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sexta-feira, 31 de março de 2023

No 31. A Ilha Debaixo do Mar. Isabel Allende. «Os seus visitantes passavam uma ou duas semanas no rústico casarão de madeira, a empanzinar-se com a vida de campo e a apreciar de perto a mágica invenção do açúcar»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Os grands blancs, proprietários de outras plantações, consideravam-no um presumido que não duraria muito na ilha; por isso, ficaram assombrados por vê-lo com as botas enlameadas e queimado pelo sol. A antipatia era mútua. Para Valmorain, aqueles franceses transplantados para as Antilhas eram uns parolos, o oposto da sociedade que ele tinha frequentado, onde se exaltava as ideias, as ciências e as artes, e ninguém falava de dinheiro nem de escravos. Da idade da razão, em Paris, passou a afundar-se num mundo primitivo e violento, onde os vivos e os mortos andavam de mão dada. Também não fez amizade com os petits blancs, cujo único capital era a cor da pele, uns pobres diabos empeçonhados pela inveja e a maledicência, como ele dizia. Tinham vindo dos quatro pontos cardeais e não havia maneira de averiguar a pureza do seu sangue ou o seu passado. No melhor dos casos, eram comerciantes, artesãos, frades de pouca virtude, marinheiros, militares e funcionários menores, mas também havia meliantes, chulos, criminosos e corsários que utilizavam cada recanto do Caribe para as suas canalhices. Ele não tinha nada em comum com essa gente.

Entre os mulatos livres ou affranchis existiam mais de sessenta classificações segundo a percentagem de sangue branco, que determinava o seu nível social. Valmorain nunca conseguiu distinguir os tons nem aprender a denominação de cada combinação das duas raças. Os affranchis não dispunham de poder político, mas movimentavam muito dinheiro; por isso, os brancos pobres odiavam-nos. Alguns ganhavam a vida com tráficos ilícitos, desde o contrabando à prostituição, mas outros tinham sido educados em França e possuíam fortuna, terras e escravos.

Acima das subtilezas da cor, os mulatos estavam unidos pela sua aspiração comum de passar por brancos e o seu desprezo visceral pelos negros. Os escravos, cujo número era dez vezes maior do que o dos brancos e affranchis juntos, não contavam para nada, nem no censo da população, nem na consciência dos colonos. Uma vez que não lhe convinha isolar-se por completo, Toulouse Valmorain frequentava, de vez em quando, algumas famílias de grands blancs em Le Cap, a cidade mais próxima da sua plantação. Nessas viagens, comprava o necessário para se abastecer e, se não o podia evitar, passava pela Assembleia Colonial para cumprimentar os seus pares, assim não esqueceriam o seu apelido, mas não participava nas sessões. Também aproveitava para ver comédias no teatro, assistir a festas das cocotes, as exuberantes cortesãs francesas, espanholas e de raças misturadas que dominavam a vida nocturna, e conviver com exploradores e cientistas que se detinham na ilha, de passagem para outros sítios mais interessantes. Saint-Domingue não atraía visitantes, mas às vezes chegavam alguns para estudar a Natureza ou a economia das Antilhas, que Valmorain convidava para Saint-Lazare com a intenção de recuperar, ainda que brevemente, o prazer da conversação elevada que tinha ilustrado os seus tempos de Paris. Três anos depois da morte do pai, podia mostrar-lhes a propriedade com orgulho; transformara aquele destroço de negros doentes e canaviais secos numa das plantações mais prósperas entre as oitocentas da ilha, multiplicara por cinco o volume de açúcar por refinar para exportação e instalara uma destilaria onde produzia selectas barricas de um rum muito mais fino do que o que era costume beber-se. Os seus visitantes passavam uma ou duas semanas no rústico casarão de madeira, a empanzinar-se com a vida de campo e a apreciar de perto a mágica invenção do açúcar. Passeavam a cavalo por entre os densos pastos que assobiavam, ameaçadores, pela brisa, protegidos do sol por grandes chapéus de palha e a bocejar na humidade a ferver do Caribe, enquanto os escravos, como sombras afiadas, cortavam as plantas rente à terra sem matar a raiz, para que houvesse outras colheitas». In Isabel Allende, A Ilha Debaixo do Mar, 2009, Porto Editora, 2015, ISBN 978-972-001-948-6.

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, Isabel Allende, Literatura, Arte, 

sábado, 9 de outubro de 2021

A Casa dos Espíritos. Isabel Allende. «Nessa Quinta-Feira Santa, Severo passeava pela sala preocupado com o escândalo que a filha tinha dado na missa. Argumentava que só um fanático…»

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«(…) Estas palavras do padre Restrepo permaneceram na memória da família com o peso de um diagnóstico e, nos anos seguintes, tiveram ocasião de as recordar variadas vezes. A única que não voltou a pensar nelas foi a própria Clara, que se limitou a anotá-las no seu diário para logo as esquecer. Os pais, em contrapartida, não puderam ignorá-las, apesar de concordarem que a possessão demoníaca e a soberbia eram dois pecados demasiado grandes para uma criança tão pequena. Temiam a maldição do povo e o fanatismo do padre Restrepo. Até esse dia, não tinham posto nome às excentricidades da filha mais nova nem as haviam relacionado com influências satânicas. Tomavam-nas como uma característica da menina, como o coxear era a de Luís e a beleza a de Rosa. Os poderes mentais de Clara não causavam incómodo a ninguém e não produziam desordem de maior; manifestavam-se quase sempre em assuntos de pouca importância e na estrita intimidade do lar. Algumas vezes, à hora da refeição, quando estavam todos reunidos na grande sala de jantar da casa, sentados em absoluta ordem de dignidade e hierarquia, o saleiro começava a vibrar e deslocava-se depois pela mesa fora entre copos e pratos, sem ter havido para isso nenhuma fonte de energia conhecida nem truque de ilusionista. Nívea dava um puxão às tranças de Clara e com esse sistema conseguia que a filha abandonasse a distracção lunática e devolvesse a normalidade ao saleiro, que acabava por recuperar a imobilidade. Os irmãos tinham-se organizado para que, no caso de haver visitas, aquele que estivesse mais perto deter com a mão o que estivesse andando sobre a mesa antes que os estranhos dessem conta disso e apanhassem um susto. A família continuava a comer sem comentários. Também se tinham habituado aos presságios da irmã mais nova. Ela anunciava os tremores de terra com alguma antecipação, o que resultava muito útil naquele pais de catástrofes, porque dava tempo de pôr a salvo a baixela e deixar ao alcance da mão as pantufas para sair noite dentro. Aos seis anos Clara previu que o cavalo havia de deixar cair Luís, este negou-se a dar-lhe ouvidos e desde então tinha um quadril deslocado. Com o tempo, encurtou-se-lhe a perna esquerda e teve de usar um sapato especial com uma grande sola que ele próprio fabricava. Nessa ocasião Nívea inquietou-se, mas a Ama tranquilizou-a dizendo que há muitos meninos que voam como as moscas, que adivinham os sonhos e falam com as almas, mas que tudo isso lhes passa quando perdem a inocência.

Nenhum chega a grande nesse estado, explicou. Espere que à menina lhe chegue a demonstração e vai ver que perde a mania de andar a mover os móveis e a anunciar desgraças. A Ama preferia Clara. Tinha-a ajudado a nascer e era a única pessoa que compreendia a natureza extravagante da menina. Quando Clara saiu do ventre da mãe, a Ama embalou-a, lavou-a e desde esse momento amou desesperadamente a frágil criança com os pulmões cheios de expectoração, sempre à beira de perder o alento e pôr-se roxa, que tinha feito reviver com o calor dos seus grandes peitos quando lhe faltava o ar, porque sabia que era esse o único remédio para a asma, muito mais eficaz que os folhados aguardentados do doutor Cuevas.

Nessa Quinta-Feira Santa, Severo passeava pela sala preocupado com o escândalo que a filha tinha dado na missa. Argumentava que só um fanático como o padre Restrepo podia acreditar em possessos em pleno século vinte, o século das luzes, da ciência e da técnica, no qual o demónio tinha ficado definitivamente desprestigiado. Nívea interrompeu-o para dizer que não era essa a questão. O que era grave é que, se as proezas da filha transcendiam as paredes da casa e o padre começava a investigar, toda a gente iria saber. Vai começar a chegar gente para a ver como se ela fosse um fenómeno, disse Nívea. E o Partido Liberal vai para o car…, rematou Severo, que via o prejuízo que podia ser para a sua carreira política ter uma possessa na família. Estavam nisto quando chegou a Ama arrastando as chinelas, com o frufru de saiotes engomados, a anunciar que no pátio estavam uns homens a descarregar um morto. Assim era. Entraram com uma carroça de quatro cavalos, ocupando todo o primeiro pátio, pisando as camélias e sujando de trampa o empedrado reluzente, num turbilhão de pó, num empinar de cavalos e maldições de homens supersticiosos que faziam gestos contra o mau olhado. Traziam o cadáver do tio Marcos com toda a sua bagagem. Aquele tumulto era dirigido por um homenzinho melífluo, vestido de negro, de labita e chapéu demasiado grande, que iniciou um discurso solene para explicar as circunstâncias do caso, mas que foi brutalmente interrompido por Nívea, que se lançou sobre o ataúde empoeirado que continha os restos do seu irmão mais querido. Nívea gritava que abrissem a tampa, para o ver com os próprios olhos. Já em ocasião anterior havia sido encarregada de o enterrar, e por isso mesmo tinha o direito de duvidar que dessa vez fosse verdadeira a sua morte. Os seus gritos atraíram a multidão de criados da casa e todos os filhos, que acudiram correndo ao ouvir o nome do tio pronunciado com lamentações de luto». In Isabel Allende, A Casa dos Espíritos, 1982, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-445-7.

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, Isabel Allende, Literatura, O Saber,

A Casa dos Espíritos. Isabel Allende. «Pst! Padre Restrepo! Se o conto do inferno for pura mentira chateamo-nos... O dedo indicador do jesuíta…»

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«(…) Rosa, no entanto, não tinha pressa em casar-se, quase esquecera o único beijo que haviam trocado na despedida e também a cor dos olhos desse noivo tenaz. Por influência das novelas românticas, que eram a sua única leitura, gostava de o imaginar com botas de cabedal, a pele queimada pelos ventos do deserto, cavando a terra em busca de tesouros de piratas, dobrões espanhóis e jóias dos Incas, e era inútil que Nívea a tentasse convencer de que as riquezas das minas estavam metidas nas pedras, porque para Rosa era impossível que Esteban Trueba recolhesse toneladas de penhascos na esperança de que, ao submetê-los a iníquos processos crematórios, cuspissem um grama de ouro. Entretanto, esperava por ele sem se aborrecer, imperturbável na gigantesca tarefa que tinha imposto a si própria: bordar a toalha maior do mundo. Começou com cães, gatos e borboletas, mas logo a fantasia se apoderou do seu trabalho e foi surgindo um paraíso de animais impossíveis que nasciam da agulha em frente dos olhos preocupados do pai. Severo considerava que era tempo da filha sair da modorra e de ter os pés assentes na terra, de aprender algumas tarefas domésticas e preparar-se para o matrimónio, mas Nívea não compartilhava dessa inquietação. Preferia não atormentar a filha com exigências terrenas, pois pressentia que Rosa era um ser celestial, que não tinha sido feito para durar muito tempo no bulício grosseiro deste mundo, por isso deixava-a em paz com os seus fios de bordar e não comentava aquele jardim zoológico de pesadelo.

Uma barba do espartilho de Nívea quebrou-se, cravando-se-lhe uma ponta entre as costelas. Sentia-se sufocar dentro do vestido de veludo azul, com a gola de renda demasiado alta, as mangas muito estreitas, a cintura tão apertada que, quando tirava o cinto, passava uma boa meia hora com retorcidelas de barriga até as tripas se acomodarem na sua posição normal. Tinham discutido isso muitas vezes, ela e as amigas sufragistas, e haviam chegado à conclusão de que, enquanto as mulheres não encurtassem as saias e o cabelo e não despissem os saiotes, tudo ficava na mesma, mesmo que pudessem estudar medicina ou tivessem direito a voto, porque de modo algum teriam coragem de o fazer; ela própria não tinha coragem para ser das primeiras a abandonar a moda. Notou que a voz da Galiza tinha deixado de martelar-lhe o cérebro. Estava numa dessas grandes pausas do sermão que o padre empregava com frequência, por conhecer bem o efeito de um silêncio incómodo. Os seus olhos ardentes aproveitavam esses momentos para observar os paroquianos um por um. Nívea largou a mão de Clara e procurou um lenço na manga para enxugar uma gota de suor que lhe escorria pelo pescoço. O silêncio tornou-se pesado, o tempo pareceu parar dentro da igreja, mas ninguém se atreveu a tossir ou a ajeitar-se no banco, para não atrair a atenção do padre Restrepo. As suas últimas frases ainda vibravam entre as colunas.

E nesse momento, como Nívea recordou anos mais tarde, no meio da ansiedade e do silêncio, ouviu-se com toda a nitidez a voz da pequena Clara: Pst! Padre Restrepo! Se o conto do inferno for pura mentira chateamo-nos... O dedo indicador do jesuíta, que já estava no ar para assinalar novos suplícios, ficou suspenso como um pára-raios sobre a sua cabeça. As pessoas deixaram de respirar e os que estavam cabeceando acordaram. Os esposos del Valle foram os primeiros a reagir ao sentir que o pânico os invadia e ao ver que os filhos começavam a agitar-se nervosos. Severo compreendeu que devia actuar antes que rebentasse o riso geral ou se desencadeasse algum cataclismo celestial. Pegou na mulher pelo braço e em Clara pelo pescoço e saiu arrastando-as a grandes passadas, seguido pelos outros filhos, que se precipitaram em tropel para a porta. Conseguiram sair antes que o sacerdote pudesse invocar um raio que os transformasse em estátuas de sal, mas do umbral da porta ouviram a sua terrível voz de arcanjo ofendido: Endemoninhada! Soberba endemoninhada!» In Isabel Allende, A Casa dos Espíritos, 1982, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-445-7.

Cortesia de PEditora/JDACT

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sexta-feira, 10 de setembro de 2021

A Casa dos Espíritos. Isabel Allende. «A sua estranha beleza de uma qualidade perturbadora, à qual nem ela escapava, parecia fabricada de material diferente do da raça humana»

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«(…) Nívea e Severo ocupavam com os filhos toda a terceira fila de bancos. Clara sentava-se ao lado da mãe. Esta apertava-lhe a mão com impaciência quando o discurso do sacerdote se estendia demasiado pelos pecados da carne, porque sabia que isso levaria a pequena a imaginar aberrações que iam para lá da realidade, como era evidente pelas perguntas que fazia e a que ninguém sabia responder. Clara era muito precoce e tinha a transbordante imaginação herdada, via materna, por todas as mulheres da família. A temperatura da igreja aumentara e o cheiro penetrante das velas, do incenso e da multidão apinhada contribuiu para a fadiga de Nívea. Queria que a cerimónia terminasse de vez para regressar à frescura da sua casa, sentar-se no corredor dos fetos e saborear o refresco de orchata que a Ama preparava nos dias de festa. Olhou os filhos, os mais pequenos estavam cansados, rígidos na roupa domingueira e os mais velhos começavam a ficar distraídos. Poisou os olhos em Rosa, a mais velha das filhas vivas, e, como sempre, ficou surpreendida. A sua estranha beleza de uma qualidade perturbadora, à qual nem ela escapava, parecia fabricada de material diferente do da raça humana. Nívea soube que ela não era deste mundo ainda antes de a dar à luz porque a viu em sonhos, por isso não se surpreendeu quando a parteira deu um grito ao vê-la. Ao nascer, Rosa era branca, lisa, sem rugas, como uma boneca de louça, com o cabelo verde e os olhos amarelos, a criatura mais formosa que tinha nascido na terra desde os tempos do pecado original, como disse a parteira benzendo-se. Desde o primeiro banho, a Ama lavou-lhe o cabelo com infusão de camomila, que lhe enfraqueceu a cor, dando-lhe tonalidades de bronze velho, e punha-a nua ao sol, para fortalecer a pele, translúcida nas zonas mais delicadas do ventre e das axilas, onde se adivinhavam as veias e a textura secreta dos músculos. Aqueles passes de cigana, no entanto, não foram suficientes e depressa correu o boato que tinha nascido um anjo. Nívea esperou que as ingratas fases do crescimento dessem à sua filha algumas imperfeições, mas nada disso aconteceu, bem pelo contrário, aos dezoito anos Rosa não engordara e não lhe tinham rebentado borbulhas, mas havia acentuado, isso sim, a sua graça marítima. O tom da pele, com reflexos azulados, e o do cabelo, a lentidão dos movimentos e o caracter silencioso evocavam um habitante aquático. Tinha qualquer coisa de peixe e se tivesse uma cauda com escamas seria certamente uma sereia, mas as suas pernas punham-na no limite impreciso entre a criatura humana e o ser mitológico. Apesar de tudo, a jovem fizera uma vida quase normal, tinha um noivo e um dia havia de casar-se, passando dessa maneira a responsabilidade da sua formosura para outras mãos. Rosa inclinou a cabeça e um raio filtrou-se pelos vitrais da igreja, dando-lhe uma halo de luz ao perfil. Algumas pessoas voltaram-se para a ver e cochicharam, como frequentemente sucedia, mas Rosa parecia não dar por nada, era imune à vaidade e nesse dia estava mais ausente que de costume, imaginando novos animais para bordar na sua toalha, metade pássaros, metade mamíferos, cobertos de plumas matizadas e providos de corn… e cascos, tão gordos e com asas tão curtas que desafiavam as leis da biologia e da aerodinâmica. Raras vezes pensava no noivo, Esteban Trueba, não por falta de amor, mas por temperamento esquecedor, e porque dois anos de separação são grande ausência. Ele trabalhava nas minas do Norte. Escrevia-lhe metodicamente e Rosa respondia-lhe de vez em quando, mandando-lhe versos copiados e desenhos de flores a tinta-da-china, em papel de pergaminho. Através dessa correspondência, que Nívea violava regularmente, inteirou-se dos sobressaltos do oficio de mineiro, sempre ameaçado por derrocadas, perseguindo veios fugidios, pedindo créditos por conta da boa sorte, acreditando que acabaria por aparecer um maravilhoso filão de ouro, que lhe permitiria fazer rápida fortuna e regressar para levar Rosa de braço dado ao altar, tornando-se assim o homem mais feliz do universo, como dizia sempre no fim das cartas». In Isabel Allende, A Casa dos Espíritos, 1982, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-445-7.

Cortesia de PEditora/JDACT

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quinta-feira, 9 de setembro de 2021

A Casa dos Espíritos. Isabel Allende. «Levado pelo entusiasmo do seu zelo vocacional, o sacerdote tinha de conter-se para não desobedecer declaradamente às instruções dos superiores eclesiásticos, sacudidos por ventos de modernismo…»

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«Barrabás chegou à família por via marítima, anotou a menina Clara com a sua delicada caligrafia. Já nessa altura tinha o hábito de escrever as coisas importantes e, mais tarde, quando ficou muda, escrevia também as trivialidades, sem suspeitar que cinquenta anos depois os seus cadernos me iriam servir para resgatar a memória do passado e sobreviver ao meu próprio espanto. O dia em que chegou Barrabás era Quinta-Feira Santa.

Vinha numa jaula indigna, coberto dos próprios excrementos e de urina, com um olhar extraviado de preso miserável e indefeso, adivinhando-se, porém, pelo porte real da cabeça e pelo tamanho do esqueleto o gigante lendário que veio a ser. Era um dia aborrecido e outonal, que em nada fazia imaginar os acontecimentos que a menina registou para serem recordados e que ocorreram durante a missa das doze, na paróquia de San Sebastián, à qual assistiu com toda a família. Em sinal de luto, os santos estavam tapados com panos roxos que as beatas sacudiam anualmente do arcaz da sacristia e, por baixo dos lençóis de luto, a corte celestial parecia um amontoado de móveis esperando mudança, sem que as velas, o incenso ou os gemidos do órgão pudessem contrastar com esse lamentável efeito. Erguiam-se vultos ameaçadores no lugar dos santos de corpo inteiro, com rostos idênticos, de expressão enjoada, com complicadas cabeleiras de cabelo de morto, rubis, pérolas, esmeraldas de vidro pintado e vestuário de nobres florentinos. O único favorecido com o loto era o padroeiro da igreja, São Sebastião, porque, na Semana Santa, reservava para os fiéis o espectáculo do seu corpo torcido numa posição indecente, atravessado por meia dúzia de flechas, escorrendo sangue e lágrimas, como um homossexual sofredor, cujas chagas, milagrosamente frescas graças ao pincel do padre Restrepo, faziam Clara estremecer de nojo.

Era uma longa semana de penitência e jejum, não se jogava às cartas, não se tocava música que incitasse à luxúria e ao esquecimento, observava-se, na medida do possível, a maior tristeza e castidade, apesar de, justamente nesses dias, o aguilhão do demónio tentar com maior insistência a débil carne católica. O jejum consistia em tenros pastéis de massa folhada, saborosos guisados de legumes, fofas tortilhas e grandes queijos trazidos do campo, com que as famílias recordavam a Paixão do Senhor, tendo o cuidado de não provar o mais pequeno pedaço de carne ou de peixe, sob pena de excomunhão, como dizia, insistindo, o padre Restrepo. Ninguém se atreveria a desobedecer-lhe. O sacerdote estava munido de um grande dedo incriminador para apontar os pecadores em público e uma língua treinada para agitar os sentimentos.

Tu, ladrão, que roubaste o dinheiro do culto!, gritava do púlpito apontando um cavalheiro que fingia preocupar-se com qualquer sujidade na lapela do casaco para esconder a cara. Tu, desavergonhada, que te prostituis nos molhes!, e acusava dona Ester Trueba, inválida pela artrite e beata da Senhora do Carmo, e que abria os olhos surpreendida, sem saber o significado daquela palavra nem onde ficavam os molhes. - Arrependei-vos, pecadores, carcaças imundas, indignos do sacrifício de Nosso Senhor! Jejuai! Fazei penitência!

Levado pelo entusiasmo do seu zelo vocacional, o sacerdote tinha de conter-se para não desobedecer declaradamente às instruções dos superiores eclesiásticos, sacudidos por ventos de modernismo, e que se opunham ao cilicio e à flagelação. Era partidário de vencer as fraquezas da alma com uma boa chicotada na carne. Era famoso pela sua oratória de enfreada. Os fiéis seguiam-no de paróquia em paróquia, suavam ouvindo-o descrever os tormentos dos pecadores no inferno, as carnes estraçalhadas por engenhosas máquinas de tortura, os fogos eternos, os garfos que trespassavam os membros viris, os répteis asquerosos que se introduziam pelos orifícios femininos e outros suplícios que introduzia em cada sermão para espalhar o terror de Deus. O próprio Satanás era descrito até às suas mais intimas anomalias com a pronúncia galega do sacerdote, cuja missão neste mundo era sacudir as consciências dos indolentes crioulos.

Severo del Valle era ateu e maçon, mas tinha ambições políticas. Não podia por isso dar-se ao luxo de faltar à missa mais concorrida dos domingos e dias de festa, para que todos pudessem vê-lo. Nívea, a esposa, preferia entender-se com Deus sem auxilio de intermediários, tinha profunda desconfiança das sotainas, aborrecia-se com as descrições do céu, do purgatório e do inferno, mas acompanhava o marido nas suas ambições políticas, na esperança de que, conseguindo ele um lugar no Congresso, ela podia obter o voto feminino,pelo qual lutava fazia dez anos, sem que os seus numerosos estados de gravidez a fizessem desanimar. Nessa Quinta-Feira Santa o padre Restrepo tinha levado os ouvintes ao limite da resistência com as suas visões apocalípticas, e Nívea começou a sentir enjoos. Perguntou a si mesma se não estaria grávida de novo. Apesar das abluções com vinagre e das esponjas de fel, tinha dado à luz quinze filhos, dos quais dez restavam ainda vivos, e tinha razões para supor que já se estava acomodando à idade, porque a sua filha Clara, a mais pequena, tinha dez anos. Parecia que, por fim, tinha acabado o ímpeto da sua assombrosa fertilidade. Fez por atribuir a sua indisposição ao momento do sermão do padre Restrepo, quando ele a apontou referindo-se aos fariseus que pretendiam legalizar os bastardos e o matrimónio civil, desarticulando a Família, a Pátria, a Propriedade e a Igreja, dando às mulheres a mesma posição que aos homens, em aberto desafio à lei de Deus, que nesse aspecto era muito precisa». In Isabel Allende, A Casa dos Espíritos, 1982, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-445-7.

Cortesia de PEditora/JDACT

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sábado, 2 de janeiro de 2021

Inês da Minha Alma. Isabel Allende. «Deixei dinheiro suficiente à igreja para que uma vez por semana, durante trezentos anos, rezem uma missa pelo descanso da alma do nobre fidalgo don Rodrigo Quiroga…»

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Crónicas de dona Inés Suárez, entregues à Igreja dos Dominicanos para sua conservação e resguardo pela sua filha, dona Isabel de Quiroga, no mês de Dezembro do ano de Nosso Senhor de 1580. Santiago da Nova Extremadura. Reino do Chile.

«(…) A verdadeira razão pela qual decidiu partir sozinho é que não queria deixar-me assistir ao triste espectáculo da sua doença, já que preferia ser recordado a montar a cavalo, comandando os seus corajosos homens, combatendo na região sagrada a sul do rio Bío-Bío, onde as ferozes hostes mapuche se preparavam então para a guerra. Estava no seu pleno direito de capitão, por isso aceitei as suas ordens como a esposa submissa que nunca fui. Levaram-no até ao campo de batalha numa maca e, uma vez lá chegado o seu genro, Martin Ruiz Gamboa, amarrou-o ao cavalo, tal como fizeram com El Cid, o Campeador, para assustar o inimigo com a sua presença. Lançou-se para a frente dos seus homens como um perfeito demente, desafiando o perigo e com o meu nome nos lábios, só que não encontrou a tão desejada morte. Trouxeram-mo de volta muito doente, num catre improvisado; o veneno do tumor já tinha invadido o seu corpo. Qualquer outro homem já teria morrido há muito, devido aos malefícios que a doença lhe provocara e ao cansaço da guerra, mas Rodrigo era forte. Amei-te desde o primeiro momento em que te vi e vou amar-te para sempre, Inés, disse-me, no meio da sua agonia, acrescentando que queria ser enterrado sem grande alarido e que devíamos mandar rezar trinta missas pelo descanso da sua alma. Vi a Morte, um pouco desfocada, tal como vejo as letras desta folha, mas inconfundível. Então chamei-te, Isabel, para que me ajudasses a vesti-lo, uma vez que Rodrigo era demasiado orgulhoso para mostrar os destroços da sua doença às criadas. Só a ti, sua filha, e a mim, nos permitiu colocar-lhe a armadura completa e as botas de rebites. Depois, sentámo-lo no seu cadeirão favorito, com o elmo e a espada sobre os joelhos, para que pudesse receber os últimos sacramentos e partir com dignidade, tal como tinha vivido. A Morte, que não tinha saído do seu lado e aguardava discretamente que acabássemos de o preparar, envolveu-o então nos seus braços maternais e fez-me sinal para que me aproximasse e sentisse o último suspiro do meu marido. Inclinei-me sobre o seu corpo e dei-lhe um beijo na boca, um beijo de amante. Morreu nesta casa, nos meus braços, numa tarde quente de Verão.

Não pude cumprir as instruções de Rodrigo para que o seu funeral fosse discreto, porque era o homem mais querido e respeitado do Chile. A cidade de Santiago mobilizou-se inteira para chorar a sua morte e, de outras cidades do reino, chegaram incontáveis manifestações de pesar. Anos antes, o povo tinha saído para as ruas para celebrar a sua nomeação como governador com chuvas de flores e salvas de mosquete. Foi sepultado com as honras que merecia na Igreja de Nossa Senhora das Mercês, que ele e eu mandáramos erigir para glorificar a Virgem Santíssima e onde em breve repousarão também os meus ossos. Deixei dinheiro suficiente à igreja para que uma vez por semana, durante trezentos anos, rezem uma missa pelo descanso da alma do nobre fidalgo don Rodrigo Quiroga, bravo soldado de Espanha, alcaide, Adelantado (Designação arcaica utilizada pelos Conquistadores espanhóis durante os séculos XVI e XVII para a categoria de governador ou responsável máximo de uma província, cuja responsabilidade seria, entre outras, agir como representante da Coroa espanhola junto das colónias. (N. da T.) e duas vezes Governador do Reino do Chile, Cavaleiro da Ordem de Santiago, meu marido. Estes meses sem ele foram uma eternidade.

Não devo antecipar-me, pois, se narrar os feitos que recheiam a minha vida sem qualquer rigor nem ordem, corro o risco de me perder pelo caminho; uma crónica deve seguir a ordem natural dos acontecimentos, mesmo que a memória seja uma perfeita barafunda sem lógica. Escrevo de noite, sobre a mesa de trabalho de Rodrigo, enrolada na sua manta de alpaca. A guardar-me o quarto está Baltasar, bisneto do cão que viajou comigo até ao Chile e me acompanhou durante catorze anos. O primeiro Baltasar morreu em 1553, o mesmo ano em que mataram Valdivia, mas deixou-me os seus descendentes, todos enormes, de patas desajeitadas e pêlo rijo. Esta casa é fria, apesar das carpetes, cortinas, tapeçarias e braseiros que os criados mantêm cheios de carvão incandescente. Queixas-te muitas vezes, Isabel, que não se consegue respirar de tanto calor; deve ser porque o frio não está verdadeiramente no ar, mas dentro de mim. Consigo anotar as minhas memórias e pensamentos com tinta e papel graças ao clérigo Gonzalez Marmolejo, que se deu ao trabalho, entre os seus múltiplos esforços para evangelizar selvagens e consolar cristãos, de me ensinar a ler. Na altura, era apenas um capelão, mas chegou a ser o primeiro bispo do Chile e também o homem mais rico deste reino, como contarei mais adiante. Morreu sem levar nada para a cova, mas deixou um rasto de boas acções que lhe valeram o amor da população. Ao fim e ao cabo, só se tem verdadeiramente aquilo que se deu, como dizia Rodrigo, o mais generoso dos homens.

Comecemos pelo princípio, pelas minhas primeiras memórias. Nasci em Plasencia, no Norte da Extremadura, cidade fronteiriça, guerreira e religiosa. A casa do meu avô, onde cresci, ficava a um passo da catedral, a que carinhosamente chamavam de La Vieja, uma vez que datava apenas do século XIV. Cresci à sombra da sua torre invulgar coberta de escamas trabalhadas. Nunca mais vi a ampla muralha que protege a cidade, a esplanada da Plaza Mayor, as suas ruelas sombrias, os palacetes de pedra e as galerias de arcos, nem o pequeno solar do meu avô onde ainda vivem os netos da minha irmã mais velha. O meu avô, um artesão que trabalhava o ébano, pertencia à Confraria de Vera Cruz, uma honra muito superior à sua condição social. Sedeada no convento mais antigo da cidade, essa confraria encabeça as procissões da Semana Santa. Vestido com o hábito roxo, cinto amarelo e luvas brancas, era um dos que levavam a Santa Cruz. Na sua túnica havia manchas de sangue, sangue dos chicotes com que se flagelava para partilhar do sofrimento de Cristo a caminho do Gólgota». In Isabel Allende, Inês da Minha Alma, 2006, Porto Editora, 2019, ISBN 978-972-004-749-6.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, Isabel Allende, Literatura, Cultura, Chile, 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Inês da Minha Alma. Isabel Allende. «A rainha Joana, ainda uma jovem e bela mulher, percorreu Castela durante mais de dois anos, transportando o esquife de um lado para o outro…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

«Inés Suárez (1507-1580) Espanhola, nascida em Plasencia, viajou para o Novo Mundo em 1537, onde participou na conquista do Chile e na fundação da cidade de Santiago. Teve grande influência política e poder económico. As façanhas de Inés Suárez, referidas pelos cronistas da sua época, foram quase esquecidas pelos historiadores durante mais de 400 anos. Nestas páginas, narro os acontecimentos tal como foram documentados. Limitei-me a interligá-los através de um exercício mínimo de imaginação. Esta é uma obra de intuição, mas qualquer semelhança com acontecimentos e personagens da conquista do Chile não é casual».

Crónicas de dona Inés Suárez, entregues à Igreja dos Dominicanos para sua conservação e resguardo pela sua filha, dona Isabel de Quiroga, no mês de Dezembro do ano de Nosso Senhor de 1580. Santiago da Nova Extremadura. Reino do Chile.

«Meu none é Inés Suárez, habitante da leal cidade de Santiago de Nova Extremadura, no Reino do Chile, neste ano de Nosso Senhor de 1580. Não tenho certeza da data exacta do meu nascimento, mas a minha mãe assegura que nasci depois da grande fome e do tremendo surto de peste que assolou a Espanha logo após a morte de Filipe, o Belo. Não creio que tenha sido a morte do rei a provocar a peste, como aliás dizia o povo ao ver passar o cortejo fúnebre que deixou no ar, durante dias, um aroma a amêndoas amargas, mas nunca se sabe. A rainha Joana, ainda uma jovem e bela mulher, percorreu Castela durante mais de dois anos, transportando o esquife de um lado para o outro, abrindo-o de vez em quando para beijar os lábios do marido, na vã esperança de que pudesse ressuscitar. Apesar dos unguentos do embalsamador, o Belo fedia. Quando eu vim ao mundo, já a infeliz rainha, louca de todo, estava recolhida no palácio de Tordesilhas com o cadáver do seu consorte; o que significa que tenho, pelo menos, setenta Invernos às costas e que hei-de morrer antes do Natal. Podia dizer-vos que, nas margens do rio Jerte, uma cigana adivinhou a data da minha morte, mas essa seria uma daquelas mentiras que se costumam espetar nos livros e, que por estarem impressas, parecem verdadeiras. A cigana só me augurou uma vida longa, que é o que sempre nos dizem em troco de uma moeda. O que me anuncia a proximidade do fim é o meu coração desordenado. Sempre soube que havia de morrer velha, em paz e na minha cama, como morrem todas as mulheres da minha família; por isso não vacilei quando precisei de enfrentar o perigo, já que ninguém se vai deste mundo antes da sua hora. Tu vais morrer de velhinha, de nada mais, senoray, tranquilizava-me Catalina, no seu castelhano afável do Peru, quando o persistente galope de cavalos me enchia o peito e me deitava ao chão. Já me esqueci do nome quíchua de Catalina e também já é demasiado tarde para lho perguntar, enterrei-a no pátio de minha casa há muitos anos, embora tenha plena confiança na precisão e veracidade das suas profecias. Catalina começou a servir-me na antiga cidade de Cuzco, verdadeira jóia dos Incas, na época de Francisco Pizarro, aquele bastardo corajoso que, dizem as más-línguas, guardava porcos em Espanha e acabou transformado em marquês Governador do Peru, cansado da sua ambição e de múltiplas traições. São assim as leis deste novo mundo das índias, onde as leis tradicionais nada podem e tudo é possível: santos e pecadores, brancos, negros, pardos, índios, mestiços, nobres e lavradores. Qualquer um pode andar por aí a arrastar correntes, ser marcado com ferros em brasa e, no dia seguinte, num golpe de sorte, ver a sua vida mudada num ápice. Vivi mais de quarenta anos no Novo Mundo e ainda não me habituei a esta desordem, ainda que também eu tenha beneficiado dela; se tivesse ficado na minha terra natal, hoje seria uma idosa pobre e cega de tanto bordar à luz das candeias. Lá seria a Inés, costureira da rua do Aqueduto. Aqui, sou dona Inés Suárez, senhora de grande importância, viúva do Excelentíssimo Governador don Rodrigo Quiroga, conquistadora e fundadora do Reino do Chile. Como disse, tenho pelo menos setenta anos, bem vividos, mas a minha alma e o meu coração, ainda agarrados aos resquícios da juventude, perguntam-se o que diabo terá acontecido com o corpo. Ao ver-me no espelho de prata, o primeiro presente que Rodrigo me ofereceu quando nos casámos, não reconheço aquela avó de cabelos brancos que o espelho me devolve. Quem é esta que se faz passar pela verdadeira Inés? Examino-a de perto, com a esperança de poder encontrar, bem no fundo do espelho, aquela menina de tranças e joelhos esfolados que já fui um dia, a jovem que fugia pelos pomares para fazer amor às escondidas, ou a mulher madura e apaixonada que dormia abraçada a Rodrigo Quiroga. Tenho a certeza de que, algures, estão ali escondidas, mas não as consigo ver. Já não consigo montar a minha égua, não uso cota de malha nem espada, não por falta de vontade, que vontade sempre tive de sobra, mas porque o corpo me trai. Faltam-me as forças, doemme as articulações, tenho os ossos gelados e a vista nublada. Se não usasse os óculos, que mandei vir do Peru, nem sequer conseguiria escrever estas páginas. Quis acompanhar Rodrigo, que Deus o tenha em seu Santo Descanso, na sua última batalha contra os índios mapuche, mas ele não me quis levar. Estás muito velha para isso, Inés, disse a rir. Estou tão velha como tu, respondi-lhe, apesar de não ser verdade, já que Rodrigo era uns anos mais novo que eu. Ambos acreditávamos que não nos veríamos mais, mas despedimo-nos sem lágrimas, certos de que nos encontraríamos na outra vida. Há muito tempo que sabia que Rodrigo tinha os dias contados, apesar do seu esforço para me esconder os factos. Nunca o ouvi queixar-se, aguentava as dores com os dentes cerrados e só o suor que lhe escorria pela testa o denunciava. Partiu febril, rumo ao Sul, pálido, com uma chaga coberta de pus numa perna que nenhum dos meus remédios e orações conseguiu curar; partiu para cumprir o seu desejo de morrer como um soldado no alvoroço do combate e não como um velho prostrado entre os lençóis do seu leito. Eu queria estar com ele para, nos momentos finais, lhe segurar na cabeça e agradecer o amor que me dedicou durante as nossas longas vidas. Olha, Inés, disse-me, mostrando os nossos campos, que se estendem até ao sopé da cordilheira. Deus colocou tudo isto, mais as centenas de almas dos índios que aqui trabalham, ao nosso encargo. Tal como eu tenho por obrigação combater os selvagens em Araucanía, é tua obrigação proteger a fazenda e esta gente». In Isabel Allende, Inês da Minha Alma, 2006, Porto Editora, 2019, ISBN 978-972-004-749-6.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, Isabel Allende, Literatura, Cultura, Chile,

terça-feira, 25 de junho de 2019

De Amor e de Sombra. Isabel Allende. «A hera perene sobrevivera às últimas geadas, as telhas brilhavam ainda com o orvalho da noite, e o pavilhão dos hóspedes, com os seus artesoados e postigos de madeira, luzia desbotado e triste»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O primeiro dia de sol evaporou a humidade acumulada na terra durante o Inverno e aqueceu os frágeis ossos dos anciãos, que, assim, puderam passear pelos caminhos ortopédicos do jardim. Apenas o melancólico permaneceu na cama, porque era inútil levá-lo para o ar puro: os seus olhos só viam os próprios pesadelos e os ouvidos estavam surdos ao alvoroço dos pássaros. Josefina Bianchi, a actriz, vestida com o longo traje de seda que usara meio século antes para declamar Tchekov e levando consigo uma sombrinha para proteger a pele de porcelana trincada, caminhava devagar entre os canteiros que em pouco tempo se cobririam de flores e besouros. Pobres rapazes, sorriu a octogenária ao perceber um ligeiro movimento nos miosótis, adivinhando assim a presença dos seus admiradores, aqueles que a amavam no anonimato e se escondiam na vegetação, para a espreitar quando passava.
O coronel deu uns passinhos miúdos, apoiado na cerca de alumínio que servia de suporte às suas pernas de algodão. Para festejar a Primavera que nascia e saudar a bandeira nacional, como fazia, sem falta, todas as manhãs, pusera no peito as medalhas de papelão e lata fabricadas para ele por Irene. Quando a agitação dos pulmões lho permitia, bradava ordens à tropa e mandava que os trémulos bisavôs se afastassem do Campo de Marte, onde a infantaria podia esmagá-los com o seu garboso passo de desfile e as botas envernizadas. A bandeira ondulou ao ar como uma invisível ave de rapina junto ao fio dos telefones e os seus soldados perfilaram-se direitos, olhando em frente, enquanto os tambores rufavam e vozes viris entoavam o sagrado hino que só os seus ouvidos escutavam. Foi interrompido por uma enfermeira em uniforme de batalha, silenciosa e dissimulada como em geral são essas mulheres, munida de um guardanapo para limpar-lhe a baba que corria pelas comissuras dos lábios e lhe molhava a camisa. Tentou oferecer-lhe uma condecoração ou uma promoção, mas ela deu meia volta e deixou-o depois de o ter, com o gesto suspenso, avisado de que, se emporcalhasse as calças, lhe daria três palmadas, porque estava farta de limpar porcaria alheia. De quem fala esta insensata?, perguntou-se o coronel, deduzindo que, sem dúvida, a enfermeira se referia à mais rica viúva do reino.
Só ela usava cueiros no acampamento, devido a uma ferida de canhão que lhe deu cabo do sistema digestivo e a meteu para sempre numa cadeira de rodas, mas nem mesmo por isso era respeitada. Quando menos esperava, roubavam-lhe os ganchos e as fitas, pois o mundo está cheio de velhacos e trapaceiros. Ladrões! Roubaram-me os chinelos!, gritou a viúva. Cale-se, avó, os vizinhos podem ouvi-la, ordenou-lhe a enfermeira, movendo a cadeira para que ela ficasse ao sol. A inválida continuou a vociferar acusações até ficar sem ar e teve que se calar para não morrer, mas mesmo assim restaram-lhe forças para indicar com um dedo artrítico o sátiro que, às escondidas, abria a braguilha para mostrar o seu pénis deplorável às senhoras. Nenhuma delas se preocupava com o facto, a não ser uma pequena dama vestida de luto, que observava aquele figo seco com certa ternura.
Estava apaixonada pelo seu dono e, à noite, deixava a porta do seu aposento aberta para que ele tomasse uma resolução. Rameira!, resmungou a viúva abastada, mas não sem evitar um sorriso, porque, de repente, lembrou-se de tempos idos quando ainda tinha marido e este pagava com patacões de ouro o privilégio de ser recebido entre as suas largas coxas, o que acontecia com bastante frequência. Chegou a ter uma bolsa cheia, tão pesada que nenhum marinheiro podia carregá-la aos ombros. Onde é que estão as minhas moedas de ouro? De que está falando, avó?, respondeu distraída a empregada atrás da cadeira de rodas. Roubaste-mas! Vou chamar a polícia! Não me chateie, velha, respondeu a outra sem se alterar.
Tinham ajeitado o paralítico num banco, com as pernas agasalhadas com um xaile, sereno e digno apesar do seu rosto meio deformado, a mão inútil no bolso e um cachimbo vazio na outra, com uma jaqueta de uma elegância britânica, apesar de remendada com couro nos cotovelos. Esperava correspondência, por isso exigiu que o sentassem de frente para o portão, para ver Irene entrar e saber, ao primeiro olhar, se trazia carta para ele. Ao seu lado apanhava sol, um velho triste com quem não falava porque eram inimigos, embora ambos tivessem esquecido o motivo da discórdia. Por engano, às vezes dirigiam-se a palavra sem obter resposta, mais por surdez do que por hostilidade.
Na sacada do segundo andar, onde o amor-perfeito ainda não dera folhas nem flores, apareceu Beatriz Alcántara Beltrán. Vestia calças de camurça verde-escuras e blusa francesa do mesmo tom, combinando com a sombra das pálpebras e o anel de malaquite, maquilhada logo de manhã, fresca e tranquila depois de uma sessão de exercícios orientais para relaxar tensões e esquecer os sonhos da noite, segurando um copo de sumo para melhorar a digestão e limpar a pele. Respirou profundamente, notando a nova brandura do ar, e contou os dias que faltavam para a viagem de férias. O Inverno fora muito rigoroso e por isso perdera o bronzeado. Observou compenetrada o jardim aos seus pés, embelezado pelo despontar da Primavera, mas ignorou a luz nas pedras do muro e a fragância da terra molhada. A hera perene sobrevivera às últimas geadas, as telhas brilhavam ainda com o orvalho da noite, e o pavilhão dos hóspedes, com os seus artesoados e postigos de madeira, luzia desbotado e triste». In Isabel Allende, De Amor e de Sombra, 1984, Porto Editora, ISBN 978-972-004-247-7.

Cortesia de PortoE/JDACT

El Amante Japonés Isabel Allende. «Le explicó que sólo el personal doméstico, de cuidado y enfermería estaba obligado a llevar uniforme, pero existía un tácito código de vestimenta para el resto de los empleados»

Cortesia de wikipedia e jdact

«La historia de amor entre la joven Alma Velasco y el jardinero japonés Ichimei conduce al lector por un recorrido a través de diversos escenarios que van desde la Polonia de la Segunda Guerra Mundial hasta el San Francisco de nuestros días».

Lark House
«Irina Bazili entró a trabajar en Lark House, en las afueras de Berkeley, en 2010, con veintitrés años cumplidos y pocas ilusiones, porque llevaba dando tumbos entre empleos, de una ciudad a otra, desde los quince. No podía imaginar que encontraría su acomodo perfecto en esa residencia de la tercera edad y que en los tres años siguientes llegaría a ser tan feliz como en su infancia, antes de que se le desordenara el destino. Lark House, fundada a mediados de 1900 para albergar dignamente a ancianos de bajos ingresos, atrajo desde el principio, por razones desconocidas, a intelectuales progresistas, esotéricos decididos y artistas de poco vuelo. Con el tiempo cambió en varios aspectos, pero seguía cobrando cuotas ajustadas a los ingresos de cada residente para fomentar, en teoría, cierta diversidad social y racial. En la práctica todos ellos resultaron ser blancos de clase media y la diversidad consistía en sutiles diferencias entre librepensadores, buscadores de caminos espirituales, activistas sociales y ecológicos, nihilistas y algunos de los pocos hippies que iban quedando vivos en el área de la bahía de San Francisco.
En la primera entrevista, el director de esa comunidad, Hans Voigt, le hizo ver a Irina que era demasiado joven para un puesto de tanta responsabilidad, pero como tenían que cubrir con urgencia una vacante en el departamento de administración y asistencia, ella podía ser suplente hasta que encontraran a la persona adecuada. Irina pensó que lo mismo que de ella se podía decir de él: parecía un chiquillo mofletudo con calvicie prematura a quien la tarea de dirigir ese establecimiento seguramente le quedaba grande. Con el tiempo la muchacha comprobaría que el aspecto de Voigt engañaba a cierta distancia y con mala luz, pues en realidad había cumplido cincuenta y cuatro años y había demostrado ser un excelente administrador. Irina le aseguró que su falta de estudios se compensaba con la experiencia en el trato con ancianos en Moldavia, su país natal.
La tímida sonrisa de la postulante ablandó al director, quien se olvidó de pedirle una carta de recomendación y pasó a enumerar las obligaciones del puesto; podían resumirse en pocas palabras: facilitar la vida a los huéspedes del segundo y tercer nivel. Los del primero no le incumbían, pues vivían de forma independiente, como inquilinos en un edificio de apartamentos, y tampoco los del cuarto, llamado apropiadamente Paraíso, porque estaban aguardando su tránsito al cielo, pasaban dormitando la mayor parte del tiempo y no requerían el tipo de servicio que ella debía ofrecer. A Irina le correspondería acompañar a los residentes a las consultas de médicos, abogados y contadores, ayudarlos con formularios sanitarios y de impuestos, llevarlos de compras y menesteres similares. Su única relación con los del Paraíso era organizar sus funerales, para lo que recibiría instrucciones detalladas según el caso, le dijo Hans Voigt, porque los deseos de los moribundos no siempre coincidían con los de sus familiares. Entre la gente de Lark House había diversas creencias y los funerales tendían a ser ceremonias ecuménicas algo complicadas.
Le explicó que sólo el personal doméstico, de cuidado y enfermería estaba obligado a llevar uniforme, pero existía un tácito código de vestimenta para el resto de los empleados; el respeto y el buen gusto eran los criterios en esa materia. Por ejemplo, la camiseta estampada con Malcolm X que lucía Irina resultaba inapropiada para la institución, dijo enfáticamente. En realidad la efigie no era de Malcolm X sino del Che Guevara, pero ella no se lo aclaró porque supuso que Hans Voigt no había oído hablar del guerrillero, quien medio siglo después de su epopeya seguía siendo venerado en Cuba y por un puñado de radicales de Berkeley, donde ella vivía. La camiseta le había costado dos dólares en una tienda de ropa usada y estaba casi nueva. Aquí está prohibido fumar, le advirtió el director. No fumo ni bebo, señor. Tiene buena salud? Eso es importante en el trato con ancianos. Sí. Hay alguna cuestión que yo deba saber? Soy adicta a videojuegos y novelas de fantasía. Ya sabe, Tolkien, Neil Gaiman, Philip Pullman. Además trabajo lavando perros, pero no me ocupa muchas horas». In Isabel Allende, El Amante Japonés, Plaza & Janes, 2015, ISBN 978-840-101-597-7.

Cortesia de Plaza&Janes/JDACT

sábado, 25 de agosto de 2018

O Plano Infinito Isabel Allende. «E também para a invisibilidade, disse a menina. Como? Se começa a tornar-se invisível põe um colar destes e todos podem vê-lo, esclareceu Judy. Não faça caso, são coisas de criança…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Os meninos gostam de viajar atrás, mas é perigoso, não podem ir sozinhos. Olga e você tomarão conta deles. Vamos pôr Oliver à frente para não o incomodar, é ainda um cachorro, mas já tem manhas de animal velho, decidiu Charles Reeves, fazendo-lhe sinal para subir.
O soldado atirou a mochila para cima do monte de objectos e trepou, esticou os braços para receber o menino mais pequeno, que Reeves tinha levantado sobre a cabeça, um puto fraco, de orelhas saídas e um sorriso irresistível que lhe enchia a cara de dentes. Quando regressaram a mulher e a menina subiram também para trás, os outros dois entraram na cabina e pouco depois o camião pôs-se em marcha.
Chamo-me Olga e estes são Judy e Gregory, apresentou-se a de cabelo impossível, sacudindo a saia enquanto distribuía maçãs e bolachas. Não se sente sobre essa caixa, ai vai a jibóia, e não pode tapar-lhe os buracos de ventilação, acrescentou. O pequeno Gregory parou de tirar a língua de fora logo que deu conta de que o viajante vinha da guerra, então uma expressão reverente substituiu as caretas brincalhonas e começou a interrogá-lo sobre aviões de combate, até ficar vencido pela modorra. O soldado tentou conversar com a ruiva, mas ela respondia com monossílabos e não se atreveu a insistir. Pôs-se a cantarolar canções da sua aldeia, olhando de soslaio a caixa misteriosa, até que os outros adormeceram sobre a pilha de fardos, então pôde observá-los à vontade. Os meninos tinham cabelo quase branco e os olhos tão claros que de perfil pareciam cegos, em contrapartida a mulher tinha a cor azeitonada de algumas raças mediterrânicas. Tinha os primeiros botões de blusa abertos, gotas de suor molhavam-lhe o decote e desciam como um lento fio pelo rego dos seios. Tinha levantado um braço para apoiar a cabeça sobre um caixote, revelando velos escuros nas axilas e uma mancha húmida no tecido. Desviou os olhos, receando ser surpreendido e que ela interpretasse mal a sua curiosidade, até então aquelas pessoas tinham sido amáveis, pensou, mas nunca se pode estar seguro com os brancos. Deduziu que os miúdos eram do outro casal, ainda que a julgar pelas idades aparentes dos Reeves também pudessem ser seus netos. Passou revista à carga e chegou à conclusão de que aquela gente não estava a mudar de casa, como tinha suposto a principio, mas que viajavam na sua vivenda permanente. Notou que levavam um tambor com vários galões de água e outros com combustível e perguntou a si mesmo como é que conseguiam gasolina, racionada pela guerra desde há um bom tempo. Tudo estava disposto numa ordem meticulosa, de fateixas e ganchos penduravam utensílios e ferramentas, compartimentos exactos continham as maletas, nada ficava solto, cada embrulho estava marcado e havia várias caixas com livros. O calor e as sacudidelas da viagem depressa o esgotaram e adormeceu recostado na gaiola dos frangos. Despertou a meio da tarde, ao sentir que paravam. O corpo do rapaz sobre as suas pernas não pesava quase nada, mas a imobilidade tinha-lhe entorpecido os músculos e sentia a garganta seca. Por alguns instantes não soube onde estava, meteu a mão no bolso das calças à procura do cantil de uísque e bebeu um longo golo para aclarar o espírito. A mulher e os meninos estavam cobertos de pó e o suor marcava-lhes linhas pelas bochechas e pelo pescoço. Charles Reeves tinha-se desviado do caminho e encontravam-se debaixo de um grupo de árvores, única sombra naquela desolação, acampariam ali para o motor arrefecer, mas no dia seguinte podia levá-lo a casa, explicou ao soldado, que então estava mais tranquilo, aquela estranha família começava a inspirar-lhe simpatia. Reeves e Olga baixaram alguns embrulhos do camião e armaram as estafadas tendas de campanha, enquanto a outra mulher, que se apresentou como Nora Reeves, preparava a comida num fogareiro a petróleo com a ajuda da sua filha Judy, e o rapaz procurava paus para uma fogueira, com o cão atrás dos seus sapatos. Vamos caçar lebres, pai?, suplicou puxando as calças do pai.
Hoje não há tempo para isso, Greg, respondeu Charles Reeves tirando um frango da gaiola e rebentando-lhe a nuca com um esticão firme no pescoço. Não se consegue carne. Guardamos os frangos para ocasiões especiais..., explicou Nora, como se pedisse desculpas. Hoje é um dia especial, mãe?, perguntou Judy. Sim, filha, o senhor King Benedict é nosso convidado. Ao entardecer o acampamento estava pronto, a ave fervia numa panela e cada qual cumpria a sua tarefa, à luz dos candeeiros de carbureto e ao calor do fogo: Nora e os rapazes faziam trabalhos escolares, Charles Reeves folheava uma manuseada cópia do National Geographic e Olga fabricava colares com contas de cores. São para a boa sorte, disse ao hóspede. E também para a invisibilidade, disse a menina. Como? Se começa a tornar-se invisível põe um colar destes e todos podem vê-lo, esclareceu Judy. Não faça caso, são coisas de criança, riu Nora Reeves. É verdade, mãe! Não contradigas a tua mãe, cortou Charles Reeves secamente». In Isabel Allende, O Plano Infinito, Edições Inapa, 2010, ISBN 978-989-681-004-7.

Cortesia de EInapa/JDACT

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O Plano Infinito Isabel Allende. «Afastou-se para a deixar passar, viu-a parar poucos metros mais adiante e pela portinhola assomou uma mulher de cabelo cor de tomate…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Iam pelos caminhos do Oeste sem pressa e sem rumo obrigatório, mudando a rota de acordo com o capricho de um instante, ao sinal premonitório de um bando de pássaros, à tentação de um nome desconhecido. Os Reeves interrompiam a sua errática peregrinação onde o cansaço os surpreendesse ou encontrassem alguém disposto a comprar a sua intocável mercadoria. Vendiam esperança. Percorreram assim o deserto numa e noutra direcção, cruzaram as montanhas e uma madrugada viram nascer o dia numa praia do Pacífico. Quarenta e tantos anos mais tarde, durante uma longa confissão em que passou revista à sua existência e fez as contas dos seus erros e acertos, Gregory Reeves descreveu-me a sua recordação mais antiga: um menino de quatro anos, ele próprio, urinando sobre uma colina ao entardecer, o horizonte tinto de vermelho e âmbar pelos últimos raios de sol, nas suas costas os picos dos cerros, mais abaixo, numa extensa planície, onde a sua vista se perde. O líquido quente escorre como algo essencial do seu corpo e do seu espirito, cada gota, ao fundir-se na terra, marca o território com o seu nome. Demora o prazer, joga com o esguicho, traçando um círculo cor de topázio sobre o pó, percebe a paz intacta da tarde, comove-o a imensidão do mundo com um sentimento de euforia, porque ele faz parte daquela paisagem límpida e cheia de maravilhas, uma incomensurável geografia para explorar. A pouca distância aguarda-o a sua família. Está tudo bem, pela primeira vez tem consciência da felicidade: é um momento que jamais esquecerá. Ao longo da sua vida Gregory Reeves sentiu em várias ocasiões esse deslumbramento perante as surpresas do mundo, essa sensação de pertencer a um lugar esplêndido onde tudo é possível e cada coisa, desde o mais sublime até ao mais horrendo, tem uma razão de ser, nada sucede por acaso, nada é inútil, como apregoava aos gritos seu pai, ardendo de fervor messiânico, com uma serpente enroscada nos pés. E cada vez que teve essa chispa de compreensão recordava aquele pôr-do-sol na colina. A sua meninice foi uma época demasiado longa de confusão e penumbras, excepto os anos a viajar com a família. O pai, Charles Reeves, guiava a pequena tribo com severidade e regras claras, todos juntos, cada um cumprindo com os seus deveres, prémio e castigo, causa e efeito, disciplina baseada numa escala de valores imutável. O pai vigiava como o olho de Deus. As viagens determinavam a sorte dos Reeves sem lhes alterar a estabilidade, porque as rotinas e as normas eram precisas. Foi esse o único período em que Gregory se sentiu seguro. A raiva começou mais tarde, quando desapareceu o pai e a realidade começou a deteriorar-se de maneira irreparável.
O soldado iniciou a marcha de manhã, de mochila às costas, e a meio da tarde já estava arrependido de não ter tomado o autocarro. Partiu a assobiar de contente, mas com o passar das horas doíam-lhe os rins e a canção enrolava-se-lhe com palavrões. Eram as suas primeiras férias depois de um ano de serviço no Pacífico e regressava à sua aldeia com uma cicatriz no ventre, restos de um ataque de malária e tão pobre como sempre tinha sido. Levava a camisa pendurada num ramo para improvisar sombra, suava e a sua pele tinha o brilho de um espelho escuro. Pensava aproveitar cada instante dessas duas semanas de liberdade, passar as noites a jogar bilhar com os amigos e a dançar com as miúdas que tinham respondido às suas cartas, dormir de perna aberta, despertar com o cheiro do café acabado de coar e as panquecas da mãe, único prato apetitoso da sua cozinha, o resto sabia a borracha queimada, mas a quem poderia importar a habilidade culinária da mulher mais formosa em cem milhas à volta, uma lenda viva com grandes ossos de escultura e olhos amarelos de leopardo? Há muito que não passava uma alma por aquelas solidões, quando sentiu atrás de si os estertores de um motor, viu ao longe a silhueta imprecisa de um camião tremelicando como uma forte miragem na reverberação da luz. Esperou que se aproximasse para pedir-lhe uma boleia, mas ao tê-lo mais perto mudou de ideias, assustado por aquela inusitada aparição, uma carripana pintada com cores insolentes, carregada até ao cimo como uma montanha de tralha, coroada por uma gaiola com frangos, um cão preso a uma corda e sobre o tejadilho um altifalante e um cartaz onde se lia em grandes letras O Plano Infinito. Afastou-se para a deixar passar, viu-a parar poucos metros mais adiante e pela portinhola assomou uma mulher de cabelo cor de tomate que lhe fez sinais para o levar. Não sabia se havia de alegrar-se, aproximou-se cauteloso, calculando que seria impossível entrar na cabina, onde viajavam apertados três adultos e duas crianças e seria preciso perícia de acrobata para trepar para a traseira. Abriu-se a porta e o condutor saltou para a estrada.

Charles Reeves - apresentou-se cortês, mas com inequívoca autoridade.
Vamos um pouco apertados como vê, mas onde cabem cinco cabem seis. O resto dos passageiros também desceu, a mulher de melenas vermelhas afastou-se em direcção a uns arbustos, seguida por uma rapariguinha de uns seis anos que para ganhar tempo ia baixando as cuecas, enquanto o menino mais pequeno deitava a língua de fora ao desconhecido, meio escondido por detrás da outra viajante. Charles Reeves desatou uma escada da retaguarda do camião, subiu sobre a carga com agilidade e soltou o cão, que de um saltou temerário largou a correr pelos arredores, farejando os matos». In Isabel Allende, O Plano Infinito, Edições Inapa, 2010, ISBN 978-989-681-004-7.

Cortesia de EInapa/JDACT

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Zorro. Isabel Allende. «Então vamos fazer-lhes uma demonstração do poder da cruz e do da pólvora, riu-se o capitão, passando a explicar o seu plano»

jdact

O começo da lenda
Califórnia. 1790-1810
«(…) Uns dias mais tarde, o capitão Alejandro La Vega chegou a galope à missão. Desmontou de um salto no pátio, desfez-se da pesada casaca do uniforme, do lenço e do chapéu, e mergulhou a cabeça na artesa onde as mulheres enxaguavam a roupa. O cavalo estava coberto de suor espumoso, porque tinha carregado por várias léguas o cavaleiro com o seu equipamento de dragão do Exército espanhol: lança, espada, escudo de couro duplo e carabina, além dos arreios. De La Vega era acompanhado por um par de homens e vários cavalos que transportavam as provisões. O padre Mendoza saiu a recebê-lo com os braços abertos, mas, ao ver que só o acompanhavam dois soldados andrajosos e tão extenuados como as cavalgaduras, não pôde dissimular a frustração. Lamento, padre, não disponho de mais soldados do que este par de bravos homens. O resto do destacamento ficou na povoação de La Reina de los Angeles, que também está ameaçada pela sublevação, desculpou-se o capitão, limpando a cara com as mangas da camisa. Que Deus nos ajude, visto que Espanha o não faz, retrucou entre dentes o sacerdote. Sabe quantos índios atacarão? Há muito poucos aqui que saibam contar com rigor, capitão, mas, segundo os meus homens averiguaram, podem chegar a quinhentos.
Isso significa que não serão mais de cento e cinquenta, padre. Podemos defender-nos. Com que contamos?, inquiriu Alejandro La Vega. Comigo, que fui soldado antes de ser padre, e com outros dois missionários, que são jovens e corajosos. Temos três soldados adstritos à missão, que vivem cá. Também vários mosquetes e carabinas, munições, um par de sabres e a pólvora que utilizamos na pedreira. Quantos neófitos? Sejamos realistas, meu filho: a maioria não combaterá contra gente da sua raça, explicou o missionário. Quando muito, conto com meia dúzia de jovens criados aqui e algumas mulheres que nos podem ajudar a carregar as armas. Não posso arriscar as vidas dos meus neófitos; são como crianças, capitão. Trato deles como se fossem meus filhos. Bem, padre, mãos à obra, em nome de Deus. Pelo que vejo, a igreja é o edifício mais sólido da missão. Defender-nos-emos lá, disse o capitão. Durante os dias seguintes ninguém descansou em San Gabriel; até as crianças de tenra idade foram postas a trabalhar. O padre Mendoza, bom conhecedor da alma humana, não podia confiar na lealdade dos neófitos uma vez que se vissem rodeados de índios livres. Consternado, notou um certo brilho selvagem nos olhos de alguns deles e a falta de vontade com que cumpriam as suas ordens: deixavam cair as pedras, rasgavam-se-lhes os sacos de areia, enredavam-se nas cordas, entornavam-se-lhes os baldes de pez. Forçado pelas circunstâncias, violou o seu próprio regulamento de compaixão e, sem que lhe tremesse a vontade, condenou um par de índios ao cepo e a um terceiro aplicou dez chicotadas, para servir de exemplo. Depois mandou reforçar com tábuas a porta do dormitório das mulheres solteiras, construído como uma prisão, de modo que as mais audazes não saíssem para passear ao luar com os respectivos apaixonados. Era um edifício rotundo, de grosso adobe, sem janelas e com a vantagem adicional de se poder trancar por fora com uma barra de ferro e cadeados.
Ali encerraram a maior parte dos neófitos do sexo masculino, agrilhoados pelos tornozelos, a fim de evitar que na hora da batalha colaborassem com o inimigo. Os índios têm medo de nós, padre Mendoza. Julgam que possuímos uma magia muito poderosa, afirmou o capitão La Vega, dando uma palmada na coronha da sua carabina. Esta gente conhece de sobra as armas de fogo, embora ainda não tenha descoberto o seu funcionamento. O que na verdade os índios temem é a cruz de Cristo, retorquiu o missionário, apontando para o altar. Então vamos fazer-lhes uma demonstração do poder da cruz e do da pólvora, riu-se o capitão, passando a explicar o seu plano». In Isabel Allende, Zorro, O Começo da Lenda, Editorial Inapa, 2010, ISBN 978-989-681-006-1.

Cortesia da EInapa/JDACT

domingo, 1 de julho de 2018

Zorro. Isabel Allende. «… dava lições de catecismo e de aritmética, para que os neófitos, como chamavam aos índios convertidos, pudessem contar as peles, as velas e as vacas…»

jdact

O começo da lenda
Califórnia. 1790-1810
«Comecemos pelo princípio, por um acontecimento sem o qual Diego La Vega não teria nascido. Sucedeu na Alta Califórnia, na Missão San Gabriel, no ano de Nosso Senhor de 1790. Naquele tempo quem dirigia a missão era o padre Mendoza, um franciscano com umas costas de lenhador, mais novo de aspecto que os seus quarenta anos bem vividos, enérgico e mandão, para quem a maior dificuldade do seu ministério era imitar a humildade e doçura de São Francisco de Assis. Na Califórnia havia vários outros religiosos em vinte e três missões, encarregados de propagar a doutrina de Cristo entre vários milhares de gentios das tribos Chumash, Shoshone e outras, que nem sempre se prestavam de bom grado a recebê-la. Os nativos da costa da Califórnia tinham uma rede de trocas e comércio que funcionava havia milhares de anos. O seu ambiente era muito rico em recursos naturais e as tribos desenvolviam diferentes especialidades. Os Espanhóis estavam impressionados com a economia Chumash, cuja complexidade comparavam com a da China. Os índios usavam conchas como moeda e organizavam regularmente feiras, onde, além do intercâmbio de bens, se ajustavam os casamentos.
Os índios ficavam confundidos com o mistério do homem torturado numa cruz que os brancos adoravam, e não compreendiam a vantagem de sofrer neste mundo para gozar de um hipotético bem-estar noutro. No paraíso cristão podiam instalar-se numa nuvem e tocar harpa com os anjos, mas na realidade a maioria deles preferia, depois da morte, caçar ursos com os antepassados nas terras do Grande Espírito. Tão-pouco compreendiam que os estrangeiros espetassem uma bandeira no solo, marcassem linhas imaginárias, ou declarassem propriedade sua e se ofendessem se alguém entrasse perseguindo um veado. A ideia de possuir a terra era para eles tão inverosímil como a de dividir o mar. Quando chegou ao padre Mendoza notícia de que várias tribos se tinham sublevado, comandadas por um guerreiro com cabeça de lobo, este elevou as suas preces pelas vítimas, mas não se preocupou demasiado, porque estava certo de que San Gabriel se encontrava a salvo. Pertencer à sua missão era um privilégio, como demonstravam as famílias indígenas que acorriam a solicitar a sua protecção a troco do baptismo e de bom grado ficavam sob o seu tecto; nunca tivera de empregar militares para recrutar futuros conversos. Atribuiu a recente insurreição, a primeira que ocorria na Alta Califórnia, aos abusos da soldadesca espanhola e à severidade dos seus irmãos missionários. As tribos, divididas em pequenos grupos, tinham costumes diversos e comunicavam entre si por meio de um sistema de sinais; nunca haviam chegado a acordo para coisa nenhuma, excepto para o comércio, e nunca certamente para a guerra.
Segundo ele, aquelas pobres gentes eram inocentes cordeiros de Deus, que pecavam por ignorância e não por vício; deviam existir razões ponderosas para que se levantassem contra os colonizadores. O missionário trabalhava sem descanso, lado a lado com os índios, nos campos, no curtimento de peles, na moagem do milho. De tarde, quando os outros descansavam, ele tratava feridas de acidentes menores ou arrancava algum dente podre. Além disso, dava lições de catecismo e de aritmética, para que os neófitos, como chamavam aos índios convertidos, pudessem contar as peles, as velas e as vacas, mas não de leitura ou escrita, conhecimentos sem aplicação prática naquele lugar. À noite fazia vinho, tratava das contas, escrevia nos seus cadernos e rezava. Ao amanhecer tocava o sino para chamar a sua congregação à missa e, depois do ofício, supervisionava o pequeno-almoço com olhar atento, para que ninguém ficasse sem comer. Por tudo isso, e não por excesso de confiança em si próprio ou vaidade, estava convencido de que as tribos em pé de guerra não atacariam a sua missão. Não obstante, como as más notícias continuassem a chegar semana após semana, acabou por lhes dar atenção. Mandou um par de homens de toda a confiança averiguar o que se estava a passar no resto da região; estes não tardaram a localizar os índios em guerra e a apurar os pormenores, porque foram recebidos como compadres pelos próprios sujeitos que iam espiar. Regressaram para contar ao missionário que um herói, surgido das profundezas do bosque e possuído pelo espírito de um lobo, tinha conseguido juntar várias tribos para expulsarem os Espanhóis das terras dos seus antepassados, onde sempre tinham caçado sem autorização. Os índios não possuíam uma estratégia clara; limitavam-se a assaltar as missões e as povoações no impulso do momento, incendiavam tudo quanto encontravam à sua passagem e seguidamente retiravam-se tão depressa como haviam chegado. Acrescentaram os homens do padre Mendoza que o chefe Lobo Cinzento tinha San Gabriel na mira, não por rancor particular contra o missionário, ao qual nada se podia censurar, mas sim porque lhes ficava em caminho. Em vista disso, o sacerdote teve de tomar medidas. Não estava disposto a perder o fruto do seu trabalho de anos e ainda menos a permitir que lhe arrebatassem os seus índios, que longe da sua tutela sucumbiriam ao pecado e voltariam a viver como selvagens. Escreveu uma mensagem ao capitão Alejandro La Vega pedindo-lhe imediato socorro. Receava o pior, dizia, porque os insurrectos se encontravam muito perto, com intenções de atacar a qualquer momento, e ele não se poderia defender sem reforços militares adequados. Mandou duas missivas idênticas ao forte de San Diego por cavaleiros expeditos, que usaram diferentes percursos, de modo que, se um fosse interceptado, o outro alcançaria o seu propósito». In Isabel Allende, Zorro, O Começo da Lenda, Editorial Inapa, 2010, ISBN 978-989-681-006-1.

Cortesia da EInapa/JDACT

domingo, 5 de março de 2017

A Ilha Debaixo do Mar. Isabel Allende. «Não sofria de malária, como ele julgava, mas de sífilis, que devastava brancos, negros e mulatos, indiferentemente»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) No final de mil e seiscentos, a Espanha cedeu a parte ocidental da ilha à França, que lhe chamou Saint-Domingue e que haveria de se converter na colónia mais rica do mundo. Na época em que Toulouse Valmorain ali chegou, um terço das exportações de França, através do açúcar, café, tabaco, algodão, índigo e cacau, provinha da ilha. Já não havia escravos brancos, mas os negros somavam-se em centenas de milhares. O cultivo mais exigente era a cana-de-açúcar, o ouro doce da colónia; cortar a cana, triturá-la e reduzi-la a mosto não era trabalho de gente, mas sim de besta, como defendiam os plantadores. Valmorain acabava de fazer vinte anos quando foi convocado para ir à colónia por uma carta angustiante do agente comercial do seu pai. Quando desembarcou, estava vestido de acordo com a última moda: punhos de renda, peruca empoada e sapatos de salto alto, seguro de que os livros de exploração que tinha lido o capacitavam de sobra para assessorar o pai durante umas semanas. Viajava com um valet, quase tão galhardo como ele, vários baús com o seu vestuário e os seus livros. Definia-se como um homem de Letras e, quando regressasse a França, pensava dedicar-se à ciência. Admirava os filósofos e enciclopedistas, que tanto impacto tinham tido na Europa nas décadas recentes, e estava de acordo com algumas das suas ideias liberais: o Contrato Social de Rousseau tinha sido o seu texto de cabeceira aos dezoito anos. Assim que desembarcou, depois de uma travessia que por pouco não terminou em tragédia quando enfrentou um furacão no Caribe, teve a primeira surpresa desagradável: o seu progenitor não o esperava no porto. Foi recebido pelo agente, um judeu amável, vestido de preto da cabeça aos pés, que o pôs ao corrente das precauções necessárias para se movimentar pela ilha, lhe disponibilizou cavalos, um par de mulas para a bagagem, um guia e um miliciano para que os acompanhassem à habitation Saint-Lazare. O jovem jamais tinha posto os pés fora de França e tinha prestado muito pouca atenção às histórias, banais, regra geral, que o pai costumava contar durante as suas pouco frequentes visitas à família, em Paris. Não imaginou que alguma vez iria à plantação; o acordo tácito consistia na consolidação da fortuna na ilha pelo seu pai, enquanto ele cuidava da mãe e das irmãs e supervisionava os negócios em França. A carta que recebera fazia alusão a problemas de saúde, e pensou que se tratava de uma febre passageira, mas quando chegou a Saint-Lazare, depois de um dia de marcha desenfreada através de uma Natureza glutona e hostil, deu-se conta de que o pai estava a morrer.
Não sofria de malária, como ele julgava, mas de sífilis, que devastava brancos, negros e mulatos, indiferentemente. A doença atingira o seu último estado e o seu pai estava quase inválido, coberto de pústulas, com os dentes a abanar e a mente entre brumas. As curas dantescas de sangrias, mercúrio e cauterizações do pénis com arames em brasa não o tinham aliviado, porém, continuavam a praticá-las como acto de contrição. Acabava de fazer cinquenta anos e estava convertido num ancião que dava ordens disparatadas, urinava-se sem controlo e estava sempre numa rede com as suas mascotes, duas pretinhas acabadas de chegar à puberdade. Enquanto os escravos desencaixotavam a sua bagagem sob as ordens do valet, um janota que mal tinha aguentado a travessia de barco e estava espantado com as condições primitivas do lugar, Toulouse Valmorain ausentou-se para percorrer a vasta propriedade. Nada sabia do cultivo de cana, mas bastou-lhe aquele passeio para compreender que os escravos estavam esfomeados e que a plantação só se tinha salvado da ruína porque o mundo consumia açúcar com uma voracidade crescente. Nos livros de contabilidade, encontrou a explicação para as más finanças do pai, que não conseguia manter a família em Paris com o decoro correspondente à sua posição. A produção era um desastre e os escravos caíam como tordos; não teve dúvida de que os capatazes roubavam, aproveitando-se da clamorosa deterioração do amo. Amaldiçoou a sua sorte e dispôs-se a arregaçar as mangas e trabalhar, coisa que nenhum jovem do seu meio ponderava sequer: o trabalho era para gente de outra classe. Começou por conseguir um suculento empréstimo graças ao apoio e às ligações com banqueiros do agente comercial do seu pai, a seguir mandou os commandeurs aos canaviais, para trabalhar lado a lado com os mesmos que tinham martirizado antes, e substituiu-os por outros menos depravados, reduziu os castigos e contratou um veterinário, que passou dois meses em Saint-Lazare a procurar devolver alguma saúde aos negros. O veterinário não conseguiu salvar o seu valet, despachado por uma diarreia fulminante em menos de trinta e oito horas. Valmorain deu-se conta de que os escravos do pai duravam uma média de dezoito meses entre fugir ou cair mortos de fadiga, muito menos do que noutras plantações. As mulheres viviam mais do que os homens, mas rendiam menos no trabalho pesado dos canaviais e tinham o mau hábito de ficarem prenhes. Como sobreviviam muito poucas crias, os plantadores tinham calculado que a fertilidade entre os negros era tão baixa que não era rentável. O jovem Valmorain realizou as mudanças necessárias de forma automática, sem planos e depressa, decidido a avançar a toda a rapidez, mas quando o pai morreu, uns meses mais tarde, teve de enfrentar o facto inquestionável de estar falido. Não pretendia deixar os seus ossos naquela colónia infestada de mosquitos, mas, se partisse antes do tempo, perderia a plantação, e com ela os lucros e a posição social da sua família em França. Valmorain não tentou relacionar-se com outros colonos». In Isabel Allende, A Ilha Debaixo do Mar, 2009, Porto Editora, 2015, ISBN 978-972-001-948-6.

Cortesia de PEditora/JDACT