Cortesia
de wikipedia e jdact
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destas cidades restará o vento que as atravessa… In Bertolt Brecht
Parma.
1248
«A
mulher estava caída de costas. A veste, repuxada até ao seio, deixava descoberto
o ventre; as tiras da camisola, rasgada no meio, pendiam dos lados das coxas
abertas. O armeiro atou de novo os calções na cintura e encarou-a. Os olhos aterrorizados
que o fitaram provocaram-lhe nova comichão na virilha, mas só por um instante.
Ele puxou o punhal do gibão, agarrou a mulher pelos cabelos e lhe cortou a garganta.
Por um momento longuíssimo, um gorgolejo horrível encheu a saleta de estudos, e
depois veio o silêncio. A cabeça da jovem sarracena tombou para trás e do talho
no pescoço o sangue começou a jorrar em golfadas sobre o pavimento. O homem
limpou a lâmina na veste da mulher e deu uma risadinha de escárnio: logo ele,
um humilde armeiro de Parma, matara a pu… do imperador! Assim que toda aquela
história acabasse, começaria a se vangloriar na estalagem, explicando como se
servira dela antes de degolá-la. Até enriqueceria a narrativa com todos os detalhes
truculentos que conseguisse inventar, e seus comparsas de bebedeira ficariam
embasbacados. Recobrou-se dessa fantasia. Tinha de executar a tarefa que lhe
fora atribuída e devia fazer isso de imediato, já perdera tempo demais.
Travou a porta atrás de si e
observou atentamente o local: uma escrivaninha de cavaletes e um assento de
viagem estavam encostados à parede. Um pouco adiante, semioculto por uma
cortina de couro lavrado que pendia da trave do forro, havia um cofre de prata
maciça. Experimentou a tampa: estava trancada. Soltou uma imprecação. Onde
diabos estaria a chave? Estava ali, em algum lugar, ou Frederico a levara
consigo ao deixar o acampamento? A escrivaninha era desprovida de gaveta e
sobre o tampo havia apenas um tinteiro, uma pena de ganso e um pergaminho
raspado várias vezes. De chave, nem sombra. Devia procurá-la. Olhou ao redor.
Logo atrás de uma baixa divisória de madeira entalhada com motivos
espiraliformes, entrevia-se um leito. Contornado o biombo, ele agarrou o colchão
de plumas e manteve-o levantado com o braço esquerdo, enquanto, com a mão
direita, vasculhava o estrado de madeira subjacente. Depois de apalpar quase todas
as tábuas, os seus dedos perceberam, ao longo de uma fissura, uma trouxinha de pano.
Pegou-a e abriu-a: no meio do tecido apareceu a chave.
Exultante, virou-se e a inseriu
na fechadura. O cofre abriu. No fundo, jazia uma sacola de couro. Nada mais. Tirou-a,
desatou rapidamente os cordões e fez deslizar para fora o que ela continha. Quando
a sua mente compreendeu o significado daquilo que os seus olhos fitavam, brotou-lhe
da garganta um grito de júbilo. Ali estavam os pergaminhos! Excitado,
ajoelhou-se e apoiou-os sobre o pavimento, começando a percorrer apressadamente
as folhas. No primeiro, a letra inicial do texto era decorada com uma figura
humana envolta em vermelho. Um friso, azul como a esfera na qual estava pintada
a imagem e pontilhado por arabescos dourados, corria ao lado das duas colunas
de texto e emoldurava toda a página: as dez folhas que se seguiam eram cobertas
de linhas redigidas com tinta preta. O armeiro não sabia ler, mas podia apostar
que aquele era de facto o tratado escrito por Frederico. Os pergaminhos
mantidos sob chave e a imagem miniaturada convenceram-no de que havia
finalmente encontrado o tesouro que lhe haviam pedido para roubar.
Repôs o livro na sacola, fechou-a
e atou os cordões ao seu cinto. Do pavimento onde o jogara, recolheu o manto e
o envolveu em torno do corpo. Em seguida, após lançar uma última olhadela
distraída ao cadáver da sarracena, aproximou-se da soleira da saleta e encostou
o ouvido à porta: do corredor não provinha nenhum ruído. Abriu-a e, em passos
amortecidos, enveredou pela escada de madeira. No vestíbulo não havia ninguém. Deslizando
silencioso pela penumbra, alcançou o portal e saiu, cauteloso. A fumaça do incêndio
lhe cortou a respiração. Das ruínas dos alojamentos militares que até à véspera
haviam abrigado o exército do imperador ainda se erguiam delgadas línguas de
fogo que aos poucos iam se apagando. Abafados pela distância, mas claramente
distinguíveis, do fundo do campo chegavam até ali os barridos (som dos
elefantes) e rugidos dos animais exóticos aprisionados no cercado. Surdos àqueles
sons terrificantes, grupos de homens e mulheres circulavam pelo acampamento.
Agitados,
saltavam os cadáveres dos guardas imperiais e, com gestos febris, remexiam os
destroços. De vez em quando, aqui e ali subia um grito de exultação e alguém
partia correndo, apertando ao peito um vaso, uma garnacha de petigris, um alforje
cheio. Esfregando os olhos lacrimejantes pela fumaça, o armeiro examinou o
campo. Estava coberto de cadáveres. Moveu-se às pressas, serpenteando por
aquele amontoado de corpos. O seu pé bateu num joelho ainda coberto pela
perneira. Com um estalido, o membro se desprendeu de chofre, revelando a enorme
poça de sangue que se espalhava pelo terreno. O armeiro escorregou sobre aquela
massa viscosa e caiu de bruços, indo parar em cima do morto: pela viseira
aberta do elmo, dois olhos cegos o fitavam, ainda arregalados numa expressão de
terror». In Valeria Montaldi, O Manuscrito do Imperador, 2008, Grupo Editorial
Record, 2011, ISBN 978-850-108-703-4.
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