O
reino precisava mais do que um homem bonito
«(…) Então vossemecê não foi ao
casamento, ti Lourenço, interpôs de modo provocador um tal Tomé, jovem
escudeiro, que por enquanto entrava pela porta da frente da taberna até que
subisse na hierarquia, ouvi dizer que sua majestade nem lá pôs os pés... O que
me disseram, foi que a princesa aragonesa não passa de uma criança. Nem tem
saliências nem senhoria. Mas diz-me, Tomé, tens visto o rei?, quis saber o
taberneiro. Ora, sua senhoria passa o tempo com os seus conselheiros ou vai à
caça quando está em Santarém. Pouco sai. Uma vez por outra, desloca-se até à
porta sul do castelo a ver o Tejo. Até parece que sonha... Não havia de
sonhar..., sonha ele acordado e eu a dormir cheio de pesadelos, intrometeu-se
na conversa o barbeiro, também ele um dos primeiros a ser mobilizado para a
guerra. Ó Falcão, quis o Eliel, almocreve no castelo, provocar o barbeiro,
estás para aí a tremer..., tens medo da guerra, meu menino, tens? Um homem
destes, chamado só para desfazer barbas e cortar cabelos, põe-se-me aqui arreceado
e ainda nem um passo demos a caminho da Galiza.
Estás parvo?!, volveu o Falcão. O
que faz isso é o nosso rei Pedro vos desabituar da guerra. Já se esqueceram das
obrigações de um barbeiro? Quem é que arranca os dentes aos queixosos? Quem põe
cataplasmas e faz sangraduras? Julgas que é o mesmo que tratar de bestas como
tu? É lá! Bestas como eu, salvo seja. Então porque tremes? Eu?! Pelo mesmo que tu.
Vamos atrás das ilusões do rei, sei eu lá o que nos pode acontecer. Pronto, está
bem, não se zanguem, procurou Justo Lourenço amaciar a conversa dos dois milicianos.
Ó Tomé, dizem para aí que o nosso rei tem grandes apoios em Castela. É ou não
verdade? Então não é! Ao castelo chegam às dezenas de galegos prontos a combater
por Portugal contra o usurpador do trono castelhano. E não é só isso. Granada e
Aragão já tomaram partido por sua majestade. E o que lhe deu o nosso rei em troca?,
intrometeu-se o alfaiate.
Isso não sei, mestre, tem de perguntar
à Mariamem. Que ela disso sabe mais do que o chanceler. Ó ti Lourenço, insistiu
o aprendiz de escudeiro, então quando é que posso subir as escadas? Olhe que a vida
não pára. Daqui a pouco estou a fazer falta no castelo e já não volto. Se calhar
nunca mais vejo a Almara. A tirada do jovem foi motivo de gargalhada geral. Não
era no entanto despropositada a afirmação. Mariamem, através das meninas, estava
a par de quase tudo quanto se passava no castelo, e ele, com guia de marcha para
a Galiza, até a morte lhe podia acontecer. Enquanto o convidado especial não
entrava pela porta do quintal à procura de um pouco de atenção da bela Almara, e
os clientes nunca mais viam os seus desejos satisfeitos, no castelo, o alardo das
tropas não parava. Neste sentido, o almocreve pôs-se também a andar, cantando
uma moda bem apimentada, abraçado ao barbeiro e ao jovem escudeiro. Ó Eliel, canta
lá uma daquelas que tu sabes, propôs o barbeiro. Ai é?! Então vejam lá se sabem
esta da cara de …
Donzela quem quiser entenderia
Que vós muito formosa parecedes
E se é como vós dizedes
No mundo um par igual não haveria
E ainda que vosso par não houvesse
Se em meu … cosmético pusesse
De bem parecer venceria
Vós andades dizendo no concelho
Que muito formosa parecedes bem
Eu nisso não vejo quem
Mesmo que vos ponhais de branco ou
vermelho
Pois se um pouco de sol o meu …
pegue
E puser um pouco de alvaiade
Comparar-se-á convosco ao espelho
Donzela vós sodes bem talhada
Se no apronto erro não fizerdes
Ou em essa saia que vós trazedes
Mas se ao meu … pusessem orelhas
E lhe bem fingissem sobrancelhas
De parecer nada vos deveria.
Tropeçando uns nos outros, lá iam
os três, cerro acima, cantando sempre a mesma cantiga, rindo com a alarvidade que
o vinho lhes transmitia, por certo ignorantes de que o dia seguinte poderia ser
o último das suas vidas». In Jorge Sousa Correia, A Tentação de D.
Fernando, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-344-8.
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