Invasão
da Galiza
«(…) Aquilo era bonito de se ver.
Assim que o Sol mostrou a luminosidade que prometia para esse dia de Julho de 1369,
começaram a sair do castelo de S. Jorge os mais altos dignitários da terra portuguesa,
acompanhados pelos nobres galegos partidários da união galaico-portuguesa. Iam
tomar posse de toda a Galiza e de alguns lugares de Castela que desejavam ter Fernando
I como seu senhor, formando no seu todo mais uma excursão a caminho do Norte do
que um exército invasor. Sobre o sucesso da caminhada até à Corunha, e dali para
cima se fosse preciso, dava ao rei português todas as certezas, nenhumas desconfianças.
É certo que ainda estava em território
lusitano, Henrique de Trastâmara não se dispunha a vir por aí abaixo interceptá-lo,
mas a verdade é que o rei castelhano, até as tropas começarem a deslocar-se, não
fizera qualquer aviso a Fernando I, nem sequer parecia incomodado com a expedição
do exército português à Galiza. Era uma festa. Os músicos a retirar os sons ainda
antes de saírem do castelo, cornetas, tambores e atabales na máxima expansão, ordenando
aos que dormiam que chegassem às janelas, saíssem à rua para ver o formoso rei arrastar
com ele alguns milhares de portugueses sem saber se voltariam.
Na frente seguiam os mestres de Santiago
e de Cristo, mais Álvares Peres Castro, o condestável; o conde João Afonso Teles
III; Álvaro Gonçalves Pereira, prior do Hospital; enquanto atrás deles, bem encavalitado,
lá ia sua alteza corno se já estivesse a resguardar-se, e logo a seguir, os vários
corpos de nobres portugueses e galegos que por certo seriam os mais brigosos guerreiros,
comandantes das alas que iam esticar Portugal para norte. Durante a noite, os
homens de pé ficaram por ali, acomodados nos pátios e nos terreiros, só os mais
especializados, aqueles que ofereciam o seu talento profissional para apoio da
guerra, tiveram direito a dormir na esplanada do castelo, entre eles, os
assíduos clientes da taberna do Justo Lourenço e das meninas de Mariamem: o
almocreve Eliel, o barbeiro Falcão, Lenir, o homem do forno, e o escudeiro Tomé.
Por mar iria uma frota de oito galés com a respectiva equipagem, prevendo o rei
que se juntassem depois na Corunha, quartel-general de onde partiria a última
torrente invasora.
Sua majestade vai com os pensamentos
a saírem-lhe do chapeirão, por enquanto, porque quando envergasse o elmo na guerra
feia, nem se lembraria de quem era filho ou se o tabardo real lhe favorecia a imagem.
Neste dia, não. Tudo quanto lhe vinha à cabeça correspondia a cenas de grande
exaltação, um homem a caminho do seu destino, o monarca português que iria pôr
em sentido o usurpador castelhano e ficar com o que era dele. Para reforçar a grande
conta que tinha de si, depois de o exército atravessar o rio Minho, logo ali,
em Tui, apareceu gente aos magotes para vitoriar Fernando I. Queriam vê-lo de perto,
analisar a sua lendária formosura, dizer-lhe que eram todos portugueses e galegos
ou galegos e portugueses, que para o caso tanto faz. Olhando em redor e para dentro
de si, o soberano português via-se quase imperial, rei de Portugal e da Galiza e
o que mais adiante se veria, o maior senhor da Península Ibérica sem sequer desembainhar
a espada. Então, e as donas galegas que acorreram para ver tanto garbo e formusura?
E aquelas miradas, senhor! Já antes de abalar andara com as chicas na cabeça, no
pensamento tinha-as quando queria, olhos negros, faces morenas, beiços
carnudos, de um vermelho vivo, como se fossem frutos silvestres. Ah, como seria
sublime, depois de estilhaçar os corpos nas batalhas que iria travar, ter na cama
um corpo de mulher para acariciar, pele lisa, montes e vales por todo lado, curvas
e destinos oferecidos.
Após passar o rio Minho,
fronteira natural entre os dois reinos, Fernando I fez uma entrada triunfal em Tui,
onde pernoitou e de onde, no outro dia, lhe custou a sair. Foram tantos os louvores,
elogios tão rasgados, que foi preciso muita coragem para depois de acordar se desenlear
do perfume que o leito expelia. Deixou-se levar pela festa, danças, cantares, devaneios,
moças da nobreza local a rodopiarem à sua volta, cumprimentos dos fidalgos,
lembranças para o caminho e para quando voltasse. Nessa noite, como cumpria, não
faltou quem lhe aquecesse a cama. A moça, uma dona cheia de salero, sentiu-se como
se estivesse no Céu, mesmo à beira dele, actuando mais do que pensando, pois era,
no trabalho competente que se jogava toda a sua capacidade para convencer o rei
de que lhe fazia muita falta, embora soubesse que nunca se sentaria no trono». In
Jorge Sousa Correia, A Tentação de D. Fernando, Clube do Autor, 2017, ISBN
978-989-724-344-8.
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