sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

A Ilha dos Jacintos Cortados. Cartas de amor com interpolações mágicas. Gonzalo Ballester. «Não te falei do tempo. Vou fazê-lo agora, depois de ter escolhido, quando me disseres que te apetece ouvir música, Vivaldi ou Monteverdi, dessa que organiza o espírito…»

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«(…) Hoje, no entanto, não pensava fantasiar sobre o teu corpo: tema que veio sem querer, imagens trazidas por uma dessas associações fortuitas que tão facilmente explicam a alma nos seus movimentos e no-la tornam transparente e compreensível como a exposição de um teorema. A alma, porém, tem vazios, buracos escuros como aqueles que os astrónomos dizem existir no espaço: abismos do nada de que um dia emergirão as mãos que hão-de agarrar o cosmos, as fauces que o vão devorar. Bom, hoje não pretendia falar-te do teu corpo, nem sequer (pelo menos alongadamente) do problema de Claire, que me disseram na universidade que vai bastante mal, parece que na sua reunião os decanos concordaram em nomear um comité de especialistas para estudar o caso e decida se o sentido de humor espalhado no livro o exime, pela sua própria exuberância (e talvez pelo seu peso), de toda a pretensão científica e o relega para o âmbito inocente da mera poesia, nesse caso sendo Claire perdoado, se bem que na condição de se desculpar em público (há quem fale em organizar um simpósio, mas eu acho, e assim o disse, que a única forma de explicar um livro é escrevendo outro). Mas caso contrário, ainda considerando que é costume dos Anglo-Saxões expressarem-se com graça, e quanto mais abstruso for o tema mais se procura mascarar a sua gravidade, se Claire se empenhar em que a pretensão científica do livro permaneça como sua justificação e como sua substância, perderá a cátedra. Revelaram-me em segredo quem é que elegeram para o comité: gente tão inteligente como Jones, tão honrada como Jackson, tão sagaz como Wilson. E, para ostentar a presidência, coisa que fará com um impacte como se verdadeiramente fosse o presidente do país, um pavão com penas tão brilhantes como Catskill, o qual, como toda a gente sabe, só deseja o bem de Claire, a quem, por outro lado, deve o seu posto e a sua reputação. Por isso mesmo! Fosse o livro uma espécie de Peter Pan, e apresentá-lo-iam como a prova do esforço frustrado a que um cientista em declínio se arrisca para manter suspensa da sua obra a atenção do mundo inteiro. R. I. P., Ariadne! Pobre Claire!
E sabes que estou a pensar ajudá-lo? Tu ainda não te apercebeste. Talvez penses (ou não te atrevas a pensar) que te trouxe comigo para olhar para ti com liberdade e sem pressa, para que conversemos juntos à hora do crepúsculo e do anoitecer em que só se diz o essencial; talvez para distrair a tua mente e afastá-la da recordação e até do amor de Claire. É possível que tudo isso seja certo. Bom: é verdade, e não o ignoras. Mas, além disso, há a questão da ajuda. Até agora nunca te falei do tempo. Hoje preciso de o fazer já, não assim que chegares, como sempre, com vontade de fechar os olhos e de me ouvir disparatar acerca de bagatelas, com fome, porventura, ou com exclamações exageradas de que vens moribunda, de tão longe que está já a sande das onze e meia, de que te aborreceste mais do que um polvo numa garagem (a frase é tua); pois, para este caso, tenho sabido com que saciar-te, porque esta tarde arrisquei-me a caminhar para lá do bosque, cheguei à downtown e comprei algumas das vitualhas que sei que tu gostas: um monte de castanhas assadas, figos secos tão gregos como tu, ou pelo menos assim mo garantiram. Comi um deles: doce e pastoso, e tinha a polpa cor de mel. Espero que te façam lembrar a tua terra e que chores um pouco embalada pela nostalgia: momento, como podes compreender, pouco oportuno para metafísicas.
Não te falei do tempo. Vou fazê-lo agora, depois de ter escolhido, quando me disseres que te apetece ouvir música, Vivaldi ou Monteverdi, dessa que organiza o espírito e faz dançar a alma. Ou também é possível que pegues na viola e me cantes um desses poemas de Kavafis a que um candiota teu amigo deu a música. Tanto me faz, mas, se tivesse de escolher, pedir-te-ia que cantasses, porque prefiro a tua voz ao violoncelo. Vou falar-te do tempo, e para isso tenho de me referir ao Grande Copta, e primeiro que a ele, a Ashverus, porque um traz o outro, porque um veio pelo outro, com outros mais, todos místicos e misteriosos, e a quem procurei e com quem falei também durante uma das minhas últimas viagens, quando a questão de Claire já me inquietava e os livros não respondiam às minhas perguntas. Acerca dessas amizades, que tu ignoras, tenho algumas notas nos meus papéis, e se calhar um dia falarei delas, à margem das nossas coisas e de Claire, isto é, noutro dos meus cadernos; mas o Grande Copta pertence a este por direito próprio, como a seguir perceberás. Noutro lugar e tempo, ainda que não muito distantes, contei os termos do meu encontro, certa tarde, em Nova lorque, com o Judeu Errante». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.
                                                                                                                                
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT