quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Pedro IV. A História Não Contada. Paulo Rezzutti. «Portugal preparou-se para o traslado do ex-monarca. Localizaram o corpo no Panteão dos Bragança, no mosteiro lisboeta de São Vicente de Fora, e providenciaram três novos caixões para Pedro…»

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Um morto e quatro e quatro funerais

«No final, São Paulo ganhou a disputa e ficou com o corpo da imperatriz. Dessa forma, dona Leopoldina, que escrevera certa vez à irmã Maria Luísa: nesta corte é necessário um espírito de sacrifício, sob todos os pontos de vista, acabou por ir parar a São Paulo, cidade em que nunca estivera em vida, na famosa colina do Grito, 126 anos depois de morta.

A vinda do corpo de dona Leopoldina abria um precedente. A cripta passava de cenotáfio a um local consagrado pela religião católica, condição imposta pelos trinetos de dona Leopoldina, Pedro Henrique e Pedro Gastão, para que concordassem com o traslado do corpo desde o convento, no Rio de Janeiro, até à colina do Ipiranga. Estava criada, assim, a oportunidade de preencher o outro sarcófago vazio, dedicado a Pedro I.

A possibilidade de trazer o corpo do imperador surgiu 18 anos após a chegada de dona Leopoldina à cripta. Em 1964, foi instaurado no Brasil, a partir de um golpe, um regime militar. O nacionalismo, a exaltação dos símbolos pátrios e das festas cívicas, nas quais se buscava um simulacro de participação política no Estado Nacional, constituíram o cenário perfeito para a apoteótica festa em homenagem aos 150 anos de independência, em 1972. Desse modo, um comité foi instituído pelo presidente Médici visando a preparação das festividades e as diligências junto de outra ditadura, a salazarista, de Portugal, paru a vinda do corpo de Pedro para o Brasil.

Assim, o nosso inquieto imperador atravessaria pela terceira vez o oceano Atlântico, agora para protagonizar um espetáculo repleto de símbolos históricos e religiosos. Transformado pela ditadura brasileira numa verdadeira relíquia sagrada, é de se considerar a opinião que Pedro, paladino liberal e constitucional sem muita paciência para solenidades, teria a respeito de ser usado por um sistema de governo contra o qual provavelmente, se vivo, lutaria.

Opositores e defensores não faltavam na época no Brasil, inclusive entre descendentes de pessoas ligadas intimamente à vida de Pedro, como José Bonifácio Andrada Silva e o marquês de Barbacena. Dois frutos da linhagem do Patriarca da Independência, o deputado federal Zezinho Bonifácio e o general António Carlos Andrada Serpa, estavam ao lado do regime militar, nada, aliás, muito diferente da índole do famoso antepassado, reputado como homem autoritário. Por outro lado, Vinícius Caldeira Brant, sociólogo e ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), bem como descendente do marquês de Barbacena, era torturado nos porões da ditadura durante as festividades do Sesquicentenário da Independência.

Portugal preparou-se para o traslado do ex-monarca. Localizaram o corpo no Panteão dos Bragança, no mosteiro lisboeta de São Vicente de Fora, e providenciaram três novos caixões para Pedro: um de madeira, estofado e forrado internamente com tecido, onde o corpo foi acomodado, envolvido por um de chumbo e outro de pau-santo ornado com símbolos portugueses e brasileiros. O peso total era de 250 kg.

O cerimonial em Portugal teve início em 10 de Abril de 1972, quando houve uma cerimónia religiosa no Panteão dos Bragança. Posteriormente, o esquife foi conduzido por soldados portugueses até ao exterior do templo, onde uma força do 5" Batalhão de Caçadores, do qual Pedro fora comandante, prestou ao monarca as devidas honras militares. O caixão foi colocado num veículo do exército e transportado por Lisboa, sob escolta de um esquadrão de cavalaria da Guarda Nacional Republicana, até ao cais de Santa Apolónia, onde veio a ser embarcado no navio Funchal por fuzileiros navais de ambas as nacionalidades. Nesse momento, dois navios de guerra, um brasileiro e um português, deram uma salva de 21 tiros». In Paulo Rezzutti, Pedro IV, A História Não Contada, 2015, Casa das Letras, 2016, ISBN 978-989-741-495-4.

Cortesia da CdasLetras/JDACT

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O Astrólogo e o Rei. Brigid Hampton. «Desvia o olhar dos olhos vermelhos da mãe, ciente de uma dor surda que começou a latejar-lhe dentro da cabeça. Pelo menos, as lágrimas…»

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Sevilha, 1492

«Tudo o mais desapareceu, como se uma grande ave vinda do caos tivesse aterrado ali e arrebatado tudo, deixando apenas alguns vestígios da vida que tinham antes, uma taça em cacos junto da porta, um lume a morrer no meio das cinzas. Tudo desaparecera!

A Mamá que ela conhece também desapareceu, embora o fantasma dela permaneça de pé, mesmo ao seu lado. A aparência é a mesma, mas tem os olhos vítreos e a respiração difícil, entrecortada; torce o xaile nas mãos e põe-se a limpar qualquer superfície que encontre. Umas vezes, suspira, outras, chora com grandes soluços dilacerantes que não têm nada que ver com a Mamá que ela conhece, porque essa Mamá tem o mesmo humor maluco do David e está sempre a dar risadinhas a propósito de tudo e de nada.

Ainda ontem a casa estava cheia de conversas e risos, porque o papá adora ter amigos à sua volta. Encontra caras novas na rua, ou então simplesmente apanha-os nas docas de Triana e leva-os para casa. A essência da vida, chama-lhes ele.

Espera até ouvires esta história, diz, enquanto os encaminha para dentro de casa. E depois começam as histórias: de naufrágios ao largo da costa de África, ou escaramuças com os mouros, ou as ilhas do Mar Oceano. Tudo contado em voz tão alta que, por vezes, pela noite dentro e depois de ir para a cama, Paloma só deseja que se vão todos embora e a deixem dormir.

Os vagabundos do papá estão sempre esfomeados, e não tarda que ele chame a pedir a sopa de açafrão com almôndegas, ervas aromáticas e ovos que a mãe consegue preparar enquanto o diabo esfrega um olho. Quando ela acaba de cozinhar, e servir, e limpar a confusão que eles deixam, o papá pega-lhe na mão e puxa-a para si. Agora, o meu rouxinol vai cantar para nós.

Então a Mamá, com uma expressão radiante e marota, ri-se e finge-se surpreendida. Ergue uma sobrancelha, daquela maneira que ela tem de dizer: Quem, eu?, e, sem mais delongas, ajusta o xaile sobre os braços, ergue o queixo e começa a cantar, gorjeando como um pássaro enquanto as notas altas e cristalinas se escapam pelas traves do tecto. Paloma tem sempre a impressão de que é nesse momento que a magia acontece. À luz das velas, o cabelo da mãe cintila em feéricos dardos de luz, enquanto o rosto se lhe ilumina como num encantamento.

Uma pancada na porta interrompe-lhe os pensamentos. O sinal do papá. Tempo de partirem. Pegando nas mãos da mãe, Paloma desembaraça-as do xaile. Alisa-lhe os caracóis para trás, cobre-lhe a cabeça e aconchega-lhe a pesada capa de lã à volta dos ombros. Anda, Mamá, deixa isso agora. Temos de ir.

Desvia o olhar dos olhos vermelhos da mãe, ciente de uma dor surda que começou a latejar-lhe dentro da cabeça. Pelo menos, as lágrimas da Mamá pararam. Mas podia morrer-se afogado naqueles enormes lagos negros. Inspirando profundamente, apaga a vela, com todos os esforços concentrados em ignorar as perguntas que consegue ver nas suas profundezas. Onde havemos de viver agora?

Com dedos trémulos, roda a chave na fechadura, ouvindo aquele clique familiar de quando o trinco entra na ranhura. Agarra com força na chave, sentindo a sua textura áspera contra a palma da mão. Num sopro, murmura para si própria as palavras: Não demores. Não olhes para trás.

O fontanário canta no silêncio, e no ar pairam os cheiros quotidianos a terra molhada e a cozinhados, enquanto ela guia a mãe através do pátio. Na sombra da parede, David está de atalaia a eventuais informadores que possam rondar as ruas, mesmo àquela hora' Segura a porta aberta e diz, em voz sibilada e ansiosa: - Não há ninguém. Vamos! Vá lá, Estie, coragem!» In Brigid Hampton, O Astrólogo e o Rei, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, Brigid Hampton, História, Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura,

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

O Astrólogo e o Rei. Brigid Hampton. «Levanta-se para encher os jarros de água, sentindo-se enjoada e com as entranhas às voltas. Dói-lhe a garganta e arde-lhe o estômago. Com as mãos trémulas, prepara mantimentos para a viagem. Queijo. Pão. Ovos cozidos. Um belo repasto de pêsames»

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Sevilha, 1492

«Nunca mais haverá uma noite tão longa quanto esta. Nem uma Lua tão implacável. Desliza, sorrateira, pelo céu, lançando a sua luz sobre a viela lá fora, arrastando a madrugada atrás de si.

O dinheiro cintila à luz das velas, dois montes bem alinhados sobre a mesa, ducados de ouro e reais de prata. Cem Estrelas apanhadas do céu. Paloma escolhe uma moeda, erguendo-a bem presa entre o polegar e o indicador. Pequena, brilhante, tem gravados os nomes do rei e da rainha de Espanha. Engole!, berra-lhe o pai, com uma expressão resoluta e feroz que ela nunca lhe vira até ali. Tenho mesmo de engolir?, pergunta ela, ouvindo a sua própria respiração rouca encher a sala.

Quem mais queres que o faça por ti? O papá tira uma moeda de ouro e mete-a rapidamente na boca. Bebe um gole de água e engole-a de um trago. Não custa nada!, grita com uma careta. Pega na faca e lança-se a cortar o pão. Não vais sentir nada. Os ducados como-os eu.

Paloma pega numa crosta de pão, parte um pedaço e humedece-o na boca com um gole de água. Mastiga. Leva a moeda aos lábios, entontecida pelo seu cheiro, como se fosse sangue. Sente o sabor amargo da massa húmida e a acidez do metal sobre a língua, e a seguir obriga-se a enfiá-la pela garganta abaixo, engasgando-se com os rebordos ásperos da prata batida.

Vês? A voz do papá é rouca. Este pode ser o melhor pequeno-almoço que alguma vez comeste! Tem de nos fazer aguentar durante muito tempo.

A família está sentada em silêncio à volta da grande mesa de carvalho, mastigando, engasgando-se e engolindo, enquanto observa as pilhas a diminuir.

Isto é perfeito para uma jornada! David, o irmão mais novo, ergue as sobrancelhas e revira os olhos, percorrendo a sala. Vai ser uma trabalheira voltar a reunir estes dois montes!

Enche as bochechas de ar e põe-se a saltar a pés juntos à volta da mesa, como um gafanhoto, atirando uma moeda ao ar e apanhando-a na boca aberta. Paloma lança-lhe um olhar de aviso e sufoca uma gargalhada irreprimível perante a cara cómica do irmão' Não tem graça, mas as cócegas que sente no peito recordam-lhe que, numa qualquer outra noite, estariam todos a rir-se das palhaçadas dele.

Levanta-se para encher os jarros de água, sentindo-se enjoada e com as entranhas às voltas. Dói-lhe a garganta e arde-lhe o estômago. Com as mãos trémulas, prepara mantimentos para a viagem. Queijo. Pão. Ovos cozidos. Um belo repasto de pêsames.

Vê a sala a andar à roda, uma realidade estranha à claridade desbotada de uma única vela. No chão, a arca onde o papá guarda os seus manuscritos e mapas, partida, mostra uma fenda grande na tampa onde ele lhe bateu, primeiro com o machado e depois com o punho, percorrendo a casa como o Anjo da Morte, destruindo toda e qualquer coisa que não conseguissem transportar consigo». In Brigid Hampton, O Astrólogo e o Rei, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.

Cortesia de PortoE/JDACT

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quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Pedro IV. Paulo Rezzutti. «A cripta sob o monumento foi construída no início da década de 1950, com as paredes revestidas em granito verde e o tecto, não mais existente, em mármore amarelo»

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Um morto e quatro e quatro funerais

«A sua paixão por velocidade levava-o a conduzir, ele próprio, os cavalos do seu veículo, e a cavalgar a toda a carga pelos arredores do Rio de Janeiro. Isso causou diversos acidentes, como o de 1823 que o prendeu ao leito partido e sujo, semelhante ao estado em que se mostrava a meus olhos naquela manhã de Abril.

Quanto a ser aventureiro, então, esse é um capítulo à parte. Pedro não pensou duas vezes antes de se declarar brasileiro e lutar contra Portugal, terra natal da qual era herdeiro, pela independência do Brasil. Também não temeu largar tudo neste último país para reunir, após penhorar joías e prataria, um exército que invadisse Portugal e destronasse o irmão a favor da filha.

Se é na morte, como dizem, que encontramos a paz e o descanso que a vida nos tirou, Pedro não teve essa sorte. Aquela era a quarta vez que o tinham sepultado. A anterior havia ocorrido em meados de 1987, em virtude das obras no monumento e de uma das inúmeras inundações ocorridas na cripta. Os sarcófagos por pouco não acabaram submersos. Os seus imperiais ocupantes viram-se, como diversos outros brasileiros, com a casa inundada e tiveram de se abrigar num vizinho ou parente, no caso o Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga.

Os caixões de Pedro e de dona Leopoldina ficaram expostos ao grande público no salão Nobre do Museu, aos pés do quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo; para arrepio de alguns professores que conduziam excursões escolares e sussurros de rápidas ave-marias entre funcionários. Voltaram a cripta no final dos anos de 1980, em cima de um veículo militar escoltado por oficiais de diversas armas, em mais uma comemoração do 7 de Setembro.

A cripta sob o monumento foi construída no início da década de 1950, com as paredes revestidas em granito verde e o tecto, não mais existente, em mármore amarelo. O controverso Monumento à Independência, que fica acima, conhecido como bolo de noiva, é de 1922. Inicialmente, a cripta seria um cenotáfio, espécie de memorial fúnebre em homenagem a Pedro e dona Leopoldina, representados pelos sarcófagos vazios. O corpo da imperatriz permaneceu de 1826 a 1911 no convento da Ajuda. Devido às obras de remodelação da área central do Rio de Janeiro, o convento foi demolido e os sarcófagos de membros da família imperial, transportados para o Convento de Santo António. Pedro esteve em Portugal desde o falecimento, em Setembro de 1834.

O cenário mudou em 1954, durante a preparação para os festejos do quarto centenário da cidade de São Paulo. O instituto histórico local resolveu coroar a festa levando o corpo de dona Leopoldina do Rio de Janeiro para a capital paulista, a fim de o depositar na cripta. Um longo braço de ferro entre a ordem Franciscana, responsável pela guarda do corpo da imperatriz, e a comissão dos festejos teve início com o presidente Getúlio Vargas e o ministro da Educação e Cultura de um lado, querendo fazer a vontade dos paulistas, e os franciscanos, protegidos pelo arcebispo do Rio de Janeiro, dom Jaime Câmara, do outro». In Paulo Rezzutti, Pedro IV, A história não contada, 2015, Casa das Letras, 2016, ISBN 978-989-741-495-4.

Cortesia da CdasLetras/JDACT

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segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Memórias da Erra. Maria A. Mendes Brotas. «A pedra estava ao comprido com a parede do lado do Evangelho, assente verticalmente sobre três imperfeitas cabeças de leão, a qual foi comprada em hasta pública em 1887…»

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Com a devida vénia a Vanessa Caetano e Bruno Pedro

«Em 1887 ainda se podiam vet as ruínas da bela igreja Matriz, destruída em 1775, restando dela apenas a torre sineira do cemitério. Numa das faces da torre pode ver-se um escudo com as armas reais mantelado por um chapéu episcopal, o qual deve ser o escudo do bispo dom Lourenço Alencastre. A fundação da velha igreja deve-se a alguma jornada de Afonso Henriques depois da tomada de Santarém. Nas suas ruínas encontraram numa das paredes da capela-mor, fechando uma sepultura, uma pedra com brasões insculpidos, tendo uma inscrição em letra gótica e a data de 1507. Esta pedra tinha três brasões, num dos quais, o do lado esquerdo, se viam dois animais desconhecidos e, em volta, doze grupos de quinas; o do lado direito tinha no centro duas réguas em X com uma estrelinha em cada um dos quatro ângulos e em volta doze cruzinhas também em X; o escudo do centro era circundado por quinze castelos, um dos quais tinha um grupo de sete floretes, uma fivela e flores semelhantes às flores de lis. Por cima destes três escudos lia-se com dificuldade em letra gótica: Aqui jaz… corte d’el-rei… da Erra… suas mulheres… que… faleceu… de mil quinhentos e sete.

 inscrição anterior era a seguinte:  Aqui jaz Álvaro de Campos da corte d'El-Rei e senhor desta vila da Erra, e suas mulheres com elle, que faleceo na era de mil quinhentos e sete.

A  pedra estava ao comprido com a parede do lado do Evangelho, assente verticalmente sobre três imperfeitas cabeças de leão, a qual foi comprada em hasta pública em 1887 pelo senhor João Godinho, de Almeirim, bem como outras arrancadas das paredes da igreja. A Junta de Paróquia chegou a oferecê-la ao Museu Arqueológico de Santarém e este mandou um carro para a levar, mas o povo revoltou-se no acto do carregamento contra a determinação da Junta e não consentiu que ela saísse. A Junta então resolveu vendê-la e assim se perdeu. Valor material e mesmo artístico tinha pouco, mas arqueológico creio que tinha bastante». In Maria Amélia Mendes Brotas, Memórias da Erra, Câmara Municipal de Coruche, Gráfica Central de Almeirim, 2001, Depósito Legal 163515/01.

 Cortesia da CMCoruche/JDACT

JDACT, Maria A. Mendes Brotas, Coruche, Erra, Vanessa Caetano, Bruno Pedro, Cultura, Conhecimento, Literatura,

Memórias da Erra. Maria A. Mendes Brotas. «A Erra tornou-se vila em 18 de Setembro de 1375, possivelmente em consequência da Lei das Sesmarias. Até aí pertenceu ao concelho de Coruche, mas nesse mesmo ano o monarca Fernando I criou a vila da Erra…»

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Com a devida vénia a Vanessa Caetano e Bruno Pedro

A origem do nome da Erra

«Conta-se que o nome desta terra era Vila Nova, mas quando Afonso Henriques se dirigia com as suas tropas para conquistar Santarém enganou-se no caminho e veio parar à Erra.

Perguntou então a um dos seus habitantes qual o nome desta localidade, ao que ele respondeu: Vila Nova, meu senhor.

Então Afonso Henriques ordenou: A partir de agora chamar-se-á Vila Nova do Erro.

Com o rodar dos tempos alterou-se o nome para Vila Nova da Erra ou, simplesmente, Erra.

Apontamentos históricos sobre a Erra

É-me impossível dizer a idade desta terra, que parece ser antiquíssima, já que não existem documentos históricos, pois não houve ninguém que cuidasse da sua conservação. Não tenho dúvida em acreditar que esta vila foi tomada aos mouros por Afonso Henriques em 1165.

A Erra foi uma povoação muito importante fundada pelos romanos. O padre Gaspar Barreiros, no seu livro Corografia, editado em 1560, revela que na Erra teve assento o Aritium Praetorium onde residia o governador romano provincial e onde tinha o seu tribunal para julgamento; facto é que aqui se têm encontrado lápides funerárias e moedas romanas.

A Erra tornou-se vila em 18 de Setembro de 1375, possivelmente em consequência da Lei das Sesmarias. Até aí pertenceu ao concelho de Coruche, mas nesse mesmo ano o monarca Fernando I criou a vila da Erra, elevou-a a sede de concelho e dela fez mercê aos próprios moradores. Nesse documento se enumeram os privilégios concedidos a todos aqueles que desejassem vir morar para aqui, privilégios esses que foram confirmados por João I, o que motivou que entre o concelho de Coruche e a vila da Erra começassem a surgir rivalidades. O próprio rei teve de intervir em 1380 para resolver as questões levantadas. Coruche não aceitava o novo concelho, mas o rei confirmou-o. A luta era por causa dos limites, da água de regadio e cortes de madeira, tendo João I, em 1425, traçado os limites definitivos do concelho. A Erra teve o seu Foral em 10 de Julho de 1514, dado por Manuel I, e deve ter atingido o seu período de engrandecimento nos princípios do século XVI. Nessa época incluía nos seus domínios a aldeia de Santa Justa.

Na Erra havia Câmara, juiz ordinário, cadeia, forca, hospital  (propriedade da Misericórdia em regime de internato), um convento, uma bela igreja matriz e as capelas da Misericórdia e a de São Caetano. Em 1823-24 ainda existia Câmara, como o prova um Livro de Actas que se encontra no Arquivo Municipal dee Coruche. Era formada por dois juízes, três vereadores e um procurador, eleitos de três em três anos. O hospital ficava em frente da cadeia, da qual ainda existem ruínas.

Havia também uma esquisita chaminé a que chamavam forca, que se supõe ser do solar da família Vidigal Paes, a qual foi demolida em 1883 e arrancados todos os alicerces da antiga casa. Encontraram aí uma pedra sem data, mas com inscrição de uma instituição de missas pela família Cota Falcão. O sítio ficou denominado por Casas Altas, mas vivem aqui pessoas que dizem ter sido na Cova do Cardeta que existiu a forca». In Maria Amélia Mendes Brotas, Memórias da Erra, Câmara Municipal de Coruche, Gráfica Central de Almeirim, 2001, Depósito Legal 163515/01.

Cortesia da CMCoruche/JDACT

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Napoleão Vem Aí. Domingos Amaral. «De nada valiam essas palavras tranquilizadoras e, sentado no seu cadeirão de abas, Miguel volta a questionar-se sobre a existência de um motivo mais íntimo que justifique tanto desatino»

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A Invasão Francesa

29 de Setembro de 1808

(véspera da morte de Ana)

«Desde esse malfadado dia de Março, Miguel convencera-se de que Ana já não o amava e enchera-se de um pessimismo cru, que lhe anulou o habituai sentido de humor. Quem o salvou foi a revolta do povo português contra os franceses. Na sua alma ressuscitou um alento que julgara desaparecido e, seis meses depois de ter fugido, regressou a Lisboa juntamente com a tropa portuguesa e os aliados britânicos, os verdadeiros vencedores das batalhas contra os invasores napoleónicos.

Porém, se na política e na guerra já se reabilitara, no amor confirmou-se perdido. Quando, em Setembro de 1808, reentrou num palacete degradado e desmazelado, onde as galinhas andavam pelas salas, deparou-se-lhe uma estranha, embora em tudo idêntica à mulher que desposara: a mesma

Cara, a mesma inimitável gritaria.

A história de Ana era a história dos seus gritos, só que agora estes eram de revolta ácida, provocados pela inesperada derrota de Junot na batalha do Vimeiro, ou de decepção com o terrível equívoco a que a leitura das guelras dos peixes, que ela constantemente fazia, a tinham conduzido.

Na garganta de Ana existira sempre um grito pronto a soltar-se. O general Galopim, pai dela, costumava dizer que a fllha não gritava de fome como o povo, mas de desilusão constante, frustrada com a ausência diária de um brilho e uma grandeza a que julgava ter direito. Ana educava o filho aos gritos, berrava com as submissas criadas e com as galinhas e urrava de alegria com as amigas.

Só não gritava comigo, murmura Miguel. Mas também isso foi chão que deu uvas!

Desde que voltara a casa, os gritos haviam-se multiplicado, em fervor e frequência. Ana exibia agora uma turbulência vocal alucinante e fechara-se no quarto após a partida das tropas napoleónicas de Lisboa. Deitada na cama, usando as colchas e os lençóis como escudos protectores, urrava de desapontamento, pois vira sucumbir a poderosa crença, que durante tantos meses alimentara, de que Napoleão iria dominar Portugal. Em agudo sofrimento, antecipava um castigo perigoso por ter convivido de mais com o general Junot e a sua alcateia colorida.

O povo português odiava os franceses e, agora que estes tinham sido vencidos, acusava de traição os seus apoiantes, e Ana imaginava-se já num tribunal ou mesmo na prisão. Miguel, que há meses a criticara por ter escolhido o caminho errado, garantia-lhe agora que a proximidade dela aos franceses nem seria um assunto, pois não só era filha de um general e esposa de um governante, como nunca apoiara em público a pretensão de Junot ao trono de Portugal.

De nada valiam essas palavras tranquilizadoras e, sentado no seu cadeirão de abas, Miguel volta a questionar-se sobre a existência de um motivo mais íntimo que justifique tanto desatino. É uma dúvida que transporta há meses. Desejaria Ana ter partido com Junot e os franceses? Amaria ela um daqueles generais vaidosos e falsos que tinham aterrorizado Portugal: o Delaborde, o Kellerman, o Loison? Teria sido uma das amantes de Junot, o pedante duque de Abrantes?» In Domingos Amaral, Napoleão Vem Aí, Casa das Letras, LeYa, 2021, ISBN 978-989-661-041-8.

 Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Napoleão, Literatura, Portugal,

domingo, 17 de setembro de 2023

Napoleão Vem Aí. Domingos Amaral. «Dentro de casa, a excitação barulhenta da mulher assemelhara-se a um exercício de tortura, mas, ao longo da viagem de carruagem até Coimbra…»

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A Invasão Francesa

30 de Setembro de 1808 (dia da morte de Ana)

«(…) Francisca sai do quarto, mas Miguel permanece junto ao corpo inerte da mulher. Custe o que custar, terá de enfrentar o general Galopim, seu sogro. Teme a tormenta que vem aí e sente um profundo cansaço, pois dormiu pouco durante a noite. Deus me ajude, murmura.

Volta a observar os lábios de Ana, escuros e fechados, e parece-lhe ouvir os gritos dela, mas sabe que nunca mais os vai escutar. Eram tantos e tão intensos. Suportou-os a vida toda. A memória é uma bruxa e as nossas recordações são os feitiços que nos lança. Demónios, só demónios.

Na véspera, os diabos andaram à solta. Tomaram conta do palacete, como as galinhas que por ali cacarejam sem rei nem roque, largando os detritos pelos corredores e as penas pelos cantos. Ele lembra-se, ontem foi um longo dia.

29 de Setembro de 1808

(véspera da morte de Ana)

Napoleão vem aí!

O grito entusiasmado que Ana dera ao saber da vinda do imperador francês a Lisboa, fora o dobre de finados daquele casamento. Sentado no seu cadeirão de abas, na sala do palacete da família, aquele maldito grito soa ainda a Miguel como a explosão de uma bomba próxima, que nos faz doer os tímpanos e fere o corpo com estilhaços.

Os exércitos franceses tinham invadido Portugal em Novembro de 1807, comandados pelo general Junot, mas fora apenas em Março do ano seguinte que aquela matilha de oficiais pedantes entrara em completo delírio, preparando-se para a chegada de Bonaparte.

A errada convicção de que Napoleão já atravessava os Pirenéus provocou forte comoção em Lisboa e também dentro do palacete de Miguel, onde Ana se lançou num frenesim de distribuição de ordens às criadas, enquanto o poderoso Junot se enchia de um brio autoritário, mandando engalanar o Palácio de Queluz para receber o imperador e perseguindo os portugueses que resistiam à sua voz de comando um dos quais Miguel, membro do Governo.

Em Março de I808, ninguém sabia ainda que o imperador não viria a Portugal e por isso nesses tristes dias, enquanto ouvia ecoar pelo palacete aquele insuportável Napoleão vem aí!, Miguel convencera-se de que tinha a liberdade em risco e decidira fugir.

Dentro de casa, a excitação barulhenta da mulher assemelhara-se a um exercício de tortura, mas, ao longo da viagem de carruagem até Coimbra, onde se exilou durante meses, o que mais lhe custara fora a memória do desinteresse de Ana. Ele a partir à pressa e ela fria e alheia, sem sequer se despedir. Nem um beijo de adeus, como se lhe fosse absolutamente indiferente separar-se do marido». In Domingos Amaral, Napoleão Vem Aí, Casa das Letras, LeYa, 2021, ISBN 978-989-661-041-8.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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domingo, 10 de setembro de 2023

A Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «Como única resposta, a freira convidou-a a observar o inchaço violáceo na cabeça. Receio que um fragmento ósseo se tenha desfeito e esteja a comprimir o cérebro»

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A Pedra do Exílio

Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346

«Foi então que Maynard de Rocheblanche compreendeu. A intriga em que fora metido era bem mais ampla e complexa do que poderia ter imaginado. Karel do Luxemburgo não devia ser o único homem de poder envolvido na morte de Jang Blannen, e talvez nem sequer o mais perigoso. O cavaleiro intuiu que não se podia permitir agir com ingenuidade. Tinha a sensação de se encontrar sob o alcance de um grande olho que o observava de cima. O olho de um indivíduo desapiedado que o cercaria por todos os lados.

Observou pela última vez o bosque onde a mulher desaparecera. Depois, procurando vencer a ansiedade, esporeou o cavalo para este, ao longo do caminho que serpenteava à luz de um novo dia.

Reims, Convento de Sainte-Balsamie

8 de Setembro

Os dedos da freira passaram pela cabeça do homem inconsciente, exercendo uma leve pressão nas margens do hematoma, pouco acima da têmpora. A irmã Eudeline observava-o em silêncio, ansiando por uma resposta, e entretanto pensava no homem que ficara à espera, fora do valetudinarium.  Trata do meu companheiro de armas, dissera-lhe. Depois falamos. Eudeline assentira, apesar de agastada pela sua atitude. O irmão apresentara-se depois de quase dois anos de ausência e nem sequer se dera ao trabalho de lhe apertar as mãos, quanto mais de lhe dirigir uma palavra carinhosa. E sabia Deus como precisava disso. A clausura concedera paz e sabedoria, mas roubara-lhe os momentos de alegria decorridos em companhia de Maynard e da mãe de ambos. Essas memórias nunca a abandonavam, nem nas horas de oração, quando tudo o resto se eclipsava em torno das luzes esfumadas dos círios. Contudo, Eudeline não teria abandonado o claustro por motivo algum no mundo, visto que entre os seus muros encontrara a salvação. Não apenas da alma, mas também da razão. A monja infirmaria retirou os dedos do hematoma.

Reverenda madre, parece-me que o inchaço se deve a uma fratura. Uma ferida grave?, perguntou Eudeline, regressando à realidade. Aproximou-se de Robert de Vermandois, deitado numa comprida tábua de madeira, entregue a um atormentado delírio.

Como única resposta, a freira convidou-a a observar o inchaço violáceo na cabeça. Receio que um fragmento ósseo se tenha desfeito e esteja a comprimir o cérebro. Hesitou um instante e depois pousou a mão sobre dois livros colocados na mesa que se encontrava ao lado, como que para avalizar a sua tese.

Eudeline conhecia bem aqueles códices, os manuais de prática cirúrgica de Rogerio Frugardi e de Henri de Mondeville. Havia anos, ela própria os consultara, para aprender algumas noções da arte médica, mas sentira-se repugnada. Apercebendo-se de que estavam abertos nas ilustrações do crânio humano, foi tomada de um frémito. Pensais que será necessário...

Se estiver certa, terei de fazer uma incisão na pele e no osso, disse a freira, determinada. Precisarei de ajuda, talvez da irmã Marie... Eudeline abanou a cabeça. A irmã Marie é velha, não tem mão firme». Então quem...» In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

JDACT, Marcello Simoni, Literatura,  Conhecimento, Itália,

A Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «O barão picardo avançava para ele e um passo vacilante, pronto a desferir a acha. A desconhecida da capa negra dirigiu um último olhar a Maynard, como se desejasse desafiá-lo…»

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A Pedra do Exílio

Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346

«- Maynard desferiu-lhe um murro no ventre, encontrando a resistência de uma brigantina guarnecida de tachas. A mulher recuou. Por um instante, manifestou a intenção de desejar continuar a bater-se, mas depois observou o homem morto por Vermandois e deteve-se, dividida entre a raiva e a indecisão.

O barão picardo avançava para ele e um passo vacilante, pronto a desferir a acha. A desconhecida da capa negra dirigiu um último olhar a Maynard, como se desejasse desafiá-lo, ou seduzi-lo. por fim, fugiu, diluindo-se na escuridão a mata.

O cavaleiro foi tentado a segui-la, mas logo que viu Robert diante de si compreendeu que o barão se encontrava em estado de desespero. Meu amigo..., murmurou, ao vê-lo abater-se na terra.

Inclinou-se sobre ele, julgando-o perdido. Apercebendo-se de que ainda respirava, colocou-lhe a cabeça no seu colo. Durante o combate, a cabeça do picardo sofrera um golpe bastante violento. Estava suja de sangue, com uma ferida feia por cima da têmpora direita.

Maynard rasgou uma tira de tecido para o enfaixar, de modo a bloquear a hemorragia, embora soubesse que um remédio daquele tipo não era suficiente: Não vos abandonarei sussurrou-lhe, quase para se tranquilizar a si mesmo. Como resposta, recebeu um grunhido sonolento.

A madrugada começava a iluminar a mata, no limite da clareira. Ainda abalado pelo sucedido e precisando de reflectir, o cavaleiro forçou-se a não perder tempo. Selou os cavalos e carregou o companheiro em fim de vida no seu corcel, prendendo-o ao arção e às correias para se assegurar de que não o perdia durante o trajecto. Já sabia para onde o deveria levar. Em meio-dia, contava entregá-lo aos cuidados de mãos experientes. No entanto, antes de subir para a garupa, quis ver quem era o sicário morto durante o confronto.

O homem jazia de costas, com o tronco dilacerado por um golpe de acha. Trazia uma capa preta e uma brigantina ornada de tachas, tal como a mulher que viera com ele. Maynard reparou logo na fivela que tinha à cintura. Com grande espanto, apercebeu-se de que reproduzia um escudo de armas com um leão de prata em campo vermelho. Observou atentamente a insígnia, para se certificar de que não se enganara, mas com angústia teve de se render às evidências. Era o mesmo que aparecia no castão do anel cardinalício». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

 Cortesia de CdoAutor/JDACT

JDACT, Marcello Simoni, Literatura,  Conhecimento, Itália, 

sábado, 9 de setembro de 2023

Blasfémia. Douglas Preston. «Colby pulsó algunas teclas, con lo que el sonido etéreo aumentó ligeramente. Noventa y seis, dijo. Luminosidad, diecisiete coma cuatro TeV, dijo Chen. Noventa y siete… noventa y ocho…»

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Julho

«Cinco horas después, y con el mismo número de malos cafés en el cuerpo, era Dolby quien estaba frente a la enorme pantalla plana, todavía oscura; los haces de protones materia-antimateria aún no se habían puesto en contacto. Se tardaba una eternidad en arrancar la máquina y enfriar los imanes superconductores del Isabella para que condujesen una potencia tan descomunal como la requerida. El paso siguiente era aumentar la luminosidad de los haces por incrementos del cinco por ciento, enfocar y colimar los haces, comprobar el estado de los imanes superconductores y ejecutar varios programas de prueba antes de aumentar otro cinco por ciento.

Potencia al noventa por ciento, informó Dolby. Mierda!, renegó Volkonski a sus espaldas, dando tal porrazo a la cafetera Sunbeam, que esta tembló como el Hombre de Hojalata. Ya está vacía!

Dolby reprimió una sonrisa. Durante las dos semanas que llevaban allí arriba, en la mesa, Volkonski se había revelado como todo un elemento, un sabelotodo entre colgado y con estilo: sucio, desgarbado, con el pelo largo y grasiento, camisetas desastradas y una mosca de pelo pegada a la barbilla; tenía más aspecto de drogadicto que de programador brillante. Claro que eso mismo podía decirse de muchos otros.

Transcurrieron algunos segundos, lentamente. Haces alineados y enfocados, dijo Rae Chen. Luminosidad catorce TeV. Esto, va bien, Isabella, dijo Volkonski. Luz verde en todos mis sistemas, informó Cecchini, el físico de partículas. Algo anormal, Wardlaw? Era el jefe de seguridad, que contestó desde su puesto de control. Solo cactus y coyotes. Bien, ya es la hora, dijo Hazelius. Hizo una pausa teatral. Ken, haz colisionar los haces. Dolby notó que se le aceleraba el corazón. Movió sus dedos largos y finos y ajustó los controles con la habilidad de un pianista. Lo siguiente que hizo fue teclear una serie de comandos. Contacto.

Los enormes monitores de pantalla plana distribuidos por la sala despertaron de golpe. Súbitamente pareció flotar música en el aire, como salida de todas partes a la vez, o de ninguna. Qué es eso?, preguntó Mercer, alarmada. Un billón de partículas pasando por los detectores, dijo Dolby. Producen una vibración muy aguda.

Madre mía! Suena como el monolito de 2001! Volkonski aulló como un mono, pero nadie le hizo caso.

En el panel central, el visualizador, apareció una imagen. Dolby se la quedó mirando como en trance. Era una especie de inmensa flor: trémulos chorros de colores brotaban de un solo punto y se retorcían como si quisieran salir de la pantalla. Le impresionó su intensa belleza.

Establecido el contacto, dijo Rae Chen. Los haces están enfocados y colimados. Dios, es una alineación perfecta! Se oyeron hurras y algún que otro aplauso. Señoras y señores, dijo Hazelius,  bienvenidos a las costas del Nuevo Mundo! Señaló el visualizador. Estáis viendo una densidad de energía que no se había visto en el universo desde el Big Bang. Se volvió hacia Dolby. Por favor, Ken, ve aumentando la potencia punto por punto hasta noventa y nueve.

Dolby pulsó algunas teclas, con lo que el sonido etéreo aumentó ligeramente. Noventa y seis, dijo. Luminosidad, diecisiete coma cuatro TeV, dijo Chen. Noventa y siete… noventa y ocho… Se hizo un silencio tenso. Solo se oía el zumbido que llenaba la sala de control subterránea, como si la montaña que los rodeaba cantase con voz propia.

Los haces siguen enfocados, informó Chen. Luminosidad, veintidós coma cinco TeV. Noventa y nueve». In Douglas Preston, Blasfémia, 2007, Saída de Emergência, 2010,ISBN 978-989-637-201-9.

 

Cortesia de SEmergência/JDACT

 

JDACT, Douglas Preston, Ciência, Literatura,

Os Cem Sentidos Secretos, Amy Tan. «A mãe acha que o facto de ter casado fora da raça anglo-saxónica faz dela uma liberal. Quando Jack e eu nos conhecemos, ela ainda diz às pessoas, havia leis contra casamentos mistos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Aos seis anos de idade, a americana Olivia conhece a meia-irmã chinesa Kwan. Com a morte do pai das duas, um chinês que emigrara para os Estados Unidos, e de sua própria mãe, Kwan chega para morar com a família de Olivia. Imediatamente Kwan assume o papel de mãe super-protectora da irmã, mesmo sob os constantes protestos de Olivia. No quarto que dividem, Kwan murmura segredos sobre fantasmas e pede a Olivia que jamais os revele.

Trinta anos depois, Olivia está se divorciando de Simon, após um longo casamento. Por motivos profissionais, no entanto, fazem uma viagem à China, e Kwan os acompanha. Na cidadezinha onde Kwan cresceu, Olivia busca entender o que a lógica ignora e que só pode conhecer por meio de seus sentidos secretos.

Ambientada em San Francisco e numa remota cidade ao sul da China, Os cem sentidos secretos aborda as diferenças culturais entre a América e a China. Na figura das duas irmãs, unem-se os dois universos. Olivia é uma pessoa racional e céptica sobre os aspectos místicos de sua, ascendência chinesa; Kwan tem visões e acredita que uma pessoa pode ter vidas múltiplas.

A Moça de Olhos Yin

Minha irmã Kwan acredita que tem olhos yin. Ela enxerga aqueles que já morreram e que agora habitam o Mundo de Yin, fantasmas que saem das brumas apenas para visitá-la em sua cozinha na rua Balboa, em San Francisco.

Libby-ah, ela costuma me dizer. Adivinha quem eu vejo ontem, você adivinha. E eu não preciso adivinhar que ela está se referindo a alguém morto. Na verdade, Kwan é minha irmã: meia-irmã, embora eu não deva mencionar isto em público. Seria um insulto, como se ela merecesse apenas cinquenta por cento do amor da nossa família. Mas, apenas para esclarecer o aspecto genético, Kwan e eu temos o mesmo pai, só isso. Ela nasceu na China. Meus irmãos, Kevin e Tornmy, e eu nascemos em San Francisco depois que meu pai, imigrou para cá e se casou com nossa mãe, Louise Kenfield.

A mãe se refere a si mesma como churrasco misto americano, um pouco de tudo que é branco, gorduroso e frito. Ela nasceu em Moscow, Idaho, onde foi campeã de manejo de bastão e uma vez recebeu um prémio numa feira por ter cultivado uma batata deformada que tinha o perfil de Jimmy Durante. Ela me contou que sonhava que um dia ia ser diferente, magra, exótica e aristocrática como Luise Rainer, que ganhou um Oscar pelo papel de O-lan em Terra dos deuses. Quando a mãe se mudou para San Francisco e se tornou, em vez disso, uma secretária, ela fez a segunda melhor coisa. Casou com nosso pai.

A mãe acha que o facto de ter casado fora da raça anglo-saxónica faz dela uma liberal. Quando Jack e eu nos conhecemos, ela ainda diz às pessoas, havia leis contra casamentos mistos. Nós desobedecemos à lei por amor. Ela não menciona que aquelas leis não valiam na Califórnia». In Amy Tan, Os Cem Sentidos Secretos, G.P. Putnam's Sons. 1995, Editora Rocco, 1996, 96-0961, CDD 813, CDU 820(73)-3.

 Cortesia de ERocco/JDACT

JDACT, Amy Tan, Literatura,

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

A Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «Confessai! Estais às ordens do príncipe Karel? E se estivesse?, sibilou, dominando-o com o seu corpo franzino»

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A Pedra do Exílio

Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346

«Rocheblanche já assentava o derradeiro golpe quando os gritos de Robert chamaram a sua atenção. Voltou-se apenas a tempo de o ver estremecer sob um golpe desferido a meio da cabeça. Vermandois vacilou, mas não caiu, e com um movimento inesperado vibrou uma pancada nos joelhos do adversário, deitando-o por terra.

Não pensando estar fora de perigo, o cavaleiro voltou-se imediatamente para o seu rival/ agora aturdido pelo impacto. Girou o pulso para o trespassar na garganta, mas deteve-se um segundo antes. A luz da Lua insinuara-se finalmente entre as abas do capuz negro, revelando algo que o fez recuar.

Um rosto de mulher.

Maynard esqueceu-se do ardor do due1o, combatido entre o fascínio daquela mulher e a curiosidade de saber o que a levara a atacá-lo.

Porque me atacais?, perguntou-lhe em tom ameaçador. Os lábios da mulher abriram-se num rosnar impiedoso. A sua voz era rouca, árida como vento de inverno. Sabemos tudo... Sabemos que sois vós que o tendes!

Ele fitou-a, desfalecido, tentando compreender o sentido daquelas palavras. O pergaminho com o anel!, explicou a mulher, quase desiludida com a sua ingenuidade. Que guardais tão zelosamente.

Uma recordação relampejou na mente de Maynard: o rapaz a surpreendê-lo na tenda com o anel na mão. Talvez aquele episódio não tivesse ocorrido por acaso. Ou talvez o rapaz o tivesse confiado a alguém, e a informação tivesse chegado aos ouvidos da pessoa errada... Ligada a Karel do Luxemburgo! Embora ignorasse o que realmente acontecera, o acto do príncipe de se aproximar com o carro ganhava agora um significado bem preciso. Cuidado, insinuara com o seu sorriso de serpente, descobri o logro.

O rapaz, exclamou de repente o cavaleiro. O que lhe haveis feito?-Afeiçoara-se a vós. A desconhecida sorriu, angelical e cruel. Em vez de continuar a espiar-vos, preferiu morrer e, aproveitando a hesitação do rival, assestou-lhe: um pontapé no joelho esquerdo. Rocheblanche caiu, mas, antes de tocar o chão, agarrou-se à capa da mulher para a arrastar consigo.

Então éreis vós na sacristia da igreja! Agarrou-lhe o pulso para evitar que lhe trespassasse um olho. Confessai! Estais às ordens do príncipe Karel? E se estivesse?, sibilou, dominando-o com o seu corpo franzino.

Dai-me o pergaminho ou mato-vos! Nunca!»  In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

 JDACT, Marcello Simoni, Literatura,  Conhecimento, Itália,

A Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «Um inesperado grito de batalha lembrou-o de Vermandois. Olhou pelo canto do olho, para trás de si, e viu-o manipular uma acha contra um homem armado de espada, voltando a defender-se»

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A Pedra do Exílio

Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346

«Será então como dizeis, Rocheblanche, insistiu o picardo, mas espero que no momento em que esta impressão se transformar numa ameaça tenhais ao vosso lado um companheiro ousado para vos apoiar.

O cavaleiro evitou replicar e permaneceu em silêncio até entender ter chegado o momento de virar para leste. Então, afastou-se com Robert da companhia de Filipe VI, para enveredar pela estrada que o conduziria a casa. E, como acontecia sempre que cavalgava por aquele percurso, sentiu-se invadir por um profundo fascínio.

Era a via do rei. A que se dirigia a Reims, onde os soberanos de França eram consagrados regentes ungidos com o óleo sagrado de São Remígio, na mística catedral.

Acordou de repente, mas não se mexeu. Ouvira um rumor. Abriu os olhos, encontrando-se estendido ao lado da fogueira apagada, sentiu o frio da terra em contacto com os membros, as roupas entranhadas da humidade da noite. Depois de dois dias de viagem, Rocheblanche e Vermandois tinham acampado ao ar livre para recuperar as forças e haviam adormecido. Reims já estava perto.

De novo aquele rumor, desta vez mais próximo. Maynard mexeu cuidadosamente os olhos, lembrando-se de que adormecera com o punhal na mão. Ainda não era madrugada, mas a abóbada estrelada iluminava a clareira e a mata à sua volta com um luar prateado. Foi portanto com grande clareza que avistou um vulto negro inclinado sobre si próprio.

Aterrorizado, pôs-se de pé, forçando a perna esquerda, com o resultado de se estatelar na relva. O vulto reagiu recuando e, depois, avançou de repente, assumindo uma forma elegante. Maynard entreviu o relampejar de uma lâmina curta e deslizou de lado, mesmo a tempo de evitar um golpe, respondendo ao ataque erguendo o punhal. Sentiu-o raspar contra a lâmina inimiga.

Um inesperado grito de batalha lembrou-o de Vermandois. Olhou pelo canto do olho, para trás de si, e viu-o manipular uma acha contra um homem armado de espada, voltando a defender-se. Transpôs a distância que o separava do agressor e pôs-se em guarda, apontando o punhal e suportando o peso com a perna direita. Desconhecia a identidade dos dois visitantes nocturnos, mas de certeza que não se tratava de meros salteadores. Não era porém o momento certo para fazer perguntas. E quando das trevas surgiu um novo ataque, não se deixou apanhar desprevenido. Virou o tronco para se esquivar e entrou nas defesas do adversário para lhe assestar uma forte cotovelada. A figura envolta na capa acusou o golpe e encolheu-se, embatendo no tronco de uma árvore». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

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quinta-feira, 7 de setembro de 2023

A Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «Ao contrário do companheiro, pelo menos ele ainda tinha algo por que se bater. O amor por Eudeline e o pacto de honra feito com Jane Blannen»

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A Pedra do Exílio

Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346

«Avançaram por uma estrada dirigida a sul, aflorando aldeias que se iam esvaziando com receio do avanço dos ingleses. Montado no próprio cavalo, Maynard vigiava o andar indolente da égua e a natureza caprichosa de Robert, que aproveitava todas as oportunidades para dar provas da sua gabarolice. sob aquela aparente rudeza, o picardo deixava transparecer a frustração de um aristocrata que assistia ao fim do mundo para o qual sempre vivera, ou julgara viver. O cavaleiro partilhava aqueles sentimentos, embora tivesse consciência de que não se encontrava nas mesmas condições. Ao contrário do companheiro, pelo menos ele ainda tinha algo por que se bater. O amor por Eudeline e o pacto de honra feito com Jane Blannen.

A marcha para sul prosseguiu sem dificuldades especiais até à manhã do segundo dia, quando Maynard viu aproximar-se um grande carro coberto. Antes de poder dar conta disso, uma cortina do habitáculo abriu-se, deixando assomar o rosto de Karel do Luxemburgo. O príncipe não proferiu uma palavra. Limitou-se a fixá-lo, dirigindo-lhe uma saudação, seguida de um sorriso hostil. O cavaleiro retribuiu ambos, sem manifestar receio,mnas manteve-se de sobreaviso até o pano ser corrido e o carro passar adiante com um estalido de rédeas.

Descon heço o motivo, e comentou Vermandois, quase ciumento de não ter beneficiado da mesma atenção, mas estou disposto a jurar que entre vós e o príncipe não corre bom sangue.

Maynard fez um gesto displicente.

Impressão vossa, senhor, e continuou a trote, como se nada fosse». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

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