Sevilha, 1492
«Tudo o mais desapareceu, como se
uma grande ave vinda do caos tivesse aterrado ali e arrebatado tudo, deixando apenas
alguns vestígios da vida que tinham antes, uma taça em cacos junto da porta, um
lume a morrer no meio das cinzas. Tudo desaparecera!
A Mamá que ela conhece também desapareceu,
embora o fantasma dela permaneça de pé, mesmo ao seu lado. A aparência é a mesma,
mas tem os olhos vítreos e a respiração difícil, entrecortada; torce o xaile
nas mãos e põe-se a limpar qualquer superfície que encontre. Umas vezes, suspira,
outras, chora com grandes soluços dilacerantes que não têm nada que ver com a Mamá
que ela conhece, porque essa Mamá tem o mesmo humor maluco do David e está sempre
a dar risadinhas a propósito de tudo e de nada.
Ainda ontem a casa estava cheia
de conversas e risos, porque o papá adora ter amigos à sua volta. Encontra caras
novas na rua, ou então simplesmente apanha-os nas docas de Triana e leva-os para
casa. A essência da vida, chama-lhes ele.
Espera até ouvires esta história,
diz, enquanto os encaminha para dentro de casa. E depois começam as histórias: de
naufrágios ao largo da costa de África, ou escaramuças com os mouros, ou as ilhas
do Mar Oceano. Tudo contado em voz tão alta que, por vezes, pela noite dentro e
depois de ir para a cama, Paloma só deseja que se vão todos embora e a deixem dormir.
Os vagabundos do papá estão
sempre esfomeados, e não tarda que ele chame a pedir a sopa de açafrão com
almôndegas, ervas aromáticas e ovos que a mãe consegue preparar enquanto o diabo
esfrega um olho. Quando ela acaba de cozinhar, e servir, e limpar a confusão que
eles deixam, o papá pega-lhe na mão e puxa-a para si. Agora, o meu rouxinol vai
cantar para nós.
Então a Mamá, com uma expressão radiante
e marota, ri-se e finge-se surpreendida. Ergue uma sobrancelha, daquela maneira
que ela tem de dizer: Quem, eu?, e, sem mais delongas, ajusta o xaile sobre os braços,
ergue o queixo e começa a cantar, gorjeando como um pássaro enquanto as notas altas
e cristalinas se escapam pelas traves do tecto. Paloma tem sempre a impressão de
que é nesse momento que a magia acontece. À luz das velas, o cabelo da mãe cintila
em feéricos dardos de luz, enquanto o rosto se lhe ilumina como num encantamento.
Uma pancada na porta interrompe-lhe
os pensamentos. O sinal do papá. Tempo de partirem. Pegando nas mãos da mãe,
Paloma desembaraça-as do xaile. Alisa-lhe os caracóis para trás, cobre-lhe a cabeça
e aconchega-lhe a pesada capa de lã à volta dos ombros. Anda, Mamá, deixa isso
agora. Temos de ir.
Desvia o olhar dos olhos vermelhos
da mãe, ciente de uma dor surda que começou a latejar-lhe dentro da cabeça.
Pelo menos, as lágrimas da Mamá pararam. Mas podia morrer-se afogado naqueles
enormes lagos negros. Inspirando profundamente, apaga a vela, com todos os esforços
concentrados em ignorar as perguntas que consegue ver nas suas profundezas. Onde
havemos de viver agora?
Com dedos trémulos, roda a chave
na fechadura, ouvindo aquele clique familiar de quando o trinco entra na ranhura.
Agarra com força na chave, sentindo a sua textura áspera contra a palma da mão.
Num sopro, murmura para si própria as palavras: Não demores. Não olhes para trás.
O fontanário
canta no silêncio, e no ar pairam os cheiros quotidianos a terra molhada e a cozinhados,
enquanto ela guia a mãe através do pátio. Na sombra da parede, David está de atalaia
a eventuais informadores que possam rondar as ruas, mesmo àquela hora' Segura a
porta aberta e diz, em voz sibilada e ansiosa: - Não há ninguém. Vamos! Vá lá, Estie,
coragem!» In Brigid Hampton, O Astrólogo e o Rei, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.
Cortesia de PortoE/JDACT
JDACT, Brigid Hampton, História, Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura,