
de wikipedia e jdact
«O
dado de provocação desta pergunta ainda se faz presente, passados dez anos da
sua morte (1930-2004). A escritora, poeta e teatróloga, nascida em Jaú, São
Paulo, ganha nestes últimos tempos uma nova leitura e um interesse crescente
pela sua obra. Teria escrito para quem? Queixava-se desde os anos 1970 da falta
de leitores dos seus textos. Teria Hilda Hilst escrito para os leitores de nossa época? Leitores curiosos
e abertos aos temas de sua estranha forma? Leitores que não mais se enrubescem
ante os despudores das suas personagens? O facto é que há leitores que não têm
medo de percorrer o impasse que a literatura oferece no seu insistente renascer
de formas e temas. Os que enfrentam o jogo fornecido pela escritora absorvem e
revolvem esse universo do sacro e metafísico, do erótico e pornográfico, do
combativo discurso político e social, do amoroso e sublime desejo da morte.
Em torno de Hilda Hilst é um livro que se situa no panorama da
leitura atenta, sensível e curiosa da obra da autora. Reunimos aqui
pesquisadores da obra de Hilda Hilst, do Brasil e do exterior, amantes dessa
chama inquieta que é o texto literário que a escritora paulista tão bem soube
manter quente e acesa ao longo dos quarenta e sete anos de trabalho exclusivo
com a literatura. Vários olhares e vários enfoques acendem a chama da palavra
em lança, em jogo perpétuo com a linguagem, com o objectivo único de descobrir
como se encena a performance
do discurso da obra de Hilda, que, no seu trajecto tenso e violento,
sublime e erótico, desafia tanto os trabalhos de tradução, como os trabalhos
críticos que se submetem aos interstícios da sua linguagem. Lembremo-nos aqui
do primeiro poema de Prelúdios,
intensos para os desmemoriados do amor. Hilda Hilst, nesse poema,
oferece--nos um corpo. Um corpo de desejos e procuras. De dentro dele, do
poema-corpo, emerge uma voz que convida: toma-me. E o poema se entrega como num
jogo de sensações e trocas: toma-me / Crava a tua mão, respira meu sopro,
deglute / Em cadência minha escura agonia. Mas enquanto caminhas / Em lúcida
altivez, eu já sou o passado. [...] / Passeia / Sobre mim, amor, e colhe o que
me resta: / Nocturno girassol. Rama secreta.
Passeamos. Tateamos esse corpo.
De dentro e no entorno. E eis que o livro nasce a tantas mãos e tantos olhares
e vozes. Nasce com um desejo, o de descobrir a persona ou as várias personas que habitam a lírica de Hilda Hilst. E,
ainda, nasce com o desejo de explorar na linguagem de sua narrativa esse lado
do obsceno e do inviolável, da ironia e do desmascarar, do erudito e do popular
que tão bem soube articular como um repertório cultural rico para a sua obra. Os
capítulos a que o leitor se lançará a partir daqui procuram situar-se na obra
de Hilda Hilst a partir de um ponto de vista estratégico.
O objectivo de cada um é de levar
o leitor a, conjuntamente com os autores, perscrutar o olhar crítico que
desenha as formas do texto hilstiano, no seu ondular dramático e erótico do
discurso, presente na sua produção tanto teatral quanto narrativa; na natureza
vitimológica de sua poesia lírica e suas entranhas discursivas que se desdobram
e se exploram intertextualmente. Até as suas crónicas são objecto de leitura,
evidenciando nelas o lado humorístico que tão bem Hilda Hilst soube cultivar.
Nada nela era para ser levado a sério. Ou antes, tudo era feito dentro da
seriedade com que a literatura se busca num incessante renascer de si mesma,
pelo esgotamento que logo percebe nas suas rotas.
As vozes que o leitor ouvirá
serão múltiplas, cada uma explorando o diapasão acústico das demais vozes que
emergem dos Contos d’escárnio,
por exemplo, no desafio que impõem à sua tradução para o inglês. Como
compreender os caracteres chineses que acompanham os poemas de Sobre a tua grande face, como
traduzi-los na sua presença visual concisa contrastada com o verbal solene dos versos?
Outro percurso na obra de Hilda Hilst é de suas intestinações, seus espaços de
gruta e intimidade lodosa, onde o grotesco e o patético emergem numa linguagem
sem pudores. Um modo de ser do sujeito do discurso que revela o humano sob a
pele do bicho que habita o homem. Um modo de ser que se revela na linguagem e
na cena aberta. O gesto sacrificial e maldito é objecto dos capítulos que se
lançam nas sendas desse elemento nocturno e místico, mas tão verdadeiramente
sincero na sua projecção lírica que qualquer leitor de Hilda Hilst se vê à
mercê da sua palavra. Assim são as análises que se inserem no corpo de Fluxo-floema,
nos interstícios de Poemas malditos,
gozosos e devotos, nos mistérios que envolvem a morte e a dimensão
orgiástica da vida, o erotismo e a libidinagem, em textos como O caderno rosa de Lori Lamby, A obscena senhora D e Da morte. Odes mínimas, por
exemplo.
O erotismo na obra de Hilda Hilst
não se oferece somente nas referências ao corpo ou nas intenções do enunciador
do discurso, ou no jogo enunciativo com a figura de um deus para quem se lança
como desejo, como escravo, como dominador. O erotismo na obra de Hilda Hilst
habita a linguagem, no seu jogo linguístico, quase carnal com a palavra que vai
se despindo e se experimentando, sendo autorreferencializada pelo discurso». In Nilze
Maria Azevedo Reguera Susanna Busato, Em Torno de Hilda Hilst, Editora UNESP,
2015, ISBN 978-856-833-469-0.
Editora UNESP/JDACT