De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
«(…) É em Azinhoso, aldeiazinha
perto, que começa a nascer a paixão do viajante por este românico rural do
Norte. O risco das minúsculas igrejas não tem ousadias, é receita trazida de
longe e ligeiramente variada para ressalvar o prestígio do construtor, mas
muito se engana quem cuide que, tendo visto uma, viu todas. Há que dar-lhes a
volta com todo o vagar, esperar calado que as pedras respondam, e, se houver
paciência, de cada vez sairá dali repeso o viajante, este ou qualquer outro.
Repeso de não ficar mais tempo, pois não está bem demorar um quarto de hora ao
pé duma construção que tem setecentos anos, como neste caso de Azinhoso. Sobretudo
quando começam a aproximar-se pessoas que querem conversar com o viajante,
pessoas que justamente conviria ouvir porque são as herdeiras desses sete séculos.
O pequeno adro está coberto de erva, o viajante assenta nela as suas pesadas
botas e sente-se, não sabe porquê, reabilitado. Por mais que pense, é esta a
palavra, não há outra, e não a sabe explicar. Daqui a pouco será noite, que no
Outono vem cedo, e o céu cobre-se de nuvens escuras, talvez amanhã chova. Em
Castelo Branco, quinze quilómetros ao sul, o ar parece ter passado por uma
peneira de cinza, só na cor, que de pureza até os pulmões estranham. À beira da
estrada há uma comprida fachada de solar, com grandes pináculos nos extremos.
Se houvesse fantasmas em Portugal, este sítio seria bom para assustar os viajantes:
luzes por trás das vidraças partidas, talvez um estridor de dentes e correntes.
Porém, quem sabe, talvez que às horas do dia esta decadência seja menos
deprimente.
Quando
o viajante entra em Torre de Moncorvo, já há muito tempo que é noite fechada. O
viajante considera que é desconsideração entrar nas povoações a tais horas. As
povoações são como as pessoas, aproximamo-nos delas devagar, paulatinamente, não
esta invasão súbita, a coberto da escuridão, como se fôssemos salteadores
mascarados. Mas é bem feito, que elas pagam-se. As povoações, é conveniente
lembrar, sabem defender-se à noite. Põem os números das portas e os nomes das
ruas, quando os há, em alturas inverosímeis, tomam esta praça igual a este
largo, e, se lhes dá no apetite, colocam-nos na frente, a empatar o trânsito,
um político com o seu cortejo de aderentes e o seu sorriso de político que anda
a segurar os votos. Foi o que fez Torre de Moncorvo. O pior é que o viajante
vai destinado a uma quinta que fica para além, no Vale da Vilariça, e a noite
está tão negra que dos lados da estrada não se sabe se a encosta, a pique, é
para cima ou para baixo. O viajante transporta-se dentro de um borrão de tinta,
nem as estrelas ajudam, que o céu é todo uma pegada nuvem. Enfim, depois de muito
desatinar, chega ao seu destino, antes lhe ladraram cães desaforados, e entra
na casa onde o esperam com um sorriso e a mão aberta. Grandes, portentosos
eucaliptos tornam ainda mais escura a noite lá fora, mas não tarda que o jantar
esteja na mesa, e depois do jantar um copo de vinho do Porto enquanto não vem a
hora de dormir, e, quando ela chega, este é o quarto, uma cama de dossel,
daquelas altas, que só por ser alto o viajante dispensa o degrauzinho para lá
chegar, que profundo é este silêncio do Vale da Vilariça, que consoladora a
amizade, o viajante está prestes a adormecer, quem sabe se nesta cama de dossel
dormiu sua majestade o rei ou talvez, preferível, sua alteza a princesa». In
José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão
2022, ISBN 978-972-003-473-1.
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