A Semente do Ódio (1326-1336)
Castelo de
Albuquerque, Janeiro de 1326
«(…) Afonso Sanches procurava
libertar-se da roupa da cama que o cobria, um pé descalço já pousado na pedra
do chão, o braço longo e musculado estendido em direcção à armadura e ao elmo. A
boca, gretada pelas febres, abriu-se num protesto:
Tenho de partir. Não posso deixar
que o diabo do meu irmão tome o que é meu. Mate a minha gente.
Teresa Sanches procurou segurar o
marido, puxando-o pela camisa de noite enrodilhada em redor do corpo, mas o algodão
rasgou-se, e ficou apenas com um pedaço na mão, farrapo de uma bandeira da paz que
há muito desistira de içar entre os dois Afonsos, entre os dois filhos do rei
Dinis. Entre Caim e Abel, como ouvira à rainha Isabel, a que muitos chamavam Santa.
Afonso Sanches cambaleou e procurou
segurar-se à armadura. O estrondo do metal a embater nas lajes do chão, os braços,
as pernas e os pés de ferro espalhados, como um corpo desconjuntado, provocou um
grito de pavor a Inês, que correu em direcção ao rio, como se tivesse forças
para o suster. Duas mãos fortes impediram que fosse esmigalhada pelo peso, João
Afonso num gesto rápido colheu o pai pelos ombros e com determinação deitou-o de
novo:
Hoje não vai a lado nenhum, ou
quer que amanhã o rei de Portugal se gabe de ter trespassado o senhor de Albuquerque.
vencendo-o?
Teresa estremeceu, mas os olhos
brilhantes de febre de Afonso Sanches nem pestanejaram.
Afonso IV, vil cobarde, ao saber
da sua doença lançara uma contraofensiva
contra o castelo de Albuquerque e a vila de La Codosera, o ódio ao meio-irmão cegava-o.
Não bastara o inferno em que tornara a vida do rei Dinis, o pai de ambos, e de como
desonrara a promessa que lhe fizera no leito de morte, jurando não o perseguir,
e agora isto?
Morto o rei de Portugal, e indiferente
à maldição com que o monarca Dinis o ameaçara caso rompesse com o prometido, convocara
Cortes, e ali em frente de todos tivera a ousadia de proclamar que ele, Afonso Sanches.
não era filho do rei, insultara-lhe a mãe, efabulando mais uma conspiração para
lhe roubar o trono, exigindo o seu exílio definitivo. Mas não se ficara por aqui.
Tomara posse dos seus bens, apropriando-se de tudo o qure lhes pertencia em Portugal.
Reagira à afronta. Primeiro por escrito, procurando convencer pela lei e pela
verdade, mas Afonso IV era surdo à lei e à verdade. Falaria antes com as armas,
talvez assim o entendesse. Procurara reforços em Castela e Leão, e há um ano, tentos
dias quantos o pai jazia no mosteiro de Odivelas, estava em guerra com o novo
rei de Portugal. E agora estas febres! Não podia deixar que umas febres o vergassem,
não neste momento. Procurou de novo levantar-se, mas a mão firme do filho empurrou-o
contra as almofadas, sem cerimónia. Inês deu-lhe a mão, procurando sossegá-lo.
João Afonso ordenou:
Mãe, mande chamar a Zulema, e que
ela o ponha a dormir». In Isabel Stilwell, Inês de Castro, Espia,
Amante, Rainha de Portugal, 2021, Planeta de Livros Portugal, 2021, ISBN
978-989-777-509-3.
Cortesia de PlanetaLPortugal/JDACT
JDACT, Isabel Stilwell, Inês de Castro, Cultura e Conhecimento,