wikipedia
e jdact
«(…) O comboio que fugiu connosco
daquela Cruz Quebrada africana e da sua coroa de guindastes oxidados e gaivotas
pernaltas acabou por depositar-nos numa espécie de quartel ao largo de Luanda,
casernas de cimento a arderem no calor, onde o suor crepitava na pele como
bolhas de fervura. Nos alojamentos dos oficiais, cercados de bananeiras de
grandes folhas franjadas idênticas a asas de arcanjos em ruína, os mosquitos
atravessavam a rede das janelas para produzirem no escuro, em conjunto, um rumor
insistente e agudo em que o meu sangue, sorvido em bochechos rápidos e finalmente
liberto de mim, cantava. Lá fora, um céu de estrelas desconhecidas surpreendia-me:
assaltava-me por vezes a impressão de que haviam sobreposto um universo falso
ao meu universo habitual, e que me bastaria romper com os dedos esse cenário
frágil e insólito para reingressar de novo no quotidiano do costume, povoado de
rostos familiares e de cheiros que me acompanhavam com a fidelidade dos
cachorros. Jantávamos na cidade em esplanadas sórdidas repletas de soldados,
entre cujos joelhos circulavam de cócoras engraxadores miseráveis,
lançando-lhes às botas soslaios veementes de paixão, ou indivíduos sem pernas que
estendiam timidamente manipansos esculpidos a canivete, equivalentes às Torres
de Belém de plástico do meu país natal. Sujeitos brancos sebentos, de pasta sob
o braço, trocavam dinheiro português por dinheiro angolano num vagar sabido de
agiotas; ruas, que se pareciam todas com a Morais Soares, aproximavam-se e
afastavam-se num labirinto atrapalhado a caminho da fortaleza; néon provinciano
espalhava-se nos passeios em poças piscas de estrabismo alarajando. Ancorado na
baía, o navio que nos trouxera duplicava o reflexo na água preparando a
partida: ia regressar sem mim ao Inverno e ao nevoeiro de Lisboa onde tudo
prosseguia irritantemente na minha ausência com o ritmo do costume, permitindo-me
imaginar, despeitado, o que se seguiria de modo inevitável à minha morte e que
era, afinal, o prolongamento da indiferença morna e neutra, sem entusiasmo nem
tragédias, que eu tão bem conhecia, feita de dias cosidos uns aos outros numa
fúnebre burocracia desprovida de inquietações de labareda. Acredita nos
sobressaltos, nos grandes lances, nos terramotos interiores, nos voos planados
de êxtase? Desengane-se, minha cara, tudo não passa de uma mistificação óptica,
de um engenhoso jogo de espelhos, de uma mera maquinação de teatro sem mais
realidade que a cartolina e o celofane do cenário que a enformam e a força da
nossa ilusão a conferir-lhe uma aparência de movimento. Como este bar e os seus
candeeiros Arte Nova de gosto duvidoso, os seus habitantes de cabeças juntas
segredando-se banalidades deliciosas na euforia suave do álcool, a música de
fundo a conferir aos nossos sorrisos a misteriosa profundidade dos sentimentos
que não possuímos nunca; mais meia garrafa e cuidar-nos-íamos Vermeer, tão
hábeis como ele para traduzir, através da simplicidade doméstica de um gesto, a
tocante e inexprimível amargura da nossa condição. A proximidade da morte
torna-nos mais avisados ou, pelo menos, mais prudentes: em Luanda, à espera de
seguir dentro de dias para a zona de combate, trocávamos com vantagem a
metafísica pelos cabarés safados da ilha, um pega de cada lado, o balde de
espumante Raposeira à
frente, e a pequena vesga do strip-tease
a despir-se no palco no mesmo alheamento cansado com que uma cobra velha
muda de pele. Acordei algumas vezes em quartos de pensão manhosa sem haver
entendido sequer como para lá entrara, e vesti-me em silêncio buscando os
sapatos sob um soutien
de rendinhas pretas no intuito de não perturbar o sono de um vulto qualquer
enrolado nos lençóis, e de que percebia somente a massa confusa dos cabelos. De
facto, e consoante as profecias da família, tornara-me um homem: uma espécie de
avidez triste e cínica, feita de desesperança cúpida, de egoísmo, e da pressa
de me esconder de mim próprio, tinha substituído para sempre o frágil prazer da
alegria infantil, do riso sem reservas nem subentendidos, embalsamado de pureza,
e que me parece escutar, sabe?, de tempos a tempos, à noite, ao voltar para
casa, numa rua deserta, ecoando nas minhas costas numa cascata de troça.
Não, não me dói nada, talvez um
pouco a cabeça, uma insignificância, uma impressão, uma tontura. Este rumor
monótono de conversa, estes odores misturados, as feições que se desarrumam e
se deslocam no acto de falar atordoam-me: não conheço ninguém, não possuo o
hábito destes templos exóticos em que se sacrificam não já vísceras de animais
mas o próprio fígado, modernas catacumbas a que as lâmpadas votivas das luzes
raras e o murmúrio de reza das conversas conferem uma tonalidade de religião sacrílega
de que o barman é
o bezerro de oiro, imóvel atrás do altar-mor do balcão, cercado pelos diáconos
dos frequentadores do costume, que erguem em seu louvor black-velvets rituais. As
cruzes do timol substituem os crucifixos, jejuamos pela Páscoa a fim de baixar
as gorduras do sangue, comungamos aos domingos vitaminas purificadoras,
confessamos ao analista os atropelos à castidade, e recebemos de penitência a
sua conta mensal; nada mudou, como vê, salvo que nos consideramos ateus porque,
em lugar de batermos com a mão no peito, bate o médico por nós com o diafragma
do estetoscópio. Sinto-me aqui, percebe, como sentia em pequeno o meu pai na
igreja, nas missas pelos defuntos da família onde chegava invariavelmente a
meio, plantado junto à pia de água benta, de mãos atrás das costas, Robespierre
de canadiana a desafiar as caixas das esmolas e os olhos de barro triste dos
santos. Pertenço sem dúvida a outro sítio, não sei bem qual, aliás, mas suponho
que tão recuado no tempo e no espaço que jamais o recuperarei, talvez que ao
Jardim Zoológico de dantes e ao professor preto a deslizar para trás no rinque
de patinagem sob as árvores, entre os guinchos dos bichos e a campainha do
vendedor de gelados. Se eu fosse girafa amá-la-ia em silêncio, fitando-a de cima
da rede numa melancolia de guindaste, amá-la-ia com o amor desajeitado dos
exageradamente altos, mastigando o chiclets
de uma folha pensativa, ciumento dos ursos, dos papa-formigas, dos
ornitorrincos, das catatuas e dos crocodilos, e desceria trabalhosamente o
pescoço pelas roldanas dos tendões para esconder a cabeça no seu peito em
trêmulas marradas de ternura». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas,
Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.
Cortesia DomQuixote/JDACT