jdact e wikipedia
Querida Elizabeth Bishop
«(…) Quero contar duas coisas que
aconteceram na aula de inglês hoje. Lemos um poema seu, e a classe ouviu a minha
voz pela primeira vez. Faz duas semanas que estou no ensino médio, e até agora
passo a maior parte da aula olhando pela janela, vendo os pássaros voando entre
fios telefónicos e as árvores. Eu estava pensando num garoto, Sky, e pergunto-me
o que ele vê quando fecha os olhos, quando ouvi o meu nome. Olhei para a
frente. Foi como se um passarinho batesse as asas no meu peito. A sra. Buster
estava olhando para mim. Laurel, você pode ler? Eu não sabia em que página estáva.
Me deu uma branca. Então Natalie inclinou-se e colocou o meu texto na página
certa. Começava assim:
A arte
de perder não é nenhum mistério;
tantas
coisas contêm em si o acidente
de
perdê-las, que perder não é nada sério.
No começo, fiquei nervosa. Mas,
conforme eu ia lendo, fui prestando atenção e entendendo.
Perca
um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a
chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte
de perder não é nenhum mistério.
Depois
perca mais rápido, com mais critério:
lugares,
nomes, a escala subsequente
da
viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi
o relógio de mãe. Ah! E nem quero
lembrar
a perda de três casas excelentes.
A arte
de perder não é nenhum mistério.
Perdi
duas cidades lindas. E um império
que
era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho
saudade deles. Mas não é nada sério.
Mesmo
perder você (a voz, o ar etéreo
que eu
amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a
arte de perder não chega a ser mistério
por
muito que pareça (Escreve!)
muito sério.
A minha voz deve ter saído trémula,
porque o poema era um terremoto em mim. Quando terminei, a sala estava em
completo silêncio. A sra. Buster fez o que sempre faz. Encarou a turma com o seu
grandes olhos esbugalhados e disse: o que acharam? Natalie lançou um olhar na
minha direcção. Acho que ela se sentiu mal porque todos estavam a olhar para
mim, e não para a professora. Então levantou a mão e disse: bem, é claro que
ela está a mentir. Não é fácil perder as coisas. Em seguida, todos pararam de
olhar para mim e viraram-se para Natalie. A sra. Buster perguntou: porque
algumas coisas são mais difíceis de perder que outras? Natalie respondeu com um
tom de não acredito que perguntou isso: por causa do amor, claro. Quanto mais
se ama alguma coisa, mais difícil é perder.
Levantei a mão sem nem me dar
conta. Sabe, acho que, quando perde alguma coisa próxima, é como perder-se a si
mesmo. É por isso que, no final, até escrever é difícil para ela. Ela quase não
sabe como fazer. Porque quase não sabe mais quem ela é. Todos os olhos se
voltaram para mim, mas, na mesma hora, ainda bem, tocou o sinal. Peguei as minhas
coisas o mais rápido possível. Olhei para Natalie, e pareceu-me que ela estava
me esperando. Achei que ela finalmente me ia convidar para almoçar, e eu não ia
mais precisar ficar sozinha. Mas a sra. Buster falou: Laurel, posso conversar
consigo um minuto? Fiquei com raiva da professora, porque Natalie se foi
embora. Esperei, inquieta, diante da mesa, e ela perguntou: como está?
A palma da minha mão ainda estava
suada por ter falado na frente de todos. Hum… bem. Vi que não entregou a
primeira tarefa, a carta. Olhei para baixo, a luz reflectida no chão, e
murmurei: ah, é. Desculpa. Ainda não terminei. Certo. Vou dar-te mais tempo
desta vez. Mas quero que me entregue na semana que vem. Eu fiz que sim. E então
ela disse: Laurel, se precisar conversar com alguém… Olhei para ela com uma expressão
vazia. Eu dava aulas no Sandia, a sra. Buster explicou, com cuidado. May foi minha
aluna de inglês no primeiro ano.
Não conseguia respirar direito.
Comecei a ficar tonta. Achei que ninguém na escola saberia ou, pelo menos, que
ninguém fosse falar sobre isso. Mas a sra. Buster olhava para mim como se eu
tivesse a resposta de um mistério terrível. Eu não tinha. Finalmente, ela
disse: May era uma garota especial. Engoli em seco. Sim, respondi. E saí. O
corredor barulhento me transtornava. Queria fechar os olhos e fazer com que todas
as vozes se dissipassem. Beijos.
Laurel»
In Ava Dellaira, Cartas de Amor aos
Mortos, tradução de Alyne Azuma, Editora Seguinte (o Selo Jovem da Companhia
das Letras), 2014, ISBN 978-856-576-541-1.
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