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«(…) Deixa que comigo foram três cinemas
de estreia de quatrocentos lugares cada um, consolou-o o senhor Francisco Xavier.
No Carnaval organizava bailes no foyer, concursos de disfarces, bebidas grátis,
havia balões de gás para os gaiatos, desses que ao segundo dia já hesitam entre
o tecto e o chão, vinha um conjunto de Nampula especializado cm mambos, uma pipa
de massa evaporada num rufo. Os candeeiros de Arroios, os candeeiros do Paço da
Rainha cintilavam no sopé da encosta como as tochas das folias nocturnas de Pedro
I, e o meu filho, sempre grudado à minha manga, sempre pregado aos meus joelhos,
sempre enganchado na minha cintura, fitava-me com os olhos intensos, adultos e graves,
nos quais, desde que nasceu no hospital da tropa, nunca topei o luar de infância
alguma: um homenzinho microscópico que se não assemelhava a mim ou a fosse quem
fosse da minha família, um gnomo chegado directamente de remotos avós negros das
matas de Carmona, sentados nas esteiras à entrada das palhotas, de cachimbo de cabaça
na palma. Rocei-me pela ombreira, farejando, mas a noite de Lixboa não cheira a
lavras de café, à vivenda de colunas do patrão na vinha-virgem do capim, à mancha
da fortaleza de São Paulo, à ampla e profunda respiração da terra: cheira a butano,
a fumo de farturas, à peste dos séculos idos, a mulas de frade e a fezes de chibo
doente no ondeado do terreno vago. A ampola do vestíbulo piscava confundindo as
melgas. Os semáforos da Avenida Almirante Reis empurravam o trânsito na direcção
do largo de contrabandistas do Martim Moniz e das suas violas de pedintes que repetem
até ao delírio queixumes de calafates desamparados de mar. O senhor Francisco Xavier
chamou-me do balcão, a fechar o livro numa imponência eclesiástica, e dei com a
mulata vestida de fantoche ou de palhaço de circo como a rapariga dos sapatos
de homem, de carapinha apanhada num carrapito de laços, unhas prateadas, baton,
pálpebras verdes e uma vírgula de espanto na testa franzida. A velha, de agulha
na mão, compunha-lhe à pressa as pregas de lamé das ancas.
A tua esposa vai trabalhar lá em baixo
num bar até a contazinha da pensão ficar paga, decidiu o indiano a esfregar com
empenho a fazenda das virilhas. Se as coisas nos correrem bem, rapaz, daqui a nada
é melhor do que três cinemas em Lourenço Marques.
Por mim não tem nada que saber: arrasto
a cadeira de baloiço de palhinha para o centro do vestíbulo, de onde se vê a porta
e as tábuas do sobrado se lamentam menos, apago a luz e fico à espera, a soprar
com força no escuro, que elas regressem das boites de Arroios ou das árvores do
Campo de Santana, exaustas, despenteadas, de sapatos na mão, com o baton desbotado
pelos beijos dos clientes, perseguidas à distância por ladrar de cães, buzinas
de automóveis despeitados e o pífaro do vento nas ervas e nos prédios em ruína.
Depois do jantar aguento uma porção de tempo, a chupar o charuto, de olhos abertos
na noite, e a partir das duas, ou seja a seguir ao carro-patrulha iluminar os estores
fracturados e desaparecer na embaixada de Itália, levanto-me devagarinho para
não acordar a minha mãe e os meus filhos que dormem na mesma cama do que eu,
desço as escadas amparando a barriga com o ninho da palma, e sento-me a observar
os semáforos e as insígnias da Estefânia, nomes de letras fundidas e pedaços de
telhado que o luar cor de tomate aguça e revela, a pensar nos três cinemas que
não tive nunca, apenas uma sala de percevejos no bairro dos paquistaneses de má
morte, uma cave irrespirável de suor e de miséria e do cheiro do caril, com vaqueiros
a galoparem, atrás do som dessincronizado dos cascos, no lençol do écran. A pensar
em África, amados irmãos, e na vivenda com piscina que se resumia ao tanque de lavar
roupa com um fundo de chuva dentro apodrecendo no capim ao lado da rulote em que
morávamos, comprada ao circo falido que depositava as girafas e os leões nos penhoristas
da cidade, bichos gastos como cotovelos de sobretudo estendidos nas vitrines entre
pulseiras e despertadores, ou palhaços pobres nas estantes das montras a sorrirem
para nós enormes gargalhadas melancólicas». In António Lobo Antunes, As Naus,
1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.
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