sexta-feira, 31 de maio de 2024

No 31. Idade Média. Umberto Eco. «… para que as cidades se mantenham como importantes centros organizativos e administrativos dos respectivos territórios circundantes, apesar da derrocada institucional e das transformações da sociedade, com o poder sempre crescente das estruturas eclesiásticas»

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Sés episcopais

«Com profundas transformações como o desaparecimento das cúrias e das magistraturas citadinas no século VI, os centros urbanos continuam a ser, na alta Idade Média, núcleos de poder reconhecível, em particular por efeito da presença dos bispos, autoridades cada vez mais influentes no campo político e administrativo. A decisão de instalar os bispos nas cidades administrativamente mais importantes do império, concretizada ainda na época romana segundo a orientação de Orígenes (c. 185-c. 253), contribui para que as cidades se mantenham como importantes centros organizativos e administrativos dos respectivos territórios circundantes, apesar da derrocada institucional e das transformações da sociedade, com o poder sempre crescente das estruturas eclesiásticas.

Do mesmo modo, de um ponto de vista urbanístico e construtivo, não no sentido da construção de igrejas, mas no da criação de novos espaços centrais e de uma completa reorientação urbanística, a cristianização das cidades é exactamente o mais forte sinal de transformação e de descontinuidade entre a cidade clássica e a cidade medieval. Ainda que sejam as diferenças locais a alcançar a supremacia e que estas transições ocorram com ritmos próprios nas diversas áreas, é possível indicar, de um modo geral, como momento de viragem crucial neste processo, os decénios da passagem do século VI para o seguinte.

Declínio e transformação

Devemos reconhecer a importância do papel desempenhado neste campo, especialmente a partir dos anos 70 do século XIX, pela arqueologia medieval, que por meio da identificação das estruturas edificadas possibilitou uma definição mais correcta dos espaços urbanos e da sua suposta retracção, não só com a identificação cada vez mais precisa de vestígios extremamente frágeis, como os furos de estacas e pilares, mas também com uma ampla revisão das cronologias até então utilizadas. A discussão deslocou-se, pois, do declínio para a transformação e, ao mesmo tempo, noutros aspectos, para a continuidade: os três são na realidade legitimamente utilizáveis para simples aspectos arquitetónicos, habitacionais ou sociais, mas dificilmente podem ser reunidos num quadro global.

Transformação e sobrevivência da cidade romana

É um dado de facto inelutável ter havido nas cidades da Antiguidade tardia uma mudança estrutural e funcional: a partir do século III, as magistraturas locais e as cúrias perdem visibilidade, as hierarquias eclesiásticas ganham-na e, com a construção ou reconstrução das cinturas muradas e a inserção das novas sedes do poder religioso e civil, o aspecto físico dos centros urbanos modifica-se. Ao mesmo tempo, vai-se perdendo gradualmente a especificidade administrativa e jurídica das cidades, que lhes é já homologada no âmbito de uma autoridade central mais forte, que no final do século III lhes retira, por exemplo, o direito de cunhar moeda autonomamente. Demonstra-o o facto de Menandro de Laodiceia, na época diocleciana, numa obra destinada a definir o modo correcto de escrever o elogio de uma cidade, e que atesta, portanto, uma prática retórica ligada à celebração das estruturas citadinas, ainda florescente, sublinhar que todas as cidades, já governadas por uma só lei, são por isso todas iguais». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,

No 31. Idade Média. Umberto Eco. «Em 476, não tendo obtido do magister militum Orestes (?-476) o estatuto de foederati, os soldados estacionados em Itália elegem Odoacro como rex (c. 434-493) e procedem à deposição do filho de Orestes, Rómulo Augústulo (459-476, imperador desde 475)»

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Da Queda do Império Romano do Ocidente a Carlos Magno

A instalação dos bárbaros

«No campo do direito, embora promulguem leis autónomas, os regna fazem-no num esforço de conciliação do seu direito consuetudinário com o ius romano: a uma primeira fase de coexistência de dois direitos diferentes para duas populações, segue-se a codificação em latim das leis, que já vencem limitações de aplicação e são entendidas como destinadas a toda a população. Ficam-nos como monumentos significativos o Breviarium Alaricianum (506), com que o rei visigodo Alarico II (?-507), soberano desde 484), dá ao seu povo (o primeiro para quem é produzida lei escrita com o Codex Euricianus, de c. 470) um resumo do Código Teodosiano, e as Variæ de Cassiodoro (c. 490-c. 583), que também retomam as formas do édito e do rescrito para testemunhar a actividade legislativa de Teodorico, o Grande. A própria presença de Cassiodoro, de Boécio e de outros membros da elite romana na sua corte já é apontada como sinal do desejo de integração do soberano ostrogodo.

A deposição de Rómulo Augústulo

Em 476, não tendo obtido do magister militum Orestes (?-476) o estatuto de foederati, os soldados estacionados em Itália elegem Odoacro como rex (c. 434-493) e procedem à deposição do filho de Orestes, Rómulo Augústulo (459-476, imperador desde 475). Este acontecimento, que é mais ou menos uma queda sem ruído, como lhe chama Arnaldo Momigliano (1908-1987), está inserido numa trama de longa duração e traz na sua esteira uma história de fragmentação regional, aquisição e desejo de autonomias cada vez mais acentuadas e de uma organização mediterrânica inicialmente integrada, que se desagrega numa série de regiões ávidas de auto-suficiência política e económica.

Ver também: História As migrações dos bárbaros e o fim do Império Romano do Ocidente, Justiniano e a reconquista do Ocidente; O Império Bizantino até ao período do iconoclasmo

Da Cidade ao Campo

A historiografia tradicional vê como um dos sinais do fim da Antiguidade o abandono das cidades e a preferência pelo campo. A realidade das estruturas urbanas tardo-antigas e alto-medievais é bastante mais complexa e deve ser explicada mais em termos de transformação do que de declínio: e facto, motivos propagandísticos, políticos, económicos e eclesiásticos  entrelaçam-se na determinação de um reposicionamento da cidade e do campo nas suas relações recíprocas.

O abandono das cidades

A historiografia tradicional do século XIX considerava o abandono das cidades e a transferência da população para os campos, para os latifúndios dos aristocratas, em conexão com a origem teórica do novo modo de produção feudal, também chamado sistema da curtis, fortemente baseado na auto-subsistência e com o declínio da actividade comercial, um dos traços distintivos da passagem para a Idade Média. Os centros urbanos iriam, portanto, despovoar-se e transformar-se parcialmente em simples aldeias com grandes extensões de áreas rurais até no interior dos muros.

Além disso, a transferência dos ofícios e do comércio para as zonas rurais envolveria a perda da especificidade económica das cidades. Ao contrário do mundo antigo, fortemente urbanizado, em que a cidade, símbolo da vida civil e em sociedade, é o centro de consumo e expedição dos bens produzidos no território circundante (quer se fale de cidade parasitária quer de cidade produtiva, o mundo da alta Idade Média seria, principalmente, rural. Em suma, é necessária uma definição a montante de cidade, não focada unicamente na sua construção, mas na componente política e social: é evidente que certos edifícios típicos da cidade antiga, como o teatro e o anfiteatro, desaparecem, mas este dado é significativo no aspecto cultural, não na definição das instalações urbanas». ». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

 Cortesia de PdQuixote/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,

sábado, 18 de maio de 2024

O Último Catão. Matilde Asensi.«Uma coisa é escrever umas palavras num computador e que a máquina procure o mesmo texto nas bases de dados, e outra é cotejar duas imagens de um objecto…»

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«Por que precisamente sete e não oito, ou cinco ou quinze, por exemplo? Por que todas diferentes? Por que todas envoltas por formas geométricas, como claraboias medievais? Por que todas encimadas por uma pequena coroa raiada...? Jamais poderíamos descobrir, me dizia compungida, era demasiado complexo e absurdo. Levantava o olhar das fotografias e dos croquis e a pousava na silhueta de papel, para ver se a distância das cruzes no corpo me dava a pista; mas não via nada, ou, ao menos nada que me ajudasse a resolver o hieroglífico, assim descia de novo os olhos até a mesa e me concentrava no estudo de cada uma das peculiares cicatrizes coroadas.

Glauser-Róist apenas pronunciou uma palavra durante aqueles dias; passava as horas mortas teclando no computador e eu sentia nascer em meu interior um rancor absurdo contra ele por perder o tempo tonteando daquela maneira enquanto minha cabeça ia se convertendo lentamente em pasta de papel.

A passos gigantescos se aproximava o domingo, 19 de Março, dia de São Giuseppe, e se impunha começar a preparar minha viagem a Palermo. Ia pouco a casa, apenas duas ou três vezes ao ano, mas, como boa família siciliana, os Salinas permaneciam indissoluvelmente unidos, para bem ou para mal, inclusive além da morte. Ser a penúltima de nove irmãos, daí meu nome, Otávia, a oitava, tem muitas vantagens quanto ao aprendizado e uso das técnicas de sobrevivência; sempre há algum irmão ou irmã mais velha disposta a torturar ou a humilhar debaixo do peso de sua autoridade, suas coisas são do primeiro que as apanha, seu espaço é invadido pelo primeiro que chegar, seus triunfos ou fracassos já foram os triunfos ou fracassos dos que vieram antes, etc...

Com certeza, a união entre os nove filhos de Filipa e Giuseppe Salina era indestrutível: apesar de minha ausência de vinte anos, da de Pierantónio, franciscano na Terra Santa, e da de Lúcia, dominicana residente na Inglaterra, contavam connosco para organizar qualquer festejo familiar, comprar qualquer presente para nossos pais ou adoptar qualquer decisão colegiada que afetasse à família.

Um dia antes da minha partida, o capitão Glauser-Róist voltou do almoço nos barracões da Guarda Suíça com um estranho brilho metálico em seus olhos cinzentos. Eu continuava totalmente enfrascada na leitura de um tedioso tratado sobre a arte cristã dos séculos VII e VIII, com a vã esperança de encontrar qualquer alusão ao desenho de alguma das cruzes.

Doutora Salina, murmurou após fechar a porta às suas costas. Tive uma ideia. Estou escutando, respondi, afastando de mim, com as duas mãos, o pesado compêndio. Precisamos de um programa de computador que coteje as imagens das cruzes do etíope com todos os ficheiros de imagens do arquivo e da biblioteca. Levantei as sobrancelhas em um gesto de estranheza. É possível fazer isso? Perguntei. O serviço de informática do arquivo pode fazê-lo. Fiquei pensando uns instantes. Não sei... Objectei pensativa. Deve ser muito complicado. Uma coisa é escrever umas palavras num computador e que a máquina procure o mesmo texto nas bases de dados, e outra é cotejar duas imagens de um objecto que podem estar arquivadas em tamanhos diferentes, em formatos incompatíveis, tomadas de ângulos distintos ou, inclusivé, com uma qualidade tão ruim que o programa não possa reconhecê-las como parecidas. Glauser-Róist me olhou com pena». In Matilde Asensi, O Último Catão, 2005, Editora Dom Quixote, ISBN 978-972-202-904-9.

Cortesia de EDQuixote/JDACT

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quarta-feira, 8 de maio de 2024

O Último Catão. Matilde Asensi.«… a tarefa se resumia na explicação dos signos, independentemente do que todos eles juntos queriam dizer, assim não havia outro remédio do que seguir adiante, sem sair do caminho assinalado, e esclarecer por fim o significado das sete cruzes»

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«Nas origens do cristianismo, e por surpreendente que possa parecer, a Cruz não foi objecto de adoração. Os primeiros cristãos ignoraram completamente o Instrumento do Martírio, preferindo outros elementos ornamentais mais alegres se de representar sinais e imagens. Além disso, durante as perseguições romanas, escassas, já que se reduziram à conhecida actuação de Nero após o incêndio de Roma no ano 64 e, segundo Eusébio (260-341, bispo de Cesárea), aos dois anos da mal chamada Grande Perseguição de Diocleciano (de 303 a 305), durante as perseguições romanas, como disse, a exibição e adoração pública da Cruz seria, indubitavelmente, muito perigosa, de modo que nas paredes das catacumbas e das casas, nas lápidas dos sepulcros, nos objectos pessoais e nos altares, apareciam símbolos tais como o cordeiro, o peixe, ou a pomba.

A representação mais importante, com certeza, era o Lábaro, o monograma formado pelas primeiras letras gregas do nome de Cristo, XP, ji e rho, que foi usado profusamente para decorar os lugares sagrados. Existiam múltiplas variações da imagem do Lábaro, em função da interpretação religiosa que se queria dar: por exemplo, sobre as tumbas dos mártires se representavam Lábaros com uma rama de palma em lugar da letra P, simbolizando a vitória de Cristo, e os monogramas com um triângulo no centro, expressavam o Mistério da Trindade.

No ano 312 de nossa era, o imperador Constantino o Grande, adorador do deus sol, na noite anterior à batalha decisiva contra Magêncio, seu principal rival pelo trono do Império, sonhou que Cristo aparecia e lhe dizia que gravasse essas duas letras, XP, na parte superior dos estandartes de seus regimentos. No dia seguinte, antes do combate, diz a lenda que viu aparecer o dito selo, adicionado de uma barra transversal formando a imagem de uma Cruz, sobre a esfera segadora do sol e, abaixo, as palavras gregas En-Toutoi-Nika, mais conhecidas em sua tradução latina de In hoc signo vinces, Com este signo vencerás. Como Constantino, inquestionavelmente, derrotou Magêncio na batalha da Ponte Milvio, seu estandarte com o Lábaro, chamado mais tarde Labarum, se converteu na bandeira do Império. Este símbolo, pois, adquiriu uma importância extraordinária no restante do Império Romano e, quando a parte ocidental do território, Europa, caiu em poder dos bárbaros, continuou sendo utilizada na parte oriental, Bizâncio, ao menos até ao século VI, momento em que, como já disse, desapareceu por completo da arte cristã.

Então, o Lábaro que nosso etíope exibia no torso era precisamente este que o imperador viu no céu antes da batalha; este com o travessão horizontal e não outra de suas variações, e não deixava de ser um dado curioso, e, mais que curioso, estranho, porque deixara de ser utilizada há catorze séculos, como bem testemunhava o Papa da Igreja São João Crisóstomo, que, em seus escritos, afirmava que, por fim, nos finais do século V, o dito símbolo fora substituído pela autêntica Cruz, exposta agora publicamente com orgulho e prodigalidade.

É certo que ao longo dos períodos românico e gótico os lábaros reapareceram como motivos ornamentais, mas com outras formas diferentes à simples e concreta do Monograma de Constantino. Bem, outro mistério aparentemente resolvido. Mas a palavra STAUROS repartida em letras pelo corpo continuava nos deixando na perplexidade mais absoluta. Cada dia que se passava o desejo de desenredar todo aquele embrulho, de compreender o que aquele estranho cadáver estava tentando nos indicar, ficava mais e mais angustiante. Com certeza, a tarefa se resumia na explicação dos signos, independentemente do que todos eles juntos queriam dizer, assim não havia outro remédio do que seguir adiante, sem sair do caminho assinalado, e esclarecer por fim o significado das sete cruzes». In Matilde Asensi, O Último Catão, 2005, Editora Dom Quixote, ISBN 978-972-202-904-9.

Cortesia de EDQuixote/JDACT

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